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Quarta-feira, 30/5/2007 Escritor, jovem escritor Guga Schultze Muitos anos depois, em frente ao pelotão de fuzilamento (ou seja, a autocrítica), o ex-jovem escritor haveria de se lembrar daquela tarde remota em que seu editor o levou para conhecer o gelo da opinião pública... Esse romance, Cem anos... Ah, não sou lerdão, poderia começar assim. Ou já começou porque, como diz o título, nenhum jovem escritor é lerdo. Ou não quer se passar por lerdo - devagar e sempre é a vó, e com esse divagar (de divagação) não se vai ao longe, nem ao perto, nem a lugar nenhum. É verdade, não se chega a lugar nenhum e não existe a menor possibilidade de refrear um jovem escritor às vésperas de sua estréia pública. Pública, de publicar, de publicidade - essas coisas são irresistíveis, é claro. Mas o termo jovem escritor também não é apropriado. Atualmente (ou sempre?) se insinua nele um tom pejorativo, que provoca um certo automatismo nas pessoas, quando elas ouvem falar do jovem escritor: - Hmm... que novidade. Mais um?! De forma que, na justa medida das circunstâncias, é necessário mudar o termo, trocando apenas a ordem das palavras: escritor jovem. Já melhora muito, já é outra coisa, porque para a literatura (blá, blá, blá) existe o escritor, apenas. O fato de ser jovem, ou não, é completamente descartável. Pra falar a verdade, a juventude é descartável, infelizmente, por mais que nos agarremos a ela, com unhas e dentes e botox. Não no sentido de ser desprezível, não é isso, mas no sentido de que será descartada. Será carta jogada pra fora do jogo; não por nossas mãos, vixe, mas pelas mãos daquele sujeito de barbas brancas e tal, que carrega a ampulheta. Ninguém se lembra muito dele, mas nem por um único segundo ele se esquece de nós. Estamos de mãos atadas quanto a isso e o escritor jovem, enquanto literato, é, quase por definição, o sujeito que não sentiu ainda a força constritora dessas amarras. Qual a idade de um escritor? O fato da gente ver, em velhas fotografias, a barba branca de Tolstoi, é só uma miragem. A cara bochechuda de Neruda, na meia idade, não revela o moço de dezenove anos, vestido de preto, autor de Vinte poemas de amor e Uma canção desesperada. As poucas imagens de Emily Dickinson não falam nada de suas gavetas cheias de tempo e poemas, nenhum deles publicado em vida. Quem era mais velho, ou mais jovem: o adolescente Rimbaud ou o velho Walt Whitman? Quantos anos tinha Castro Alves, ao morrer, aos vinte e quatro anos? São questões irrelevantes, é fácil perceber, mas é mais difícil perceber as diferenças entre um jovem escritor e um escritor jovem. Talvez um pequeno questionário, endereçado aos interessados, ajude o discernimento: 1. Você voltaria pra trás, numa viagem de férias, para escrever algo, porque teve uma súbita inspiração? 2. Deixaria uma festa, ou a possibilidade de um encontro, digamos, amoroso, pelo mesmo motivo? 3. Esqueceria, enquanto escreve, sem se dar conta, da hora do almoço? Ou do jantar? Ou ambas? Com a barriga dando roncos, audíveis a mais de quatro metros? 4. Acredita em inspiração? 5. Tem alguma idéia sobre o que seria a inspiração? 6. Sente de repente, sentado no cinema, que o último tango em Cabul, ou o Homem Aranha XIX está, na verdade, atrapalhando a teia dos seus pensamentos? 7. Presta muita atenção aos letreiros dos filmes? 8. Gostaria de formar parte de um grupo de escritores? 9. Já pensou em qual é a melhor coisa que você já leu? E a pior? 10. Já pensou nos dez livros que te acompanhariam, para sempre, numa ilha deserta? (supondo que tenha lido, pelo menos, dez livros...) Bem, antes de continuar, é bom deixar claro que não me considero sábio o suficiente para responder, ou mesmo esperto, ou experto o suficiente para ter feito tais perguntas; elas são um recurso, meio idiota, de seguir em frente. Mas vamos lá. (1, 2, 3.) A primeira, a segunda e a terceira são perguntas claramente coercivas; o escritor jovem responderá "sim" às três, ainda que não totalmente convicto de que as coisas tenham que chegar a esse ponto. É, não tem mesmo. Mas é uma bela postura. Garcia Márquez respondeu "sim" à primeira e foi escrever, durante os dezoito meses seguintes, Cem anos de solidão. A segunda foi respondida por Paulo Mendes Campos, se não me engano. E a terceira por Faulkner, enquanto escrevia Enquanto Agonizo, à mão, um caderno sobre os joelhos, sentado num porão, junto ao gerador que supria uma universidade onde ele trabalhava como uma espécie de zelador. Todas as respostas foram "sim". (4, 5.) A quarta e a quinta pergunta são mais capciosas, ou ardilosas. Acredito que o jovem escritor poderá responder "não" às duas, mas o escritor jovem deverá, forçosamente, responder "sim" pelo menos à quarta pergunta. A famosa frase dos "noventa por cento de transpiração e dez de inspiração", aplicada a qualquer trabalho criativo, é a preferida das mentalidades burocráticas, que deslocaram a frase de seu contexto original, para cobrir com ela os rastros surpreendentes da genialidade. A frase foi cunhada por Thomas Edson, o inventor norte-americano, que não era