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Terça-feira, 12/6/2007 Recordações de Sucupira Luis Eduardo Matta Antes que alguém pense, eu aviso logo: não sou saudosista. Não tenho crises de nostalgia de épocas pretéritas que vivi ou que não vivi, nem acho que o passado era um paraíso em comparação com o presente turbulento, declaração comum em doze de cada dez lamentos das pessoas que dedicam a sua vida a só enxergar as mazelas dos dias atuais. No entanto, isso não me impede de, sim, observar e deplorar a irrefreável rota de decadência que certos setores da sociedade vêm experimentando de uns tempos para cá. E poucos exemplos dessa realidade são mais evidentes do que a programação dos canais privados de TV aberta, hoje atolada numa fossa de mediocridade e baixaria, que só faz piorar cada vez mais. Já há um bom tempo deixei de acompanhar a grade da TV com regularidade. Nos últimos quinze anos, devo ter assistido a, no máximo, umas cinco ou seis novelas e, mesmo assim, via um capítulo ou dois por semana, quando muito. Nunca me interessei por programas de auditório, não tenho paciência para assistir a filmes na TV, salvo um ou outro, e Big Brother, para mim, ainda é, tão somente, um personagem do livro 1984, de George Orwell. Mas a televisão brasileira nem sempre foi assim. Houve épocas em que ela era boa, muito boa. Os telejornais informavam de fato, em vez de apenas cuspir de qualquer maneira as principais manchetes e as novelas transbordavam de criatividade, com enredos inteligentes, personagens bem construídos, artistas excelentes de forte formação teatral e inovação, algo que quase não se vê mais. Quem viveu a década de 1980 sabe do que eu estou falando e há de concordar comigo. E quem, nos cinco primeiros anos desta década, acompanhou os episódios de O Bem Amado na Rede Globo há de concordar mais ainda. O Brasil vivia, então, o governo João Figueiredo, o último do regime militar, cujos tempos de chumbo haviam, felizmente, sido sepultados anos antes, durante a administração de seu antecessor, Ernesto Geisel. Era uma época de abertura política, anistia, pluripartidarismo, eleições para governador, prefeito e legislativos, otimismo e euforia com a expectativa da volta da democracia e da entrega do poder aos civis. Havia a possibilidade de que eleições diretas para presidente fossem convocadas em 1984 ou 1985, o que acabou não acontecendo. Ao mesmo tempo, ocorria um abrandamento gradual da censura nos meios de comunicação, o que provocou uma explosão criativa em todos os segmentos das artes e do entretenimento. Inspirado na novela de mesmo nome, exibida em 1973, o seriado O Bem Amado refletia bem essa época. Seu autor, Dias Gomes, além de um exímio escritor e dramaturgo, era um homem culto e muito politizado, além de um observador atento do cotidiano e das idiossincrasias daquele Brasil mais "profundo", o Brasil distante das ruas glamourosas dos bairros nobres do Rio de Janeiro ou de São Paulo. Dias Gomes foi, a meu ver, o melhor autor de novelas que já passou pela nossa televisão e O Bem Amado, sua obra-prima, o auge da teledramaturgia brasileira que, nunca mais, teve uma produção à altura. As únicas que se aproximaram sem, contudo, superá-la foram Roque Santeiro (também de Dias Gomes), em 1985, e Que rei sou eu?, de Cassiano Gabus Mendes, em 1989. Esta última, valendo-se de uma proposta e uma ambientação totalmente distintas (a novela se passava no fictício reino de Avilan, em 1786), também reproduziu a efervescência política daquele ano marcante, em que aconteceriam as primeiras eleições presidenciais diretas em quase trinta anos. A trama de O Bem Amado se desenrolava em Sucupira, uma fictícia cidadezinha do litoral da Bahia, administrada por Odorico Paraguaçu (assim mesmo, com "ç"), antológica interpretação de Paulo Gracindo. Odorico era um coronel da região, mau caráter, corrupto e demagogo, cujo objetivo prioritário na sua gestão era inaugurar o cemitério municipal. O problema era que ninguém morria em Sucupira e o prefeito começou a fazer de tudo para concretizar a sua meta. Mandou, inclusive, chamar de volta um cangaceiro com fama de matador, Zeca Diabo (Lima Duarte, numa interpretação igualmente antológica), que deixara a cidade anos atrás, para que matasse alguém. Zeca Diabo, porém, era devoto do Padre Cícero e havia feito um juramento a ele de que nunca mais tiraria a vida de uma pessoa. Ele cumpriu sua promessa até o último capítulo da novela, em 1973, quando assassinou a tiros o próprio Odorico dentro da prefeitura. Ironicamente, foi a sepultura do prefeito que acabou inaugurando o cemitério. Anos mais tarde, no episódio de estréia do seriado, Odorico "ressuscitou" de dentro do caixão, numa cena engraçadíssima, e reassumiu o comando da cidade. Uma