busca | avançada
52329 visitas/dia
1,9 milhão/mês
Quarta-feira, 27/6/2007
A Pirâmide B
Guga Schultze

Uma das coisas que a gente acaba descobrindo, com o tempo, é que uns noventa e cinco por cento dos livros de ficção existentes são extremamente parecidos. Tipo, você leu um, leu todos.

Outra coisa a se considerar é que os livros se agrupam em função de parentesco, seiva, gênero, estilo, etc, e se amontoam em pirâmides, onde o livro que está no topo é aquele que mais reúne as qualidades inerentes à sua família (e apresenta menos os defeitos dos demais irmãos). Geralmente é, também, o livro que originou toda a literatura que vem na sua cola, ou seja, o resto da pirâmide.

Mas nem sempre. Shakespeare, por exemplo, é a essência de todos os escritores ditos shakespearianos - o que significa, numa análise bem superficial, a capacidade exímia na criação de personagens e profundidade na concentração da linguagem, capaz de criar extrema densidade psicológica (sic), frases inesquecíveis e momentos idem.

Mas Shakespeare não foi o primeiro com essas características. Ocupa, sim, o topo de sua pirâmide porque seu brilho tornou shakespearianos até seus antecessores. A cronologia não é tão significativa nas letras, assim como o tecido do tempo é extremamente maleável, em literatura.

E lembrando, claro, que Shakespeare não está nos noventa e cinco por cento da massa literária, mas faz parte dos cinco por cento dos escritores verdadeiramente originais.

É bom subir as pirâmides e vasculhar, lá em cima. Procurar algumas coisas mais originais e entender, por exemplo (e de uma vez por todas), que o Código da Vinci não é nenhuma novidade. Se você gosta de livros desse tipo, dê uma olhada em Os meninos do Brasil, de Ira Levin, uma ficção dez vezes mais interessante e melhor escrita. O melhor mesmo é trocar Dan Brown e sua hipótese boba, por Dee Brown, Enterrem meu coração na curva do rio. Não tem nada a ver, claro. Só pra mostrar que tem mais Brown por aí, bró.

Toda essa conversa é para aliviar um pouco a frustração, bastante comum em nós, leitores, ao nos depararmos com a muralha de livros disponíveis, uma muralha que cresce continuamente com centenas de lançamentos, entre novidades, best-sellers e reedições.

A frustração é não sabermos se estamos escolhendo o livro certo, o melhor lançamento. Ou se estamos desprezando um ótimo livro em favor de um livro menor, ainda que digam que é bom. Dependendo de como elogiam um livro, começo ali mesmo a achar que deve ser uma porcaria. O contrário também acontece, às vezes.

Seguindo a lógica da minha mal esboçada teoria da pirâmide, seria bom escalar a pilha em questão, em busca da obra que resume tudo. Ou que justifica a montanha inteira.

Dedico minha atenção aos jovens leitores, esperando poder passar alguns atalhos, deixando de lado os retalhos e indo diretamente ao filé. Tem que haver alguma predisposição carnívora aqui. Algo de um espírito predador, bem armado com seus óculos de lentes polidas, caçando na penumbra dos sebos, na ilusória luz das livrarias mais badaladas, resistindo heroicamente ao efeito astigmático das lombadas comprimidas nas estantes... e cuidar ainda para não ser abatido pela presa, em sua caçada solitária... Ó, vós, caçadores, caçai, pô!

Minhas indicações têm, infelizmente, algumas restrições graves: nada de literatura brasileira, muito menos da brasileira e contemporânea (mesmo porque não conheço quase nada). Nada de poesia (ainda que uma única poesia possa ser maior que um romance de mil páginas).

Falarei de livros, não de autores, porque eles não escrevem todos os livros no mesmo calibre. E citarei apenas obras de ficção.

Alguém já disse que a literatura é uma invenção anglo-saxônica, parcamente imitada por outros idiomas. Às vezes tendo a concordar com isso e, com algumas exceções, estou falando dessa literatura.

E, finalmente, tratarei do que considero livros de formação. Eles possuem, em comum, uma certa "energia positiva", desculpem o termo. Não é propriamente a "alta literatura" (ainda que isso seja meio discutível), mas é, seguramente, um caminho possível para se chegar lá.

Então, reunindo tudo isso, alguns livros que considero fundamentais, lá do alto da pirâmide B da literatura (para jovens leitores):

O Livro da Jângal, de Rudyard Kipling (1865-1936)
A história de Mowgli, o menino criado por lobos, numa Índia sob o domínio britânico. Kipling foi tachado de colonialista, o que provavelmente ele era. Mas Mowgli, ao contrário de Tarzan, é nativo. Os animais são nativos. A selva é nativa e tem uma beleza profundamente nativa. Os animais se expressam numa retórica que beira o teatro de Shakespeare. Um teatro de alto nível, montado num cenário imerso num mistério permanente. A selva de Kipling é uma criação literária que deixa no chinelo qualquer outro lugar com pretensões míticas. Na tradução de Monteiro Lobato, porque traz a história completa e, de lambuja, vários contos excelentes, entre eles um dos melhores já escrito em qualquer idioma: "Jacala, o crocodilo".