escritor nem artista e, evidentemente, aquilo foi só o desabafo de um homem genial e exausto. O escritor jovem não deve acreditar piamente na propaganda da disciplina pura, não deve se fiar em procedimentos espartanos da educação e exercícios obstinados de uma datilografia, quase sempre medíocre, que promete transformá-lo em escritor. Nada vai transformar alguém em escritor. Quem não é, não é, e sem inspiração, nada feito. Sue a camisa, certo, mas ponha relâmpagos nessas páginas, meu. (6.) Ok, a pergunta seis: sim, o afegão apaixonado atrapalha, o Homem Aranha atrapalha, Britney Spears atrapalha, os macacos do ártico, do pólo norte ou de qualquer outro lugar atrapalham; um escritor não é muito chegado em distrações, não procura se distrair do jeito compulsivo que quase todo mundo apresenta. Muitos escritores são simplesmente chatos, pessoas meio fechadas que não querem ir ao circo, cinema, festas, shoppings, restaurantes, raves, campeonatos de vôlei, o tempo todo. Quando bebem, se bebem, não é socialmente. É pra ficar tonto, pra dar uma pausa no livro em andamento. Todo escritor tem esse livro em andamento, na cabeça. (7.) Não disse nada ainda a respeito, mas já é tempo: escritor é todo aquele que produz escritos, é certo. Mas me parece haver três tipos básicos de escrita: de poesia, de ficção e de registro. Os limites são muito difusos, sem dúvida, e todo mundo entende, mais ou menos, o que é poesia ou ficção. Uso aqui o termo registro, para o terceiro tipo, porque não encontro outro melhor. O escritor de registro é o cara que dá notícia de tudo, não fica em casa imaginando um herói, vai atrás dele para ver o que ele faz, e registra. Preocupa-se com o que dizem as pessoas, o que elas fazem ou deixam de fazer. Quando escreve bem, é o bom jornalista, crítico, ensaísta, biógrafo, historiador. Às vezes produz romances, teatro ou coisa que o valha, mas traz a marca inconfundível da análise e vibra sempre com as precisões. É o sujeito que lê um poema num pergaminho e se preocupa muito mais com a origem do papel e da tinta; é capaz de ler uma bula de remédio assim impávido, sem problema, e procura, num texto, a frase errada ou comprometedora. Em casos extremos, vira um stalker, o fuinha do texto. O negócio dele é a informação, lê mais as entrelinhas e escreve sobre elas, é o Sherlock Holmes literário. A internet é cheia deles, alguns até muito bons. De forma que a pergunta sete é respondida, positivamente, só por esse tipo de escritor. (8.) A pergunta oito tem uma intenção sexual... êpa, melhor dizer: antropológica. Separando os sexos. A maioria das escritoras jovens responderia "sim" a essa pergunta. As mulheres costumam zonear com a tradicional postura literária masculina, de introspecção e solidão. Estão alegremente dispostas a participar de reuniões, saraus e debates. Mostram seus originais para a roda de amigos, para professores, para desconhecidos, estão abertas às críticas e orientações por parte dos demais, acham natural a dinâmica da troca de opiniões enquanto se trabalha um texto. Acreditam, em suma, que a literatura possa ser um trabalho coletivo. Por que não? Paradoxalmente, o sexo feminino produz o que há de mais individualista, pessoal, egocêntrico (no sentido de girar sobre seu próprio eixo), na literatura. De Virginia Woolf a Clarice Lispector, de Emily Brontë a Adélia Prado e, talvez em menor grau, é assim a maioria das grandes escritoras. Talvez o individualismo feroz da mulher a proteja naturalmente das associações, de forma que ela pode se dar ao luxo de compartilhar coisas que para um homem seria impensável. Escritores homens não deixam vazar os sentimentos, as energias que promovem sua literatura. Não é só porque não queiram. Simplesmente não podem, senão sifu. (9, 10.) As últimas perguntas, nove e dez, valem pra todos, mas também é dirigida especialmente para as mulheres, que não gostam de fazer comparações genéricas. Normalmente são muito seguras do próprio tino em dizer eu gosto disso, eu não gosto daquilo; mas se abstêm de comparar coisas entre si, coisas que estão mais ao longe e que não as afetam pessoalmente. O velho Harold Bloom, o crítico americano que todo mundo leu e não gostou, diz uma coisa fundamental: ao ler um texto, todo crítico deveria se perguntar "melhor, igual ou pior a quê?". Estamos aqui falando de escritores, mas é necessário que o escritor tenha um mínimo de senso crítico. É bom que ele procure sua turma nas letras, que tenha seus heróis ou modelos, que tenha seus inimigos desprezíveis. Alguns escritores se movem exclusivamente contra a sua nemesis, contra a sua insuportável sensação de déja-vu, contra o fantasma de um outro escritor, que lhe sorri zombeteiramente e que ele não consegue alcançar. A resposta do escritor jovem às últimas perguntas, creio, deveria ser "sim". A literatura, esse mar tempestuoso, agradece. Enfim, tenho certeza de que o escritor jovem (ou iniciante, que seja), vai mesmo publicar seu livro. Tudo bem, no final das contas. Mas, pelo menos, que tente não ser apenas mais um jovem escritor. Guga Schultze |
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