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Quarta-feira, 4/7/2007 Barba e bigode Guga Schultze Tenho que admitir que, às vezes, me fascina olhar pra cara de um sujeito e imaginar de onde ele tirou a idéia. Aquilo é uma idéia, aquela minúscula barbicha na ponta do queixo, aquele cavanhaque todo estiloso, finamente torneado, a costeleta pontuda, à la Star Trek, colocados no rosto de forma a passar uma mensagem específica: "Eu sou um sujeito original, sou moderno (sic), sou diferente e com muita personalidade. Cê não tá vendo?" Pra falar a verdade, não vejo não. Estou apenas imaginando a arte necessária para manter uma barbicha dessas. Espelhos, ângulos e certa maestria com o aparelho de barba. Uma maestria "delicada", diga-se de passagem. Ou então imagino que exista um barbeiro que entenda a psicologia particular desses caras. Quem precisa de terapia com um barbeiro desses? Além disso, geralmente existe um piercing, um brinco na orelha, alguma coisa furando o canto dos lábios, das sobrancelhas, alguma coisa espetando a narina. Imagino que dentro da água isso deve criar problemas. Nunca vi esses caras nadando, por exemplo. Em dias de chuva e trovoada, esses caras devem ficar escondidos, dentro de casa, com medo dos raios. Já ouvi falar de um caso em que um sujeito desses tomou um raio no nariz, falando num celular. Os amigos, os outros membros da tribo, acrescentaram mais piercings na cara, porque acreditaram que Deus, ou alguma outra divindade gótica, finalmente, estava olhando pra eles. Hã... Mas estou falando é de um atributo físico masculino que me fascina um pouco (êpa!) nas suas múltiplas manifestações. Calma. Acalmai-vos. Meu interesse é puramente filosófico; pensei até em fazer uma investigação histórica a respeito, mas não quero compactuar com o ridículo da coisa, porque quando a gente começa a estudar, pesquisar, aquilo vai ficando importante e, mais dia, menos dia, a gente perde o foco crítico original. Começa a entender do assunto, e entender é justificar. Barba e bigode. Estou falando disso. Já escrevi sobre cabelos femininos. Agora, talvez, esteja olhando o outro lado da moeda. E é só para encerrar minha "bilogia" capilar (por que tudo tem que ser uma "trilogia"?), ou então é porque os carecas, volta e meia, pensam em cabelos. Deve ser por isso. A primeira coisa que a gente vê, num homem barbudo, é que ele não tem face. Tem meia face, se tanto. É o homem da face oculta, um belo título e, por não ter metade do rosto à mostra, consegue esconder, num primeiro contato, muito mais que a metade de suas fraquezas. A barba, a barba grande, gera uma impressão de pétrea impassibilidade no sujeito que a cultiva. Dependendo do sujeito, essa impressão pode durar até um eventual segundo encontro. Excepcionalmente, até o terceiro, vá lá. Daí pra frente a gente percebe, geralmente, que o barbudo é só mais um sujeito normal, mal escondido atrás da moita. Um sujeito que morde os lábios, trinca os dentes, treme o queixo, engole em seco, empalidece, cora, engasga, balbucia, tem espinhas e engole sapo, como todo mundo. E essa touceira, que cresce contínua e insistentemente nas faces do indivíduo como uma erva daninha, imune à maldição dos genes da calvície, é uma espécie de aberração da natureza. O homem, como espécie animal, é bastante feioso. Digo, o ser humano. Se você já viu um campo de nudismo sabe o que estou falando. Por falar nisso, é interessante notar como as pessoas mais horrorosas são as que mais gostam de ficar peladas. Mas isso é outra história. A barba é um atributo masculino e só começou a ser domesticada quando o homem desenvolveu um mínimo de tecnologia capaz de gerar a fabricação de instrumentos cortantes. (É bom, de vez em quando, poder se referir ao gênero humano assim: "o homem". As feministas não gostam nada disso mas, nesse caso, é o termo correto. Em todos os sentidos). Deve ser difícil fazer a barba com uma pedra lascada, então é de se supor que, a partir da Idade do Bronze, lá por volta de 3.000 A.C. (ou antes), o homem começou a descobrir seu próprio rosto. Também em todos os sentidos. A sombra dos reis barbudos (que muito tempo depois ia virar título do livro de José J. Veiga, e que não tem nada a ver) ainda era comum nas paredes dos palácios do mundo e, imagino, quantas vezes um rei se encaminhou lentamente para seus aposentos reais, à luz dos archotes, com toda sua hirsuta dignidade inalterada, depois de ouvir as notícias que um mensageiro qualquer trouxe: "Os vikings estão aí fora, botando fogo na cidade toda, ó, meu senhor!" Debaixo da grande e imponente barba os dentes batiam incontrolavelmente, o queixo tremia num choro convulso e o rei ia murmurando uma prece, "ai, mamãe, tô ferrado...". Mas, para a sorte daquele rei barbudo, ninguém via nada, a não ser que ele era um valoroso rei, impávido na adversidade. Santa barba. Pedro I, o czar russo apelidado de Pedro, o Grande, quis abolir a barba do reino, lá pelo início do séc. XVIII, numa tentativa de modernização da antiga Rússia. Todos os camponeses russos eram barbudos. Ninguém me tira da cabeça que Pedro, o Grande, lançou as sementes da revolução que acabou com os czares, dois séculos depois. Lidando com a própria