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Terça-feira, 15/5/2007
O desafio de formar leitores
Luis Eduardo Matta

Não sei se fiquei mais atento ou se, de fato, há uma preocupação crescente com o assunto, mas o fato é que, de uns tempos para cá, venho notando que são raras, aliás raríssimas, as semanas em que o tema "falta de leitores no Brasil" não é abordado em algum jornal, revista, programa de TV, site ou blog. Em geral, na forma de lamentos fatalistas, como se o destino houvesse condenado irremediavelmente o povo brasileiro ao semi-analfabetismo e à ignorância, decretando-lhe o desterro do conhecimento e da familiaridade com as letras. Os escritores, acomodados a essa idéia, solidarizam-se entre si, enxergando nesta escassez de leitores uma espécie de mal comum que afeta a todos de maneira equânime. Tanto assim que, quando um escritor, por uma razão qualquer, consegue atingir um número expressivo de leitores e destacar-se com vendas expressivas de seus livros, ele torna-se, imediatamente, persona non grata entre muitos de seus colegas, como se fosse um traidor da classe, que prostituiu sua arte, vendeu-a ao demônio chamado "mercado", em troca de fama e dinheiro. Não se iludam: Paulo Coelho, só para citar o exemplo mais famoso, não vem sendo severamente criticado ao longo dos anos apenas porque escreve dessa ou daquela maneira, mas, principalmente, porque faz um sucesso estrondoso. Não estou fazendo aqui um juízo da obra deste autor, ainda porque muitos que a atacam nunca leram uma linha sequer do que ele escreveu. Se ele escreve bem ou mal, parece ser um detalhe secundário aos olhos dos que o criticam. O seu grande pecado é a fama e a fortuna que auferiu e isso, num país como o Brasil, que se reconhece no fracasso, é uma heresia absolutamente imperdoável.

Em artigos que escrevi e em entrevistas que concedi, venho reafirmando que a leitura no Brasil tem dois fortes inimigos, que impedem a sua difusão entre a grande massa do povo: o primeiro deles é o ensino de literatura nas escolas, bastante problemático a meu ver e que precisa ser reformulado a fim de despertar nos alunos o gosto pela leitura. Nas escolas brasileiras que contam com aulas de literatura - pois muitas, como se sabe, não as possuem -, o ato de ler não é adequadamente ensinado, não há um real estímulo à leitura e, sim, uma abordagem excessivamente didática da literatura, com os alunos sendo obrigados a ler livros às pressas para responder a um teste de interpretação dali a algumas semanas. A partir de uma determinada faixa etária, que costuma variar dos 13 aos 15 anos, a situação piora, pois os alunos, acostumados com a linguagem contemporânea e direta da nossa literatura juvenil, são diretamente trasladados para os grandes nomes da literatura nacional. Neste momento, o gosto pela leitura, em geral, recebe o seu tiro de misericórdia. Não se trata, naturalmente, de contestar o valor e a grandeza desses autores - dentre os quais figuram nomes extraordinários do vulto de José de Alencar, Machado de Assis, Graciliano Ramos e Guimarães Rosa. E, sim, de avaliar se o conturbado período da adolescência, em que todos se encontram às voltas com dezenas de conflitos interiores e estão no auge da efervescência hormonal, é o mais adequado para introduzir uma pessoa no mundo maravilhoso da melhor literatura. Sobretudo, quando seguida de um teste de aferição de leitura.

Tomemos como exemplo José de Alencar, que é um escritor de que gosto muito. O que acontece quando um adolescente médio, sem uma vocação para a seara intelectual, é forçado, em sala de aula, a ler um de seus livros para responder a um teste dali a, digamos, um mês e meio? Eu respondo: de um modo geral, este aluno irá comprar ou pedir emprestado o livro imediatamente, lerá a primeira página, a achará complicadíssima e deixará o livro de lado, por quanto tempo lhe for possível. Quando estiver a poucos dias do teste, vendo que não pode mais postergar a leitura por conta da iminência do compromisso, ele irá, contrariadíssimo, renunciar aos seus prazeres cotidianos para, enfim, voltar a pegar no livro. A leitura será penosa e pesada, não somente por ser obrigatória, mas, sobretudo, por se tratar de um autor do século XIX. Ele precisará recorrer ao auxílio de um dicionário para compreender muitos dos termos contidos no livro, que estão em desuso há décadas. Com tantos obstáculos, este aluno dificilmente conseguirá assimilar e compreender a história em sua plenitude e, em muitos casos - se tiver condições para tanto - irá recorrer aos inúmeros resumos de livros que existem aos montes na internet. A maioria, aliás, de uma qualidade sofrível. Pois bem: o aluno fará o teste e, uma vez cumprida esta missão extenuante e desgastante, ele suspirará de alívio e passará, então, às atividades de lazer pelas quais nutre genuíno gosto: videogame, partidas de futebol, televisão, salas de bate-papo na internet, sites eróticos, filmes no cinema ou em DVD, idas a boates e barzinhos, etc.