Mr. Sherlock Holmes
Ainda que Edgar Alan Poe (1809-1849) tenha inaugurado o gênero (Os assassinatos da rua Morgue), a investigação detetivesca deve a Conan Doyle (1859-1930) praticamente tudo. Toda a literatura policial foi influenciada por Holmes, o detetive que não era policial, fleumático como só um inglês poderia ser, independente, usuário de morfina, violinista, boxeur, misógino, sem nenhum drama pessoal sequer e estranhamente livre de paixões. De Hercule Poirot (Agatha Christie) a Nero Wolf (Rex Stout), passando por Philip Marlowe (Raymond Chandler), Maigret (Georges Simenon) e Sam Spade (Dashiell Hammett), todos devem a ele, porque um detetive deve investigar e conduzir sua investigação com um mínimo de inteligência. Até Umberto Eco homenageou Holmes em O nome da rosa. Todos os livros de Sherlock Holmes são legais, mas o primeiro, Um estudo em vermelho, é sua apresentação.

A Odisséia, de Homero
Um livro de quase três mil anos de idade, atribuído a um poeta cego que não o escreveu, apenas o declamou para quem quisesse ouvir. Alguém, claro, ouviu atentamente. E o compilou. Há aqui uma exceção porque A Odisséia, geralmente, é considerada como alta literatura. Mas a força da obra não está propriamente em sua retórica, que é difícil de traduzir, mas sim na história em si. De forma que pode-se ler A Odisséia numa tradução livre e adaptada à nossa língua sem perder muita coisa. Seria um "clássico da literatura juvenil", caso tivesse sido escrita mil ou dois mil anos depois. Narra a viagem, a aventura inigualável de Ulisses (Odisseu) de volta pra casa, onde ele chega vinte anos depois de deixar as muralhas de Tróia, finda a guerra. É também uma obra sem traço de cristianismo, sem pobrezinhos oprimidos e opressores malvados. Para analisar A Odisséia, talvez seja necessário escrever um livro, maior que a própria. Basta dizer que Ulisses é o pai de todos os heróis (heróis mesmo, não mártires ou losers) da literatura ocidental.

A ilha do tesouro, de Robert Louis Stevenson (1850-1894)
Entre os "clássicos juvenis", como Robinson Crusoé (Daniel Defoe), As viagens de Gulliver (Jonathan Swift), Os três mosqueteiros (Alexandre Dumas) e outros, vá direto à Ilha do Tesouro e descubra um dos personagens mais marcantes já criado nas letras, o pirata Long John Silver. Stevenson nos surpreende com a construção extremamente moderna, algo que só se tornaria praxe no século seguinte, o anti-herói, o bandido charmoso e não desprovido de humanidade, capaz de nobreza ou fria crueldade, dependendo das circunstâncias. Apesar de não ser o personagem principal da história, Long John ofusca os demais, do momento em que aparece, como cozinheiro contratado de um navio, até a revelação do pirata que foi e que nunca deixou de ser. É um homem moderno, se insinuando num romance do séc. XIX e que, pela pura força de seu carisma pessoal, parece que obrigou seu autor, Stevenson, a salvá-lo da forca, numa cena comovente em que o narrador, o menino Jim, deixa que o prisioneiro fuja do navio, num bote a remos, levando um saco de moedas surrupiadas do tesouro. Jim se perturba, mas não se sente culpado. E quem poderia?

Demian, de Herman Hesse (1877-1962)
Não tão famoso como O lobo da estepe mas, talvez, o melhor livro de Hesse. Confessional, levemente incorreto, "politicamente incorreto", Demian, o livro, traz o personagem nietzscheniano que lhe empresta o nome, um rebelde "com causa", ainda que essa causa não fosse compreendida de imediato pelo jovem Sinclair, o narrador, e tampouco pelos seus primeiros leitores. Hesse traça (ai, ai, ai) um painel da família alemã, a classe média alemã, que viu chegar e absorveu, alguns anos depois, a ideologia nazista. Uma leitura ainda perturbadora, considerando-se essas implicações. Hesse era um humanista ferrenho, mas o retrato que ele pinta tem as cores sombrias da tempestade que se aproxima.

O pequeno Príncipe, de Antoine de Saint-Éxupery (1900-1944)
Um pequeno livro que inaugurou um filão sentimental onde muitos outros escritores se atolaram, irreversivelmente, tentando emular a mesma profundidade de sentimentos. Uma pequena parábola da ficção fantástica, uma pequena bomba de explodir geleiras, embrulhada, de uma forma meio kitsch, em papel de presentes.