das características mais interessantes de O Bem Amado era a ausência de maniqueísmo. Não existiam personagens bons e maus. A impressão era a de que, salvo o padre, a delegada e alguns coadjuvantes, ninguém ali prestava. O núcleo político se dividia em duas partes: situação e oposição. A situação era encabeçada por Odorico e seus aliados: Dirceu Borboleta (Emiliano Queiroz), o seu gago e nervoso secretário e as três irmãs Cajazeiras, interpretadas, na novela, por Ida Gomes (Dorotéia Cajazeira) Dirce Migliaccio (Judicéia "Juju" Cajazeira) e Dorinha Duval (Dulcinéia Cajazeira). Dorinha Duval não participou do seriado, sendo substituída, então, por Kleber Macedo, que viveu a prima Zuzinha, juntando-se às outras duas irmãs. Dorotéia Cajazeira era a principal aliada política de Odorico e líder da sua bancada na Câmara dos Vereadores. A despeito dos bons modos, da elegância e da esmerada cultura, ela era uma das maiores cúmplices das tramóias e negociatas do prefeito. Já a oposição a Odorico era liderada por Lulu Gouveia (Lutero Luiz), um dublê de dentista e vereador, que freqüentemente protagonizava discussões violentas com Dorotéia no plenário da Câmara. Lulu tinha o apoio do jornalista Neco Pedreira (Carlos Eduardo Dolabella), editor de A Trombeta, o principal jornal de Sucupira. A Trombeta vivia denunciando a administração de Odorico que, por sua vez, a acusava de ser uma "gazeta marronzista, calunista, esquerzóide e subversiventa". O fato é que tanto Odorico e seus correligionários, quanto a oposição não valiam um níquel furado. As irmãs Cajazeiras, que posavam de damas corretas e compactuavam com as artimanhas de Odorico, eram de uma hipocrisia hilariante. Já Lulu Gouveia, que se dizia de "esquerda", lutava contra Odorico apenas para tomar o seu lugar na prefeitura. Não era um homem preocupado com o bem do povo e sim um político tão inescrupuloso quanto o prefeito, que também fazia suas armações e traquinagens. Para completar, havia Zeca Diabo, um ex-matador arrependido que, volta e meia, era acometido por ataques de cólera e caía na tentação de atirar em alguém. Chegava a empunhar a arma, enquanto suplicava ao Padre Cícero para contê-lo e, em seguida, mais calmo, voltava atrás e ia correndo à igreja se confessar com o "vigário". O Bem Amado era ― e ainda é ― um retrato perfeito da política brasileira. Além de ter sido a minha primeira experiência com a teledramaturgia (eu tinha, em 1981, seis anos de idade), o seriado foi, também, o meu primeiro contato com a política. Como ele era transmitido às sextas-feiras, era-me permitido ficar acordado até um pouco mais tarde e além do mais, não havia nenhuma preocupação por parte das famílias sobre o conteúdo da programação das emissoras, pois não existia, naquele tempo, a baixaria e a vulgaridade que imperam hoje. Ou seja, em 1981 uma criança podia assistir a uma novela ou seriado às 22 horas (horário em que, se estou bem lembrado, passava O Bem Amado), sem o menor risco de ter a inocência da sua infância agredida por uma cena mais forte. Hoje em dia, é perigoso até ela assistir a uma novela das sete, que chega a ter cenas mais escabrosas das que eram exibidas nas madrugadas da década de 1980. Creio que qualquer estudo sociológico sobre a degradação da sociedade no Brasil deve passar, obrigatoriamente, por uma análise da programação da TV e sua evolução (ou seria "involução"?) ao longo das últimas décadas. Eu costumava assistir a O Bem Amado com o meu avô Newton e ele ia me explicando os pormenores da trama, associando-os a fatos políticos reais que freqüentavam as manchetes dos jornais brasileiros. Meu avô era um homem sábio, muito honesto e ético e bastante politizado, embora não tivesse apego a nenhuma ideologia. Conviveu durante anos com políticos e conhecia muito bem a podridão que sempre imperou no meio. Ele costumava me repetir uma frase que até hoje me acompanha: "O poder sempre corrompe os idealistas". Algum tempo mais tarde, aos treze anos, depois de começar a estudar história geral na escola e de ler A revolução dos bichos, de George Orwell, essa certeza se enraizou ainda mais em mim, de modo que, desde então, guardo um grande ceticismo em relação à política e desconfio muito dos homens públicos que se dizem "limpos" ou "puros". Afinal, não há como se manter limpo quando se chafurda num lamaçal putrefato como é o caso da política e, mais especificamente, da política brasileira. Os sucessivos escândalos que, semanalmente, estampam as primeiras páginas da nossa imprensa não me deixam mentir. Mas descontando esses pormenores, a verdade é que O Bem Amado foi um seriado divertidíssimo. Apesar das suas falcatruas, torcíamos o tempo todo por Odorico. Era um personagem altamente carismático, simpático e impagável, sempre