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Quinta-feira, 19/7/2007 A internet e a arte marginal Diogo Salles O Digestivo Cultural sempre foi uma grande arena para discussões relevantes, mas um tema se destacou pelo número de decibéis: "publicar em papel x publicar on-line" ou, se preferir, "mídia impressa x internet" se tornou a grande batalha entre os gladiadores da mídia. Ainda procurei tomar partido, mas, confesso, não consegui abraçar nenhuma causa. Nem mesmo a da internet, que é o meu berço. Como sou cartunista, fica difícil entender o porquê de todo esse ódio, mas fica fácil olhar tudo isso de fora e fazer uma análise mais independente. Por isso vou meter minha colher nessa sopa e oferecer novos ingredientes para o tema. Sou daqueles que ainda acreditam que esses dois mundos terão de aprender a conviver junto. Não que ache que jornalistas e blogueiros devam dar as mãos e sair pelas ruas cantando "We are the world", não. Mas que exista o mínimo de respeito ou, pelo menos, tolerância entre ambas as partes. Podem me chamar de sonhador, se quiserem, mas vou tentar convencê-los mesmo assim. Os jornalistas de formação não se conformam em ter que dividir o espaço com os "interneteiros". Antigamente o jornalista trazia em seu texto uma aura imaculada, de verdade absoluta, que não permitia questionamentos ou indagações. Seu rosto e nome eram estampados no jornal e isso era o mais próximo que se chegava dele. Era uma estrela quase inatingível. Aí a internet e a blogosfera chegaram para destruir todo o glamour. Ninguém (ou quase ninguém) tinha diploma de jornalismo, os textos eram abertos a interpretações, sugestões e críticas. O leitor estava mesmo mudando. Além de participar, agora ele podia entrar em contato com o neojornalista quando quisesse, podendo mandar e-mails, perguntas, fotos, sugerir pautas. Não bastasse isso, o jornalista ainda tinha de se conformar que o jornal, depois de lido, invariavelmente era transformado em mictório de cachorro, enquanto que, na net, o texto permanecia publicado e, mesmo quem chegasse atrasado para a leitura, encontraria seu espaço reservado para comentários. Chega a ser irritante, não? Se eu fosse um jornalista-estrela, faria de tudo para transformar a internet no meu urinol pessoal. No mundo dos dibujos, aconteceu essa mesma revolução com a popularização do Photoshop e outras ferramentas gráficas que possibilitaram aos artistas usarem tanto o pincel quanto a tablet. Entre ilustradores e cartunistas essas discussões existem, mas em menor escala. Em todos os encontros, salões de humor, workshops e afins o tema é levantado, mas nunca se chega a grandes conclusões. No caso dos salões, até passaram a aceitar trabalhos impressos por computador, mas os prêmios mais cobiçados continuam na mão dos que usam pincel e tinta. Ninguém dispensa um original, com aquela textura única. A arte "orgânica", por ser mais sofisticada, ainda é a mais valorizada. Mesmo assim, a internet popularizou bastante o trabalho de caricaturistas e chargistas, e, no fim, ela é sempre vista como uma boa (na verdade, a única) alternativa para quem está iniciando. Foi o meu caso. Quando comecei profissionalmente, a internet apenas engatinhava no Brasil, e ainda levaria algum tempo até que ela se tornasse a minha ferramenta de trabalho. A carreira de um cartunista já começa em meio a controvérsias. Muitas pessoas tentam demovê-lo da idéia, dizendo que isso não dá dinheiro, que você não conseguirá, que você precisa entrar para o "mercado de trabalho". Enfim, o que esperam de você é que seja "normal", como todos os outros. Esperam que você se vista decentemente e vá todos os dias ao escritório garantir seu dinheiro e status. Sim, por um momento acreditei nisso e fui à luta. Depois de inúmeras tentativas