O que eu quero dizer com isso? É simples: a leitura é uma atividade extremamente prazerosa, mas os jovens não são estimulados a encará-la dessa forma. A leitura, a partir da pré-adolescência, é ensinada como uma obrigação chata, maçante, tediosa e não como uma forma de lazer, que pode ser tão ou mais estimulante do que um jogo de videogame ou mesmo uma ida ao cinema. É preciso que se fortaleça a idéia de que a leitura somente se incorpora aos nossos cotidianos e passa a fazer parte indissociável das nossas vidas quando é vista como uma atividade lúdica, simples, agradável, estimulante. As telenovelas não fazem o sucesso que fazem entre milhões de brasileiros porque as pessoas são obrigadas a assisti-las e, sim, porque as novelas lhes proporcionam prazer e entretenimento. A mesma filosofia se aplica à literatura. Pergunte a qualquer pessoa comum que leia regularmente e ela lhe dirá que lê porque gosta de ler, porque tem prazer em ler. Então, esse é o caminho: repensar o ensino de literatura com base nessa filosofia. Acabando, por exemplo, com a noção de que os jovens "têm que" ler os clássicos desde cedo. Não adianta repetir o mantra de que "ler é importante", "ler é fundamental", quando na prática, a mensagem que se passa é outra: que "ler é chato", que ler, para usar uma expressão muito comum entre os jovens, "é um saco".

A minha querida amiga Ruth Rocha, consagrada escritora de livros infantis e infanto-juvenis, pessoa inteligentíssima com quem já tive o prazer de dividir a mesa inúmeras vezes em almoços e jantares memoráveis, costuma dizer acertadamente que existem três categorias de crianças/adolescentes: os que se tornarão leitores naturalmente, sem que seja necessário nenhum esforço para levá-los a isso; os que não se tornarão leitores de jeito nenhum, por mais atraente que a leitura se apresente a eles; e aqueles que se tornarão leitores se forem adequadamente estimulados. Estes constituem, a juízo de Ruth Rocha e a meu também, o contingente majoritário. Falo por experiência própria, porque faço parte da terceira categoria. Eu não tinha uma aptidão inata para a leitura, mas contei com excelentes e sensíveis professoras, que souberam me apresentar no momento certo, aos livros certos. E, a partir dali, segui sozinho.

É nesse processo que a literatura de entretenimento, tão escassa no Brasil e, sobre a qual, tenho falado vez por outra, cumpre um papel importante. E é aí que entra o segundo dos inimigos da leitura que mencionei mais acima: a excessiva deferência, com evidentes pitadas de arrogância, com a qual o objeto livro e a leitura são tratados por escritores, acadêmicos e intelectuais no Brasil. As mesmas pessoas que, pela sua posição privilegiada no topo da cadeia livreira, deveriam ser os agentes difusores da leitura entre o povo brasileiro, incumbem-se de colocá-lo no alto de um pedestal inacessível. Existe no Brasil uma entronização do livro, como se este fosse um objeto sacrossanto, um verdadeiro objeto de culto. Esses intelectuais estufam o peito e empinam o nariz para discorrer sobre os seus livros e autores de predileção, descrevendo-os com a pompa de quem narra episódios épicos e enchem a boca para desqualificar, gratuitamente e sem um critério lógico, uma miríade de livros que consideram "menores", estabelecendo, inclusive, uma classificação bastante curiosa do que seja um "leitor verdadeiro". A seu juízo, um leitor não é simplesmente uma pessoa que leia livros, e, sim, uma pessoa que leia os livros que eles consideram importantes, canônicos, geniais, as obras-primas escritas pelos grandes mestres. Mestres, em sua maioria, já mortos pois, dessa forma, é possível a qualquer um apresentar-se como especialista em seus trabalhos e, assim, apropriar-se da sua notoriedade sem maiores riscos, uma vez que o escritor não está mais vivo para apresentar contestações.

