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Quarta-feira, 16/5/2007 Quixote que nada Guga Schultze Li o Quixote durante anos. Quero dizer: levei anos para ler o Dom Quixote e ainda não sei se a leitura foi completa, se ficou faltando alguma parte, algumas páginas ou mesmo algum capítulo. Isso porque eu lia pedaços, sem respeitar a ordem da disposição original, simplesmente porque não me lembrava onde havia parado da última vez. E eu sempre parava, depois de cinco ou seis páginas, sob qualquer pretexto ou mesmo sem pretexto nenhum. E dez minutos depois já havia me esquecido de onde eu estava. Mesmo decorando o número da página (fiz isso muitas vezes) eu havia me perdido; mesmo colocando um marcador de páginas no exemplar que eu tinha em casa; os dias passavam sem que eu me animasse e retomasse a leitura; nesse meio tempo eu já tinha lido alguma outra parte, em algum outro lugar, fora de casa, ou seja, tinha me perdido de novo. Aquilo me incomodava muito. Eu estava provando para mim mesmo que eu não era o leitor que eu gostaria de ser. Às vezes eu estava de pé, numa livraria e pegava o "ingenioso fidalgo" na estante - há muitas edições existentes - quem sabe agora eu embarcava, comprava o bilhete que me permitiria viajar pela Mancha, seguindo os dois cavaleiros, mas percebia que o Roncinante ia a passo e o burrico de Sancho seguia atrás, quer dizer, a marcha sobre a Mancha era lenta. Eu, a pé, ia mais rápido e, juro, estava mesmo tentando ir a pé, por respeito a uma das obras capitais da literatura ocidental. Estava deixando meu Pégaso, que eu usei para seguir Ulisses na Odisséia e meu Náutilus (emprestado de Julio Verne), que usei para seguir o capitão Ahab através do Pacífico (algumas leituras dessa época em que resolvi, num ímpeto adolescente, encarar alguns volumes gordos, pesos pesados literais) e estava tentando o trote a pé, pelos campos da Mancha, já que eu não conseguia alimentar minha eguinha pocotó com a ração, a meu ver, mofada, de Cervantes. Estava, talvez, sendo injusto com o velho espanhol, mas ele me causava o desconforto específico que eu evitava como um gato evita água, um misto de exasperação e aborrecimento contínuo desde o momento em que percebi que aquele ritmo triste era invariável ao longo de centenas de páginas. Não há nada de mais em se manter um ritmo, mas a canção, pelo menos, deve ter alguma das qualidades do canto das sereias. Deve encantar, de alguma forma. Cervantes me soava como um orador profissional, ciente do seu público, ciente de seus próprios recursos retóricos e nunca como sereia, pitonisa, o Mágico de Oz (de quem você, depois, descobre o truque), Sherazade ou o Gato de Cheshire - há centenas de vozes que podem ser atribuídas a diversos autores e eu julgo que essas são das mais interessantes - e eu não conseguia me interessar pelo discurso desse pregador. Era como se eu estivesse numa platéia, sentado num desconfortável banco de madeira, um banco de igreja, onde muita gente chega a se ajoelhar durante o longo ofício. Os joelhos doem, a alma dói e eu alegremente me recuso a oferecer dor para qualquer divindade. Muito menos para um estropiado cavaleiro andante. Li traduções variadas, versões e adaptações infanto-juvenis e, pelo menos, lidei com uma versão no original, em espanhol, e uma outra, uma tradução fiel ao original; um trabalho que me pareceu monstruosamente fiel. Nunca soube e nem nunca vou saber se li o livro por inteiro; abandonei o Quixote em definitivo quando percebi que eu estava me tornando um leitor muito agressivo. Em outras palavras, o Quixote estava me envenenando. Dom Quixote me cutucava as costelas com a ponta de sua lança e me afastava do caminho: " - Estais certo de que vosso desejo é continuar, senhor? Consulte vosso coração e consciência e, feito isso, coloque-se à margem desse caminho onde, não poucas vezes, sofri os mais variados percalços e tropeções, perseguindo uma glória caprichosa que teima em de mim se esconder e que, por minha fé, hei de alcançar, ainda que nessa empresa deva eu me empenhar em árduas pelejas contra todo aquele que, como vós, oculta com enganosa aparência o vil propósito de mo impedir." Em outras palavras, "cai fora, seu lugar não é aqui". Comecei a recolher algumas observações de outros sujeitos que, como eu, não gostavam muito do Quixote. Fui achar Borges, cuja opinião displicente sobre o livro encerra algum cansaço; fui achar Nabokov, que apontou a crueldade de Cervantes - mas eram raros os meus comparsas. A maior parte do que se escreveu sobre o Quixote é composta de elogios extremos. Então tive que buscar sozinho as palavras do meu descontentamento. E elas vieram. Não gosto do Quixote porque é um livro cansativo. Bem, pelo menos para mim. A toada é a mesma e, uma página lida, você tem o livro inteiro. Não há variações na intensidade e é um livro para aquelas pessoas que não se cansam de rir da mesma coisa indefinidamente. No caso o riso é dirigido para a triste figura do "cavaleiro da triste figura". Um humor de corte medieval, onde o rei e seu círculo de cortesãos se riem interminavelmente do corcunda, bobo da corte, uma das profissões mais cruéis do planeta. Não gosto do Quixote porque a retórica é carregada, as falas do cavaleiro seguem aquele padrão da retórica arcaica, cavalheiresca e cheia de salamaleques. Admiro sinceramente as pessoas que parecem se deleitar com esse tipo de conversa mole - é, literalmente, uma conversa mole - mas me sinto insensível. O que é quase um pleonasmo, mas meu coração se congela com discursos velados, articulados como um jogo de sombras. Não gosto do Quixote porque é uma figura cristã, do mesmo naipe do nazareno, o azarado personagem central do cristianismo - o sujeito que está acossado o tempo todo pelo seu próprio destino. As pessoas praticamente não o compreendem ou o odeiam e o cara continua na mesma até morrer. Não é um bom destino, o exemplo é péssimo e a paz, ou glória, sei lá, não pode ser conseguida às custas de uma pessoa que é alvo da violência das demais; é uma coisa que não existe, só na cabeça do mártir. Porque sempre vai ter um sujeito pronto pra agredir ou bater e esse cara, o que bate, não pode ter um mártir à mão - é antiético, ou imoral, que um sujeito, um povo, um governo, tenha um saco de pancadas vivo para exercer sua crueldade. Cabe a todo mundo não se deixar transformar em saco de pancadas. Sacos de pancadas não têm graça nenhuma. E finalmente não gosto do Quixote porque o citado cavalheiro é doido varrido. Não compartilho a idéia de que a loucura seja uma espécie de benção disfarçada. Não é. É um dos aspectos mais aterradores da miséria humana. Não existe charme na loucura e os loucos sofrem muito. Simples assim. Eu me lembro de já ter sido recriminado (quando a gente é muito jovem ainda e pode ser recriminado) por não gostar tanto de autores antigos. Não é bem o caso. Cervantes é antigo, sem dúvida (séc. XVI), mas meu grande herói ocidental remonta a quase três mil anos; Ulisses, da Odisséia. Bem mais antigo. Atribuído a Homero, mas a discussão sobre sua real autoria não importa. O que importa é que Ulisses, Odisseu, é o pai de milhares de personagens da literatura ocidental, assim como o Quixote é pai de outros tantos. Entre esses dois pólos gravitam um sem número de criaturas e seus autores batem em teclas semelhantes. O assunto rende, mas fica para uma outra ocasião. Guga Schultze |
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