Nove estórias, de J. D. Salinger (1919)
O apanhador no campo de centeio é o livro que mantém as finanças de Salinger, até hoje. O ermitão americano escreveu um eterno best-seller, que resiste há décadas nas livrarias, em sucessivas reedições. Vendendo, claro. É o sonho de todo escritor, diga-se de passagem. Mas o livro fundamental de Salinger é o Nove estórias. Nove contos soberbos, todos relacionados com os membros da família Glass, que Salinger criou e desenvolveu em alguns poucos livros: Pra cima com a viga, moçada & Seymor, uma introdução e Franny e Zoey. Em Nove estórias, a arte de Salinger está em sua plenitude. O ermitão é, ou foi, um dos melhores contistas que já passou pelas páginas de um livro. Salinger faz com que a gente queira ser parte da família Glass.

Alice no País das Maravilhas e Alice no País do Espelho, de Lewis Carroll (1832-1898)
A crítica literária não sabe bem onde encaixar as duas Alices de Carroll porque são livros estelares, isto é, cheio de pontas, apontando para inúmeras direções. E todas vão dar em algum lugar (êpa). Atrás da psicodélica trama há um jogo em andamento, atrás do jogo, uma lógica afiada; atrás da lógica você encontra um absurdo; atrás do absurdo, uma história infantil, feita para distrair uma garotinha de oito anos de idade, Alice Lidell, que viveu numa época sem a loucura da TV ou da mídia ou de programas infantis. Sem o empenho constante de educadores que tentam estimular a criatividade e imaginação nas crianças. A julgar pelo livro, ela não precisou de nada disso. Carroll ainda é autor de outro livro fundamental, um longo poema de humor - o humor particular e assustador de Carroll: A caça ao Turpente. E que poema.

As minas do Rei Salomão, de Eça de Queiroz (1845-1900)
Apesar de não ser o autor, que é o inglês H. R. Haggard (1856-1925), Eça fez uma tradução que ficou melhor que o original. Uma aula de português, fluida como um rio, com a vantagem de ser uma aventura que Indiana Jones e Lara Croft leram, quando crianças.

As Crônicas Marcianas, de Ray Bradbury (1920)
Não é o maior livro da ficção-científica, mas é um dos melhores. Também é um dos mais originais. Bradbury é bom com os títulos e bom contador de histórias. O livro pode ser considerado um livro de contos, todos relacionados com pessoas que estão chegando, estão partindo, ou estão em Marte. Bradbury não é lógico e plausível como Isaac Asimov (Fundação; Eu, Robô), ou científico como Arthur C. Clark (2001, uma odisséia no espaço; Encontro com Rama), por exemplo. Ou esperto como Philip K. Dick (Blade Runner, o caçador de andróides). Mas é instigante, propõe perguntas estranhas (e poucas respostas), é gótico, visionário e introduz um clima estranhamente poético, portanto original, num gênero que costuma ignorar esse tipo de linguagem. Dele também é Uma sombra passou por aqui. Tão bom quanto.

A volta do parafuso, de Henry James (1843-1916)
Uma história de terror, um suspense psicológico envolvendo crianças, fantasmas e uma provável psicose. Uma obra atípica dentro da produção, um tanto enfadonha, proustiana, de Henry James. Considerada, talvez, como obra "menor" entre seus romances; mas James era um grande escritor e quando resolveu escrever sua novelinha sombria, o parafuso realmente se torce e se crava no alvo. Bem mais certeiro que Drácula, de Bram Stoker ou Frankenstein, de Mary Shelley, ou mais eficaz que o vale tudo apelativo de um Stephen King. A tradução literal do título, The turn of the screw, não funciona bem em português. O sentido original, pra nós, ficaria entre "a hora da verdade" e "quando a porca torce o rabo", quer dizer, não ia dar certo. Deixe estar.

O morro dos Ventos Uivantes, de Emily Brontë (1818-1848)
O extremo passional feminino; o que um homem deveria sentir por sua amada e a força de um destino implacável, açoitando famílias, casais e charnecas escocesas. Se adaptada, seria um clássico entre as telenovelas globais. Emily, como suas duas irmãs, Charlotte e Anne, todas escritoras, era uma moça bem comportada. Mas debaixo daqueles espartilhos e corpetes havia uma tempestade silenciosa. Ainda bem. Ela escreveu o seu livro, sem igual.

Fiz uma pausa pro café e voltei. Nessa pausa me lembrei de mais uns dez livros, pelo menos, mas acho que ficaria excessivo. Alguns autores e seus personagens estão chateados comigo, não queriam ficar de fora da lista. Julio Verne e o capitão Nemo (Vinte mil léguas submarinas), Karl May e Winnetou. Edgar Rice Burroughs e Tarzan. Walter Scott e Ivanhoé. Edmund de Amicis. Não estão fora, juro. E todo pessoal da pulp fiction, de Ellery Queen a Ed McBain. Talvez, numa outra pirâmide, numa outra piração, numa outra ocasião, quem sabe?

Guga Schultze
Belo Horizonte, 27/6/2007

 

busca | avançada
52329 visitas/dia
1,9 milhão/mês