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Segunda-feira, 4/6/2007
Publique, mas não seja estúpido
Verônica Mambrini

"Foi logo na montra da livraria que descobriste a capa com o título que procuravas. Atrás desta pista virtual, lá foste abrindo caminho pela loja dentro através da barreira cerrada dos Livros Que Não Leste, que de cenho franzido te olhavam das mesas e das estantes procurando intimidar-te. Mas tu sabes que não te deves deixar assustar, que no meio deles se estendem por hectares e hectares os Livros Que Podes Passar Sem Ler, os Livros Feitos Para Outros Usos Além Da Leitura, os Livros Já Lidos Sem Ser Preciso Sequer Abri-los Por Pertencerem À Categoria Do Já Lido Ainda Antes De Ser Escrito. E assim transpões a primeira muralha dos baluartes e cai-te em cima a infantaria dos Livros Que Se Tivesses Mais Vidas Para Viver Certamente Lerias Também De Bom Grado Mas Infelizmente Os Dias Que Tens Para Viver São Os Que Tens Contados. Com um movimento rápido passas por cima deles e vais parar ao meio das falanges dos Livros Que Tens Intenção De Ler Mas Antes Deverias Ler Outros, dos Livros Demasiado Caros Que Podes Esperar Comprar Quando Forem Vendidos Em Saldo, dos Livros Idem Idem Aspas Aspas Quando Forem Reeditados Em Formato De Bolso, dos Livros Que Podes Pedir A Alguém Que Te Empreste e dos Livros Que Todos Leram E Portanto É Como Se Também Os Tivesses Lido. Escapando a estes assaltos, avanças para diante das torres do reduto, onde te opõem resistência
os Livros Que Há Muito Tempo Programaste Ler,
os Livros Que Há Anos Procuravas Sem Os Encontrares,
os Livros Que Tratam De Alguma Coisa De Que Te Ocupas Neste Momento,
os Livros Que Queres Ter Para Estarem À Mão Em Qualquer Circunstância,
os Livros Que Poderias Pôr De Lado Para Leres Se Calhar Este Verão,
os Livros Que Te Faltam Para Pôr Ao Lado De Outros Livros Na Tua Estante,
os Livros Que Te Inspiram Uma Curiosidade Repentina, Frenética E Não Claramente Justificada.

E lá conseguiste reduzir o número ilimitado das forças em campo a um conjunto sem dúvida ainda muito grande mas já calculável num número finito, mesmo que este relativo alívio seja atacado pelas emboscadas dos Livros Lidos Há Tanto Tempo Que Já Seria Altura De Voltar A Lê-los e dos Livros Que Dizes Sempre Que Leste E Seria Altura De Te Decidires A Lê-los Mesmo.

Libertas-te com uns ziguezagues rápidos e penetras de um salto na cidadela das Novidades Cujo Autor Ou Assunto Te Atrai. Mesmo dentro desta fortaleza podes abrir brechas nas fileiras dos defensores dividindo-os em Novidades De Autores Ou Assuntos Não Novos (só para ti ou para toda a gente) e Novidades de Autores Ou Assuntos Completamente Desconhecidos (pelo menos para ti) e definir a atracção que eles exercem sobre ti com base nos teus desejos e necessidades de novo e de não novo (do novo que procuras no não novo e do não novo que procuras no novo). Já logo na vitrine da livraria, identificou a capa com o título que procurava. Seguindo essa pista visual, você abriu caminho na loja, através da densa barreira dos Livros que Você não leu."

Se você for Italo Calvino, pode muito bem começar um livro assim; seu leitor vai até achar engraçado. O excerto faz parte do primeiro capítulo de Se um viajante numa noite de inverno, em que o personagem principal é um alegórico Leitor, com maiúscula (aqui prestigiada uma tradução portuguesa, com um sabor único emprestado pela segunda pessoa do singular). O trecho dá conta de mostrar, como talvez nenhum outro já escrito, a variedade de opções e a imensidão de livros aos quais se tem acesso entrando numa livraria qualquer. A vida contemporânea é permeada de livros - cedo ou tarde se há de esbarrar neles e a capacidade de ler é cada vez mais indispensável para viver com um mínimo de dignidade. Portanto, acho que por um bom tempo o livro - seja de papel ou de outros formatos - ainda terá seu espaço amplo e garantido no mercado. Até porque é um veículo cada vez mais barato e democrático. Nunca se vendeu tanto esse suporte de idéias e informações.