infrutíferas, fiquei com a sensação de que arrumar emprego naquela época estava mais difícil do que acertar na loteria. Tive de me contentar com bicos em congressos de medicina, onde fiz até credenciamento, fui operador de slides e tradutor. Resignado em minha mediocridade, tranquei-me no quarto, me enchi de brios e, ao invés de engolir sapos, passei a caricaturá-los. Mas havia a dificuldade que todo iniciante enfrenta: onde publicar? O traço é ruim, os desenhos parecem ter saído de uma aula de artes do primário... O que fazer? Após mais alguns empregos e experiências frustrantes, arrumei uma vaga para trabalhar como webdesigner em uma pequena agência multimídia. Ali eu descobri que a internet não servia apenas para mandar e-mails. Mesmo que eu tenha visto a bolha estourar bem na minha frente, aquela era uma linguagem nova e eu estava aprendendo a usá-la de diversas formas. Abriu-se o leque e as possibilidades de quem não tinha por onde começar. Conheci caminhos diferentes e, por um momento, o sonho de ganhar a vida como cartunista ficou adormecido. Comecei a achar que o desenho seria apenas uma ferramenta para o meu trabalho, sem perceber que o desenho era e sempre será o meu trabalho. A internet e a agência é que eram as minhas ferramentas. Nesses quatro anos em que trabalhei lá, o pessoal do "mercado de trabalho" me via como um deles. Mesmo que eu não usasse terno e gravata, eu ia todo o dia para o "escritório". Que legal! Finalmente eu era considerado um trabalhador! Aquela coisa de ganhar a vida "fazendo desenhinhos" só podia ser imaturidade mesmo. Eu era um "deles" agora. Estava me sentindo importante com isso. Não por muito tempo. Depois de três anos na agência, o cartunista despertou novamente, e estava faminto, cheio de fúria, querendo vingança. Qual era, então, o primeiro passo? Lançar meu site pessoal, claro. Lá eu poderia finalmente publicar minhas charges e caricaturas, saciando, assim, aquele desejo antigo, ainda disfarçado de "hobby". Passei mais um ano conciliando o emprego com o sonho e finalmente em 2004 preparei o avião para o meu vôo solo, que passou por turbulências e quase caiu em 2005, mas que conseguiu levantar vôo em 2006. É aí que eu entro na questão "papel x internet". Aprecio os dois, mas, se a internet não tivesse existido, eu seria hoje mais um burocrata frustrado que trabalha em qualquer coisa apenas pelo dinheiro. Consegui algumas das minhas primeiras publicações aqui, no Digestivo. Para um pequeno mailing, comecei a enviar semanalmente as charges da hora e me tornei um "cartunista on-line", mas não podia ficar só nisso. Eu precisava me estabelecer na profissão. Após o desastroso ano de 2005, desengavetei uma idéia que me espreitava há meses: lançar um livro. Calma, não era uma tentativa desesperada de ganhar uns trocados. Naqueles dias confusos, eu era pura contradição e, àquelas alturas, a única coisa na qual eu conseguia acreditar era nesse livro. Ironicamente, fiz pouquíssimas charges neste mesmo ano dos incontáveis escândalos no governo do PT. As eleições de 2006 prometiam ser uma batalha ética. Foi aí que tive a idéia de contar a história, de forma cronológica, do primeiro mandato do governo Lula com uma linguagem bastante ácida, em forma de quadrinhos e de charge política. Eu tinha coisas a dizer e os eleitores (e leitores) pareciam estar abertos ao debate. Eu tinha certeza que haveria pelo menos uma editora que se interessasse. Não houve. O tempo era curto. O livro tinha que sair antes das eleições e lancei-o de forma independente. Mas é bom que se diga: só o fiz porque eu acreditava ter um bom material nas mãos e por saber que tinham leitores me esperando. Foi uma situação única onde tudo se convergiu. Além disso, o timing era perfeito. Meu trabalho também já estava mais amadurecido