com uma idéia mirabolante para pôr em prática, a fim de capitalizar prestígio e votos a seu favor. Odorico gostava de falar difícil, com pompa, e acabou criando variações curiosas de palavras e expressões da língua portuguesa. No dia do seu regresso à prefeitura depois de ressuscitar no cemitério, por exemplo, ele discursou ao povo nas ruas, afirmando, em dado momento, que os seus inimigos "não sabiam que eu, Odorico Paraguaçu, filho de Eleutério e neto de Felinto Paraguaçu, tenho o corpo fechado e lacrado, excetuando os orifícios que a natureza achou por bem deixar em aberto". Num outro discurso, proferido durante a solenidade de inauguração do novo prédio da prefeitura, ele anunciou: "É com a alma lavada nas águas detergentes do dever cumprido e enxaguada no sabão da confiança, que eu declaro inaugurado o Palácio Municipal". Em outra ocasião, ao ser perguntado se contava com a proteção de jagunços, ele respondeu rispidamente: "Não sou, nem nunca fui jaguncista. Tenho somentemente uma guarda pessoal, talqualmente Ronald Reagan, Pinochet e outros estadistas visados pelos inimigos da democracia". Já durante a festa de inauguração de uma bica d'água numa favela de Sucupira, Odorico, empolgado, chegou a citar Castro Alves ao declarar: "Bendito aquele que derrama água, água encanada, e manda o povo tomar banho". Sua expressão mais emblemática, no entanto, era "vamos pôr de lado os entretantos e partir para os finalmentes", sem contar os inúmeros termos que empregava em cada frase, como "talqualmente", "emborasmente", "apenasmente", "deverasmente", "agoramente", "pratrasmente", "prafrentemente", "demagogista", "sem-vergonhista", "safadista", "inescrupulento", "esquerda arruacista", entre muitos outros. Um dos momentos mais memoráveis do seriado talvez tenha sido o discurso, em inglês, que Odorico fez em frente à sede das Nações Unidas, em Nova York, para onde ele e sua comitiva, composta por Dirceu Borboleta, as irmãs Cajazeiras e Zeca Diabo, viajaram às custas dos cofres públicos, com a mirabolante missão de apresentar a candidatura de Sucupira como nova sede da organização: "Ladies and gentlemen, let's put aside the howevers and go straight to the endlies." (sic!) ("Senhoras e senhores, vamos pôr de lado os entretantos e partir para os finalmentes.") "I am here to kill the snake and show the stick." ("Estou aqui para matar a cobra e mostrar o pau.") "Because, with me, is bread bread, cheese cheese." ("Porque comigo é pão pão, queijo queijo.") Odorico já ia soltando um "Sucupira, awaysly..." ("Sucupira, emborasmente..."), quando foi interrompido pela chegada da missão de um país africano, cujo embaixador tomaria posse na ONU naquele dia. O episódio foi ao ar, se não me engano, em 1982 e é simplesmente imperdível. Hoje em dia, fala-se numa refilmagem de O Bem Amado, nos moldes do que já aconteceu com outras novelas da época, como Anjo Mau, Pecado Capital e A Escrava Isaura. Os idealizadores da iniciativa devem pensar muito antes de levar o projeto a cabo, por várias razões: a principal delas é o fato de que Dias Gomes e Paulo Gracindo estão mortos, e ambos, penso eu, são insubstituíveis. O primeiro, na redação primorosa e sem igual do texto; e o segundo, na interpretação magistral do protagonista. É impossível pensar em Odorico Paraguaçu sem pensar em Paulo Gracindo. O saudoso e inesquecível ator incorporou o personagem com tamanha perfeição que parecia ter nascido para dar vida a ele na TV. O mesmo se pode dizer de Lima Duarte, como Zeca Diabo; de Emiliano Queiroz, como Dirceu Borboleta; de Ida Gomes, como Dorotéia Cajazeira e de Lutero Luiz, como Lulu Gouveia. Poucas vezes na televisão brasileira um elenco foi tão bem escalado, poucas vezes artistas tão bons estiveram reunidos numa mesma produção, todos com o perfil exato para os papéis que interpretaram. Isso tudo aliado à criatividade, cultura, lucidez e inteligência de Dias Gomes fizeram de O Bem Amado o grande momento da televisão brasileira em todos os tempos. O que a Rede Globo poderia fazer, isso sim, seria lançar uma caixa de DVDs com a novela ou a série (ou ambas). Aliás, não entendo como, até o momento, ela não fez isso, já que inúmeros seriados antigos, nacionais e internacionais, como Malu Mulher e Magnum já se encontram disponíveis em DVD há algum tempo. Além do mais, seria ótimo que as novas gerações, nascidas da década de 1980 em diante, pudessem conhecer O Bem Amado, não somente (ou "não somentemente", como diria Odorico) para ter contato com a melhor dramaturgia, como para, através do microcosmo de Sucupira, enxergar, de forma bem-humorada, as entranhas do Brasil e perceber que a política por aqui nada mudou em todo esse tempo. Luis Eduardo Matta |
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