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Terça-feira, 8/5/2007
Your mother should know
Pilar Fazito

Quando o tempo em Belo Horizonte vai esfriando e a gente chega no meio dessa estação outono-quase-inverno, com esse ventinho frio do lado de fora do edredom, é que vou entendendo por que cargas d'água posso rodar o mundo, morar na França, ou em Natal, ou em qualquer outro lugar desse globinho tão besta que sempre, sempre vou acabar cedendo a essa atração férrica e voltar para as montanhas de onde saí.

Minha amiga Ana E. já escreveu sobre sua aversão às viagens e isso já é um fato notório entre as rodas de escritores de BH. Todos aqui sabem: não tirem a Ana E. de seu ninho. A moça fica uma arara.

Não é o meu caso. Gosto de viagens. Gosto muito. Não pelo lado turístico da coisa. Aliás, eu detesto tudo o que é conhecido demais, badalado demais etc. E isso implica lugares famosos que vivem estampados em revistas. Prefiro conhecer e descobrir o que passa batido pela maioria das pessoas. Que seja uma rua qualquer da cidade em que moro ou de outro continente.

Gosto de world music, de preferência aquelas de Madagascar ou do Lapão. Qualquer coisa que seja novidade para a maioria dos mortais. Gosto de conhecer algo que não esteja à mão ou nos livros. Detesto ler best-sellers ou livros que estão no topo da parada de vendas e, por isso, não me peçam para ler o muçulmano da pipa enquanto ele não descer do "hit parade" literário. Isso também serve para o Código da Vinci, o Livreiro de Cabul etc.

Conheci um metaleiro muito engraçado e gente boa, certa vez, que tinha uma teoria interessante: "guarde sua opinião para si; eu tenho a minha". Era assim que o Horroroso, como o chamam, aplacava todo o fuzuê de uma turma animada que acabava de sair do cinema, comentando um filme qualquer. O Horroroso tem razão.

Filmes, músicas, livros, viagens, amizades devem ser degustados, não devorados para encher barriga.

Quanto às viagens, gosto de viajar sozinha ou, no máximo, com alguma companhia que saiba degustar uma viagem também. Isso significa: alguém que saiba apreciar as coisas CALADO. E cujo silêncio não incomode o meu. Nas minhas viagens, eu gosto de flanar pelas ruas, andar das 9h às 3h da manhã, incansavelmente. De entrar em tudo quanto é beco.

Aliás, becos, para mim, são espécies de portais para outros mundos, para universos paralelos. Em algumas cidades, esses becos nos transportam para o passado, para um mundo em que velhinhos sentados nos alpendres das casas afiam lápis com facões, enquanto alguns moleques jogam bola de capotão no meio da rua e quase acertam o cão amarelo que toma sol estirado entre as latas que marcam o gol.

Gosto de viagens porque gosto de colecionar imagens e sensações. Gosto de viagens porque elas não nos tiram de uma cidade, de um estado ou país, mas de nós mesmos. É uma oportunidade para olhar a gente de fora pra dentro e consertar aquilo de que não gostamos, retocar alguma outra coisa, enfim, tentar melhorar de algum jeito.

É saindo do eixo que a gente dá mais valor ao que tem ao redor de si todos os dias: livros, música, amigos, família etc.

Já disse antes que eu gosto de sair porque adoro voltar. Eu gosto mesmo é de me movimentar.

Cigana? Nômade? Riporonga? Já me deram tantas alcunhas... Mas eu acho que eu estou mesmo é para ave migratória. Dessas que vão e voltam. E que, no meio do caminho, realizam inúmeros exercícios de vôo em cima das casas, como forma de explorar o terreno.

Gosto de viagens silenciosas. Gosto de me sentir estranha e estrangeira, palavras que têm a mesma raiz latina e que são escritas da mesma forma em Francês. Gosto disso porque gosto mais ainda de voltar para o ninho, para o camisolão de flanela verde debaixo do edredom num outono-quase-inverno belo-horizontino, ao som de Beatles, relembrando a infância cor-de-rosa dentro da banheira da casa de uma vizinha bem velhinha, no bairro Santa Tereza.

Naquela época, eu gostava de visitá-la não apenas porque ela me enchia de balas, idéia errônea de meus irmãos que me achavam uma interesseira por isso. Não. Eu gostava mesmo da vovó Zazá. E mais ainda de seu banheiro cor-de-rosa que contrastava com o xampu Neopon azul. Eu subia as escadinhas e sempre inventava uma desculpa para ir ao banheiro. Só para me deitar naquela banheira cor-de-rosa enorme e ficar contemplando a vida cor-de-rosa que cheirava a Neopon azul. Eu queria mesmo era viver naquele banheiro. Naquele silêncio róseo-perfumado que confortava.

Eu não sabia, mas aos quatro anos eu já era uma ave migratória. Que fosse para a casa de cima, para explorar e contemplar o banheiro cor-de-rosa da vovó Zazá. Que importa? Eu já colecionava imagens e sensações. E, sim, na época, Beatles era exótico para mim.

* Agradecimento: às sábias poucas palavras de Horroroso.

Pilar Fazito
São Paulo, 8/5/2007

 

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