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Sexta-feira, 25/5/2007 Quem não gosta de uma boa história? Ana Elisa Ribeiro Quem não gosta de ouvir um bom contador de histórias? É fato: qualquer platéia, mesmo a mais desavisada, fica arrepiada quando um hábil narrador atua. Desta vez, não me refiro a poemas ou a contos escritos, mas àqueles "causos" que, reza a lenda, eram contados à beira da fogueira, especialmente em cenários do interior do país. As pessoas vão imergindo na conversa, entrando no clima e a imaginação aparece, firme e forte, mesmo para aqueles que se sentiam refratários a essas coisas. Contar histórias não é tarefa fácil, mas com um pouquinho de treino é possível encantar ouvintes. Não é à-toa que, em diversos lugares, são oferecidos cursos para formação de contadores. Ainda que pareça muito diferente disso, é bom relembrar uma ocorrência recente. Na última sexta-feira de abril, a PUC Minas recebeu a visita do escritor Marcelino Freire. Afora o currículo editorial dele, o fato mencionável é que quando ele lia os contos de seus livros, parecia encarnar um personagem ou dois ou todos. E enquanto a leitura acontecia, a platéia, que não era pequena, ficava vidrada naquela voz, naquele sotaque (pernambucano) e naquelas figuras que iam se formando ali, diante das imaginações de todos nós. À medida que a história se desenrolava, a platéia navegava junto das ondas mais diversas: ria, chorava, se enraivecia, até desaguar em um alívio meio catártico. O silêncio imperava nos momentos mais dramáticos, mais adiante uma gargalhada. Isso é o que acontece quando alguém sabe contar histórias. Para ir um pouco mais longe, desde 1987 um projeto registra histórias orais no Vale do Jequitinhonha, norte de Minas Gerais, onde se entra por Diamantina. A forte tradição de literatura oral da região levou pesquisadores da PUC e da UFMG a passarem décadas visitando respeitados contadores de histórias, homens e mulheres, benzedeiras e todo tipo de poeta. O acervo, hoje mais definido, tem centenas de horas de gravação e foi decupado por dezenas de estudantes e bolsistas de graduação. A partir dele foram produzidos livros, CDs e vários contadores de caso ficaram conhecidos na capital. A bela incursão pela tradição oral foi transformada em registro da cultura, em conhecimento, em resgate. Grande parte dos narradores daquelas décadas já morreu. Os filhos deles se mudaram para alguma capital, em geral para São Paulo, em busca de melhores oportunidades. Desaprenderam os contos orais que seus pais e avós lhes contavam. São mais de duas centenas de contos e poemas, algumas rezas e vários "causos" de moral. A maioria dos narradores é formada de homens, os mais experientes, respeitados em toda a região. As mulheres, poucas, em geral atuam por meio da benzeção e das rezas, contam muitos casos sobre curas e bênçãos. Das histórias, grande parte é o que se chama "contos de encantamento", em que um personagem pobre e esperto se casa com uma princesa disputada, filha de um rei desafiador. Noutros casos, os animais são os personagens, à maneira das fábulas. É absolutamente fantástico perceber o quanto não sabemos de nossa cultura, o quanto desconhecemos nossas práticas e nossos arquétipos, em favor de culturas estrangeiras nem melhores e nem piores. Nada contra conhecer "o outro", mas seremos sempre colonizados se acharmos "nele" a nossa fôrma descabida. Admirar é compreensível, imitar, macaquear (como diria Bandeira) é que soa estranho. Por certo, uma criança urbana brasileira saberá desfiar mais histórias japonesas do que alguma sobre onças pintadas. Mais narrativas sobre leões africanos do que sobre pacas nacionais. Terá uma idéia melhor sobre elefantes do que sobre micos. Assim como o Jornal Nacional dá 5 minutos de notícia insossa sobre um