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Quarta-feira, 6/6/2007
Banville e o mar purificador da memória
Jonas Lopes

Sobre a memória, o maior especialista literário no assunto, Marcel Proust, disse ser uma loja em cuja vitrine estão expostas sempre as fotografias de uma única pessoa, a última. Para o escritor francês, aliás, em uma frase bastante reproduzida por aí, a verdadeira viagem do descobrimento não consiste em buscar novas paisagens, mas em ter novos olhos. Essas sábias lições são seguidas por Max Morden, narrador de O mar (Nova Fronteira, 2007, 222 págs.), romance do irlandês John Banville que saiu há pouco tempo no Brasil. E já chega coroado com o Booker Prize de 2005, vencido em uma disputa contra autores consagrados como Kazuo Ishiguro (Não me abandone jamais), Salman Rushdie (Shalimar, o equilibrista) e Julian Barnes (Arthur & George).

Max é um crítico de arte que acaba de perder a esposa para um câncer repentino e fulminante, que a devorou em menos de um ano. A tragédia abala o seu cotidiano, até então sossegado com a tranqüilidade de um casamento normal. Sob protestos da filha Claire, resolve se mudar para a cidade litorânea onde costumava passar os verões com os pais na infância. Sem grandes condições financeiras para bancar a estadia em hotéis, a família Morden se hospedava em pequenos chalés. Até que em certo ano Max conhece a família Grace, então hospedada em Os Cedros, uma espécie de pousada à moda antiga.

Décadas depois, Max, viúvo, aluga um quarto n'Os Cedros e tentar exorcizar a morte da esposa, mas principalmente para lembrar dos detalhes daquele verão tão estranho com os Grace. Era ainda uma criança. Apaixonou-se primeiro pela mãe, Mrs. Grace, e depois pela filha pré-adolescente, Chloe. Completam a família o misterioso Mr. Grace e o irmão gêmeo de Chloe, o mudo Myles. Os Grace são uma influência-chave na formação do jovem Max, uma presença tão forte que não são poucas as vezes em que mais parecem um exercício de memória do que uma presença real. Como que fantasmas criados por um senil, sentado em uma poltrona velha, em uma casa mais velha ainda, à espera de algo que tenha a cara da morte.

Fiel às teorias proustianas, Banville coloca em seu narrador novos olhos para investigar o passado. O narrador bem que tenta negar isso ao afirmar que "a memória não gosta de movimento, preferindo manter as coisas estáticas (...) como se fosse um quadro". Manter as coisas estáticas é tudo o que Max Morden não faz. Ele idealiza situações e pessoas, condena outras; pelo filtro difuso de sua lente, o passado retorna de uma maneira um tanto enviesada, trazido pelo mar com gosto de modorra, embora um tanto otimizado. "Na infância, a felicidade era diferente. Era muito mais uma simples questão de acumulação, de conseguir coisas - novas experiências, novas emoções - e ir aplicando todas elas". O passado, sob a pena de Max, parece sempre distorcido de modo que o favoreça. Vê defeitos em todos: a sua filha solteirona, que ele acredita ser virgem, a dona da pousada, mofando na frente da televisão e ao piano, o general que também se hospeda em Os Cedros e parece tão solitário e negligenciado. Todos defeituosos.

Podemos culpá-lo por escolher esse caminho para expiar sua dor? Porque o mergulho que o crítico faz rumo ao passado, ainda que um passado desvirtuado, nada mais é do que uma fuga. Diz ele: "o passado representa um refúgio para mim: corro ao seu encontro, na maior ansiedade, esfregando as mãos, tentando me livrar do frio presente e do futuro mais frio ainda". E então, Max, como em muitas outras situações de O mar, se contradiz, ao tentar condenar o passado que acabava de celebrar: "mas, apesar de tudo, que existência tem, na verdade, esse passado? Afinal, ele é apenas o que o presente foi tempos atrás; o presente que passou". Sua própria filha lhe acusa de viver no passado.

Além da dor, Max foge para o passado em busca de paz na consciência. Com a morte chegando, ele finalmente descobriu tudo aquilo que é. Um pai ausente e grosseiro, um marido que, se não o pior, esteve longe de ser melhor, um acadêmico medíocre, um filho egoísta, que pensava nos próprios pais "encobrindo a minha visão do futuro". Imerso em tanta amargura, a única forma de anular o sofrimento é escapar para tempos em que ainda possuía a salvaguarda da infância. Tempos em que os passeios e atividades com a família Grace soavam como um prenúncio de uma vida adulta, porém ainda sem as responsabilidades que ela acarreta - responsabilidades nas quais ele viria a falhar miseravelmente. Como no romance inteiro, os Grace sofrem a interferência da memória, e apenas o narrador, no alto de sua fantasia, não parece notar o quanto aquela família tinha de inócua. Trata-se de uma narração não-confiável, passível de erros, esquecimentos e manipulações.

O relato de Max Morden é amparado pela prosa um tanto particular de John Banville. Uma prosa que deve ser tida por muitos como ultrapassada. Foi-se o tempo, afinal, em que ser um estilista era garantia de qualidade. "Arte não é nada sem a forma", garantia Flaubert. Remetendo bastante a Proust, Henry James e Nabokov, as longas, pictórias e adjetivadas sentenças do irlandês mais parecem pincéis em ação. Às vezes os pincéis exageram na tinta e nos reparamos com frases esquisitas como "o branco recoberto por um verdadeiro craquelê de veiazinhas de um vermelho vivo" ou "linda testa abaulada", sem falar de adjetivos démodé como "amilscarada" e imagens como "cheiro de queijo" e "porcelana da parte de trás dos seus joelhos". Impossível negar, todavia, a excelência verbal de Banville, impecável no domínio de cada lampejo de raiva, cada pausa imprevista, cada digressão impregnada de referências e de esquinas pouco iluminadas no monólogo de seu protagonista. O autor não se importa em erigir sua história com a paciência de gotas que caem lentamente após o chuveiro ser desligado. Uma prosa barroca, um tanto deslocada em tempos de textos com estilo de roteiro de cinema...

Tentativa desesperada de aplacar o sofrimento da perda e do arrependimento, O mar é também um pedido de desculpas de um homem para consigo próprio, tentando colocar-se a postos para esperar a morte. E ao mesmo tempo em que o mar deixa em Max um gosto de maresia lembrando-o dos riscos de seu mergulho no passado, o fluxo da água o redime e carrega seus erros e violações morais. Ele agora está pronto, seja lá para o que vier depois da vida.

Para ir além





Jonas Lopes
São Paulo, 6/6/2007

 

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