Diz o ditado, roto de tanto uso em tantas bocas, "o papel aceita tudo". Essa humilde permeabilidade a qualquer mente é a glória e a desgraça do mundo escrito, acolhendo igualmente as mais brilhantes e as mais obtusas. A escrita, aliás, começou ligada a esse registro perene, gravada na pedra e com garantia de durabilidade de milênios, privilégios de quem tinha poder, desde a escrita cuneiforme, na Mesopotâmia, até a evolução da escrita hieroglífica no Egito antigo. Nascida com esse uso restrito a atividades nobres, como documentos e inscrições sagradas, hoje é instrumento de qualquer um em sociedades massivamente alfabetizadas para escrever bilhetes e tomar ônibus, atividades que de nobre não têm nada. À literatura, escrita forjada de forma tão precisamente descrita no poema de João Cabral de Melo Neto, "O ferrageiro de Carmona", fica um lugar seleto e prestigioso.

E nesse panteão, cada deus tem seu lugar. No topo, estão os chamados clássicos. E aí evoco novamente Calvino, que dizia que "um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer". Mudam a crítica e seus valores, seja a jornalística ou a acadêmica, através dos tempos e das culturas, e via de regra os clássicos permanecem. Inovadores na linguagem e na narrativa, ricos de possibilidades de interpretação, muitas vezes registros visionários do Zeitgeist, seminais na literatura que os sucede, são obras de valor indiscutível. Não precisam necessariamente ser prazerosas para o gosto do leitor contemporâneo, mas foram fundamentais historicamente na literatura, estágios naturais para que se chegasse aos valores e tendências de hoje. São pais de todas as outras obras. Na seqüência, haverá grandes criadores de histórias e manipuladores da palavra, capazes de criar grandes livros. Os escritores restantes se dividirão entre os talentosos, de pequenas contribuições e boas histórias, aos medíocres e ruins, cujas obras serão esquecidas, por mal escritas e irrelevantes.

A literatura não se descola da sociedade. Reflete, ainda que não intencionalmente, a evolução tecnológica e os valores morais e estéticos (coadunando ou rompendo com eles), e se transforma continuamente. A representação do povo grego em Ulisses, a transformação de valores morais da Madame Bovary de Flaubert, o fluxo de consciência das obras de Virginia Woolf e a falta de sentido do mundo de Kafka são pequenas chaves pinçadas de um oceano de exemplos. Cabe aos autores perceber e criar - não necessariamente publicar. Esse trabalho fica para os editores, que freqüentemente erram o cálculo do que venderá nas livrarias ou do que tem valor e qualidade mas, de qualquer forma, por mérito ou poder, são eles que definiram (e por muito tempo tiveram esse poder de forma exclusiva) o que chegaria às mãos dos leitores de sua época. Mas de poucos anos para cá, a Internet pôs esse poder absoluto em xeque.

A evolução da Web foi extremamente veloz. As questões técnicas, que impediriam não-iniciados de utilizarem as novas ferramentas e usufruir delas foram resolvidas tão rápido que não deu tempo para que a linguagem e formatos literários desse novo suporte se estabelecessem. Não sei dizer se já houve um breakthrough que definisse a literatura dos próximos anos, em forma ou conteúdo. Qual é o clássico da Internet? O maior, ou o primeiro? Esse clássico existe, está ainda por ser escrito? Podemos pensar a literatura que se serve dos formatos digitais com os mesmos critérios que se convencionou entender a literatura de papel nos últimos séculos? Até o surgimento da Internet, a literatura (assim como muitas formas de arte) foi marcada por contribuições individuais - a autoria sempre foi a grande referência. Será que, na Internet, a pulverização é mais importante? A existência de vários bons blogs (e a existência de um público que os freqüente e discuta) é mais importante do que um ícone?