massacre de alunos americanos e 5 segundos para a guerra civil no Rio de Janeiro. Grimm e outros coletadores de histórias fizeram, em seu tempo, algo parecido com o que os pesquisadores mineiros estão a fazer. Grimm e outros alteraram as histórias, fizeram delas morais um tantinho mais calculadas, excluíram trechos originais muito violentos ou desmoralizantes, tornaram-se autores. Isso é coisa antiga e, para que não venham os babões dizer que é absurdo, alemães e franceses fizeram primeiro. No Brasil, muitos pesquisadores da cultura oral fizeram trabalhos espetaculares, nem sempre mencionados como o devido. Mário de Andrade, o poeta paulistano, talvez seja também conhecido por sua inserção nas pesquisas do Brasil. Mais do que ele, e bem menos famoso, é Luís da Câmara Cascudo, que publicou diversas obras coletâneas das narrativas brasileiras. Absolutamente necessárias, se não fosse nossa tendência para o macaqueamento. A idéia, por favor, não é defender um isolamento cultural, negar a importância do estrangeiro, renegar talvez. Não. A idéia é defender que é necessário conhecer a própria cama e deitar-se na dos outros só de vez em quando. Em uma sala de aula, primeiro dia de curso, é muito comum que os alunos dêem respostas curiosas às indagações sobre quantas línguas dominam. Certa feita, questionei, como quem não queria nada, quem sabia inglês ali. Quase todos os braços da classe se ergueram, alguns com incontido orgulho, outros mais tímidos. Os poucos que não se manifestaram, debatiam-se no vexame e, em silêncio, prometiam se emendar. Indaguei sobre o francês, meia dúzia ou menos ergueram os dedos. Ser francófono, hoje, é mais difícil. Quanto ao espanhol, metade da turma disse poder compreendê-lo, um tanto menos afirmou seu domínio. Curioso. Talvez a semelhança das línguas românicas os confunda um pouco. Parei por aí nos idiomas. Uma menina, filha e neta de chineses, fez questão de manifestar conhecimento sobre aquela língua oriental. Certa admiração atravessou a turma inteira. Quando perguntei, com ênfase, quem dominava bem o português, nenhum, nenhum, notem, dedo se ergueu. Uma insegurança mística percorreu os olhares, com luzes mais ou menos fortes aqui e ali. Não tinham coragem de afirmar, para a professora da língua materna, que sabiam algo do vernáculo. Nem padrão nem sem padrão. A idéia que lhes veio, certamente, foi a da inalcançável gramática. Não sei se um Cegalla ou um Rocha Lima. Certamente, veio-lhes a imagem de um livro. Desaprendido, apesar dos 6 ou 7 anos de escola brasileira. Não admitiam-se conhecedores do seu próprio idioma, muito embora o utilizassem plenamente desde a média dos 3 anos de idade. Curioso, de novo. Os contos orais são, talvez, o que muitas mães contam aos filhos quando ainda eles usam fraldas. São o que dizem que nossas avós sabiam fazer ao redor do fogão a lenha. São o que todos conhecemos, ao menos longinquamente. São o pleno uso, encantador e encantatório, da nossa língua. As duas décadas de pesquisa no Vale do Jequitinhonha são apenas parte de nossa necessidade de autoconhecimento. É possível encontrar livros e CDs produzidos a partir dessa empreitada. Em incursão semelhante, também é possível obter material sobre a cultura narrativa indígena, também disponível em livros, muitas vezes produzidos pelas próprias tribos. É preciso conhecer o próprio cheiro. Qualquer bicho do mato sabe disso. Nota para a próxima coluna Só para dar um gostinho, publicarei aqui um conto oral colhido no Vale, junto com o nome do contador de histórias que o narrou para a equipe de pesquisadores. Junto com ele, algumas versões produzidas por alunos em oficinas cujo objetivo era trabalhar o texto, as histórias e a intimidade com a cultura local. Ana Elisa Ribeiro |
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