Fico perplexo e, muitas vezes até, horrorizado quando, ao visitar sites e blogs literários respeitáveis, deparo com discussões acaloradas e até mesmo raivosas sobre excelência literária, pessoas se digladiando e jurando inimizade eterna por conta de discordâncias absolutamente naturais e, eu diria até, banais, acerca de determinado escritor ou livro, como se do resultado desse embate dependesse sua própria reputação. Mas isso tem uma razão: pessoas de pensamento medíocre, que gostam de se apresentar como letradas e intelectualmente privilegiadas, valem-se de livros de grande reputação para se promover, num artifício similar ao que uma outra categoria ainda mais vazia de gente utiliza, exibindo suas roupas de grife. Enquanto estas últimas adoram anunciar que vestem roupas e assessórios Armani, Dior, Balenciaga ou Chanel, as primeiras não se cansam de anunciar serem amantes da literatura de Borges, Lobo Antunes, Clarice ou James Joyce, quando, na verdade, o que elas querem com isso é dizer: "Olhem para mim. Eu sou um intelectual. Eu tenho um soberbo gosto estético quando o assunto é literatura. Eu sou inteligente. Eu sou genial". Porque quem gosta, realmente, de literatura e, sobretudo, da grande literatura, não se rebaixa ao ponto de se embrenhar em rancorosas trocas de desaforos e exibições de pernosticismos que, de intelectuais, nada têm. Encara-a com naturalidade e num saboroso silêncio.

Então, temos, no Brasil, hoje, de um lado, a maioria do povo, alijada do mundo dos livros pelas razões já enumeradas. Do outro, uma pequena elite leitora, fechada em suas próprias convicções e contaminadas por toda sorte de preconceitos. Talvez seja no equilíbrio entre esses dois mundos que esteja a saída para fazer da população brasileira, uma população leitora. Isso não é utopia. Os brasileiros não são pessoas com uma deficiência genética que as impeça de imergir no mundo dos livros. Mas essa imersão deve acontecer de forma espontânea, sem cerimônia, com a leitura encarada com naturalidade, como uma atividade trivial de prazer cotidiano e não como um ato sacrossanto de ode à grandeza e à excelência intelectual. Ninguém deve se sentir obrigado a ler os clássicos ou a melhor literatura sempre. A leitura por si só, quando regular, já traz ganhos imensuráveis às pessoas: desde aumentar sensivelmente a capacidade de concentração de cada um, até a familiaridade com o texto escrito. Não é preciso ler Machado de Assis todos os dias para se chegar a tanto. Nesse ponto, eu discordo do crítico norte-americano Harold Bloom quando ele condena a série Harry Potter, alegando que, no futuro, os seus leitores se tornarão, no máximo, leitores de Stephen King e similares. Que sejam. Que venham os leitores de Stephen King. Quem dera o povão brasileiro, ainda hoje atolado num semi-analfabetismo quase patológico, fosse leitor em peso de autores como Stephen King. A afirmação de Harold Bloom é temerária, sobretudo pela perigosa generalização que ela contém. Como pode Bloom fazer tal diagnóstico com tamanha segurança? Ele, por acaso, conhece a fundo a intimidade de cada um dos milhões de leitores do Harry Potter mundo afora? Ele, por acaso, é capaz de adivinhar o itinerário que cada uma dessas pessoas cumprirá pelo universo dos livros? Pois, para encerrar esse artigo, vou relatar uma experiência minha a respeito: lá pelos idos de 2000/2001/2002, conheci alguns adolescentes de 13/14 anos que devoravam todos os livros protagonizados por Harry Potter. Recentemente, nos últimos meses, tive a oportunidade de reencontrá-los, já adultos com seus 20/21 anos aproximadamente. Pois bem: dois estão cursando faculdades de letras, os demais já devoraram boa parte da obra de Machado de Assis e Dostoievski e um é fã ardoroso de Thomas Mann. Todos me disseram que se apaixonaram pela leitura graças à série Harry Potter e que foi o bruxinho de Hogwarts que despertou neles o hábito e o gosto pela leitura. Posso estar equivocado, mas creio que esses jovens têm mais a nos ensinar sobre difusão da leitura no Brasil, oferecendo-nos caminhos viáveis para vencer esse desafio histórico, do que muitos dos venerandos teóricos que, encastelados nas suas convicções inabaláveis e encerrados em sua excelsa e hermética sabedoria, parecem totalmente distanciados da realidade contemporânea.

Luis Eduardo Matta
Rio de Janeiro, 15/5/2007

 

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