A geração que faz sua literatura em blogs precisa lidar com novas características que fazem o consumo literário ser diferente também. Praticamente não há gargalo. Em princípio, qualquer um pode ter um blog. Talvez estar hospedado em um grande portal seja equivalente a estar em destaque na estante de lançamentos de uma livraria. Mas, diferentemente do caso da livraria, há muitos caminhos para os escritores de Internet chegarem aos seus leitores e conquistarem uma audiência fiel e, com o tempo, ampla. Outras questões que se põem hoje como se fossem novas não parecem tão novas para mim.

Uma queixa freqüente dos novos autores (de blogs ou de livros) é sobre vendas, para os publicados em papel, ou falta de dinheiro, para os blogueiros. Passa uma idéia de que o mercado tenha uma obrigação de gerar renda para autores, de que se você escreveu e trabalhou em algo supostamente tão bom, tem direito de viver disso. Literatura é uma aposta (assim como cinema, artes plásticas ou música). Há uma diferença brutal em criar um produto cultural ou de entretenimento consumível e uma obra pessoal. Mercado é mercado, e não tem absolutamente nada de imoral ou errado em criar produtos consumíveis. Até porque para esse tipo de produto, geralmente existe um aparato de marketing e publicidade que não tem outra função senão alavancar vendas. Mas quem assume a própria liberdade criativa precisa criar meios para sustentá-la. João Cabral de Melo Neto e Carlos Drummond de Andrade eram funcionários públicos, assim como Rubem Braga era jornalista - não sei dizer se as crônicas de Rubem Braga, que não tenho pejo em assumir como de grandes qualidades literárias, alguma vez foram escritas com a pretensão de serem publicadas em livro. Saíam num dia no jornal e no dia seguinte estavam na feira embrulhando peixe.

Um dos meus blogs preferidos (ao qual eu sempre voltava, como volto sempre para livros queridos) é o da Índigo. Índigo é escritora (já tem livros de papel publicados), faz de roteiros a reportagens para pagar as contas, sem nenhum problema. Tem idéias de blogs fantásticos, com começo, meio e fim (coisa que me parece faltar um pouco na literatura de internet). Dela, não sei muito mais do que a própria literatura, o que talvez seja delicioso para um autor. Com a Internet, passou a ser blogueira profissional (sinal de que o mercado pode assimilar esse formato para um bom autor), mas, que pena: o 73 Obsessões, que me introduziu ao mundo da Índigo, saiu do ar. Há tempos, passei por lá e parece que, como eles vão ser publicados em papel, não podem estar mais on-line. Ainda não refleti sobre as implicações que isso tem. Não sei se compraria um blog em papel. Mas certamente tenho curiosidade em folhear um livro da Índigo, quem sabe comprá-lo. Em um dos blogs, há um post em que ela conta as reações de seus leitores. Os de papel raramente vão além de "Li seu livro, muito legal!", enquanto os de Internet comentam, debatem e criticam o que ela escreve.

Será que é óbvio demais avisar aos candidatos a escritores dos riscos a que se expõem? Nenhum escritor nasce maduro, embora uns comecem com vigor e qualidades literárias (leia-se talento) que outros não terão nem com uma vida de aperfeiçoamento. A validade de um livro como Lira dos vinte anos, de Álvaro de Azevedo, é uma prova de que se pode produzir literatura de qualidade na juventude. Mas todo jovem autor precisa de gaveta, nem que seja questão de alguns meses, para fazer uma auto-avaliação. Nem todo bom crítico é necessariamente bom autor, mas todo autor deveria tentar desenvolver o senso crítico necessário para ler o próprio texto com o mínimo de distanciamento. E nessas horas, opinião de mãe não vale. Muito material com potencial se perde porque o autor não se deu o tempo e o distanciamento necessários para que as eventuais falhas e fraquezas fossem corrigidas e aperfeiçoadas. E dou razão à crítica que não quer gastar vela boa com defunto ruim; ler demanda tempo e energia.

É preciso também paciência. Se um autor for bom, a Internet é uma grande ferramenta. Diante da infinidade de opções que qualquer um tem para ocupar seu tempo e dinheiro com lazer, cultura e entretenimento, o baixo custo da Web e a facilidade potencial de se atingir praticamente qualquer tipo de leitor, só se queixa quem quer holofotes, e não ser lido. Mas aí, já não tem nada a ver com literatura, é uma mistura de vaidade, teimosia e burrice mesmo.

Verônica Mambrini
São Paulo, 4/6/2007

 

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