barba. Foi só um passo para que a conturbada e complexa mente masculina começasse a perceber que ela, a barba, podia ser uma espécie de bandeira particular, um aviso, tipicamente masculino, de homem pra homem e dali para o mundo: eu sou fodão. E começaram, os homens, a viajar na maionese. E como. Alguém já reparou no nosso Pedro I, imperador do Brasil? Aquela barba? O que é aquilo, santa mãe do céu. Duque de Caxias? La même chose. Era a tentativa de imitar um elefante marinho ou o quê? O almirantado inglês, séc. XVIII e XIX, usava muito essa combinação de suíças ao vento com bigodões. É uma barba de capitão de navios. A explicação pode ser simples: os ventos do mar crestam os lábios e os capitães usavam uma echarpe cobrindo a boca. Aquilo incomodava a barba do queixo e era melhor raspar ali. Alem disso eles ficavam mais parecidos com aquelas morsas que punham a cabeça pra fora da água, pra ver os navios, e os capitães achavam os bichos bacanas. O cavanhaque, a combinação de pêlos rodeando a boca, até o queixo, é mais simples para se deduzir de onde se originou: cavaleiros medievais usavam uma cota de malhas, como um véu, caindo dos lados do rosto. Uma cota de malhas metálicas belisca insistentemente as bochechas, principalmente se tiver cabelos presentes. O pobre templário não podia decapitar os sarracenos direito com as bochechas pinicando o tempo todo, então era melhor raspar a barba dos lados da cara. Eles eram maus, aqueles caras. Tanto que o cavanhaque foi transplantado para adornar a cara do capeta, e a imagem pegou. O capeta ganhou seu famoso cavanhaque pelas estripulias que ele mesmo inspirou àqueles bravos cavanhaques, digo, cavaleiros defensores da fé. A gente entende um Barba Negra, por exemplo, o famoso pirata que aterrorizou a marinha mercante européia, entre os séc. XVII e XVIII. Ou a barba de um Walt Whitman, tão densa e lírica quanto sua poesia. Tolstói, Karl Marx e suas tramas intrincadas, capilares. Rasputin e sua rede de intrigas palacianas, mais negra que a cor da barba. A gente entende os Hell's Angels, a gangue de motoqueiros que barbarizava na Califórnia, nos anos 50 e 60, como vikings ressuscitados. Todos barbudos, ou seja, bárbaros. A etimologia dessas palavras deve ser convergente, claro. Os bárbaros que assolaram Roma eram simplesmente aqueles barbudos nortistas. E ainda tripudiavam dos caras-pelada. Genseric, rei dos vândalos, fazia umas trancinhas na ponta dos bigodes. As mulheres se penduravam ali... êta. Agora, o mais difícil é a seção dos bigodes. Compreender Nietzche não é difícil. O difícil é compreender o bigode de Nietzche. Supondo que ele escrevesse à mão e sentado, como é que ele via o que estava escrevendo? Como disse uma amiga minha, Cida Velásquez, não dá pra confiar num sujeito que tem o bigode maior que o cérebro, santo deus. Os bigodudos são homens nervosos, na maioria. São tensos e exigentes. Se o cara for baixinho então, é um inferno. Existem também os apenas "aflitos", mas aí já é outra coisa. Nos poucos centímetros quadrados entre o lábio superior e o nariz, existe uma quantidade incrível de mensagens subliminares possíveis. Bigodões, como o de Stalin, que servia para ocultar seu sorriso de satisfação quando sabia que alguém tinha morrido. Quanto mais, melhor. Já o de Grouxo Marx era pra rir discretamente dos vivos, que nunca eram mais vivos que ele. O bigode histriônico de Chaplin, um quadradinho preto da largura do nariz. Funcionava como foco visual no rosto maquiado de branco. A gente via de longe o danado. Em Hitler o mesmo bigode era pavorosamente associado àquela estética rígida, abrupta e mecanicista que o nazismo desenvolveu, ou pretendeu desenvolver. A passo de ganso. Há ainda o bigodão português, em forma de arco de cupido. Há o bigodinho fino, rente ao lábio, metido a cruel, do gigolô. Há os espetados, tipo dez para as duas (velhos relógios...), dos espadachins franceses. Palitavam os dentes com aquilo. Há o do Cantinflas, só nos cantos da boca. O do Fu Manchu, que é o mesmo, mas comprido, imitando salgueiros chorões, coisa de chinês. A variedade é notável, assim como a criatividade é altíssima e inversamente proporcional ao senso de ridículo. Ok, ao bom senso, então. Ainda não inventaram o "monogode", ou seja, o bigode pela metade, de um lado só. Mas não custa muito e já aparecem uns por aí. Curiosamente, algumas facções bárbaras não são barbudas nem bigodudas. Gangsters, por exemplo. O negócio de gangster é a costeleta. Padres católicos, em geral. Médicos, com aquelas caras brancas, parecendo um sabonete com olhos e boca. E eventualmente com um conselho sobre a higiene. Lembrei-me, outra vez, do Millôr Fernandes: "O cabelo humano é um negócio engraçado: cresce na cara do calvo/ mas não na careca do barbado." Ouço, outra vez, na memória, aquela voz, que vinha da TV, naquele programa inesquecível, há muitos anos: "meu nome é Enéas!", e penso que está na hora de botar as barbas de molho. E os homens de cara limpa, na verdade, estão mais escondidos ou são menos transparentes que os peludos, mas não se iludam: ali dentro tem um barbudo em potencial, tão doido quanto os demais. Guga Schultze |
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