com as publicações na web. Era hora de arriscar. Jamais esperei ficar rico ou famoso com isso. O importante era "se pagar" e isso já consegui. Então pra quê sair em livro? Primeiro porque o formato de quadrinhos, para a internet, ainda não funciona. A resolução dos desenhos é limitada, a leitura (principalmente dos balões) é ruim, e, sim, a arte gráfica torna-se muito mais poderosa quando impressa. É muito diferente de lançar um romance, onde não há preocupações com escala de cores, resoluções ou diagramações mirabolantes. Além disso, eu acreditava cegamente que poderia quebrar essa barreira e provar pra mim mesmo que podia fazer tudo isso sozinho. Foi uma iniciativa ousada, onde eu queria conquistar algum prestígio, sim, mas, acima de tudo, buscava o respeito que nunca tive como profissional. Posso dizer que, nas páginas do livro, renasci como cartunista. Subi um degrau na profissão. Reconciliei-me com ela. Era uma etapa que precisava ser experimentada e sei que eu não teria conseguido isso se o livro tivesse saído em PDF ou copyleft. Antes de o livro sair, me choviam propostas obscenas do tipo "faça charges de graça pra mim, que eu divulgo o seu nome". Depois do livro, essas "propostas" sumiram. Por que será? Não por coincidência, elas, agora, foram substituídas por perguntas "Quando sairá o próximo livro?" ou "Quando sairá o volume 2?". Bem, o "volume 2" eu não pretendo lançar, pois não quero repetir a mesma fórmula e passar a mesma mensagem. Quanto ao próximo livro, só o tempo vai dizer, mas uma coisa é certa: não vou repetir a experiência de lançar independente e não recomendo a ninguém fazê-lo. Voltando ao epicentro do furacão, qual é, então, o problema da mídia impressa hoje? Sim, ela está em decadência. Não, ela não quer abaixar a guarda. Também não quer perder o glamour, nem quer dividir nada. Sua soberba e orgulho jamais permitiriam tal coisa. O mercado é fechado mesmo. Ninguém entra. Ninguém sai. Já o buraco da internet é mais embaixo. A internet é tão democrática, mas tão democrática, que abriu espaço até para quem não o merecia. É nesse sarau de pseudoartistas larápios e torturadores do idioma que a mediocridade e a verborragia se propagam como um vírus letal. São essas pessoas que não deixam a tal "revolução" da internet acontecer, que nos nivelam por baixo e fazem com que sejamos vistos como marginais da mídia. Pra citar um exemplo da minha área, basta entrar em qualquer fórum relativo à caricatura no Orkut que você terá um retrato cruel dessa realidade. Lá existem "n" discussões (com direito a xingamentos, ameaças e palavrões a torto e a direito) dos que defendem um trabalho sério e profissional que deve ser devidamente cobrado, contra os artistas de galinheiro, que se dizem "românticos" e acham que não se deve cobrar nada pela "arte". O Orkut, aliás, foi uma ótima idéia que, infelizmente, acabou distorcida e virou o playground os psicopatas. E eles são muitos, acredite. Por que você acha que os comentários dos leitores aqui do Digestivo precisam ser moderados pelos editores? Tanto na arte quanto na escrita, despontam a cada minuto novos candidatos a gênio, que também encontram aqui, na Web, o seu palco preferido. É essa gente amadora ― que se autoentitula "profissional" ― que a internet ainda não conseguiu filtrar. Isso sem falar nos spammers, que prestam o seu desserviço à WWW, tornando-a uma gororoba ainda mais difícil de deglutir. Aqui, gente séria e profissional é jogada no mesmo balaio dos wannabes, dos psychos e dos parasitas. Esse é o pecado da democracia on-line. A internet está ainda tão mal ajambrada que a imprensa escrita percebeu isso e se sentiu confortável em desqualificá-la, classificando-a como uma mídia de menor relevância. Apesar dos pesares, a constatação que faço é que a imprensa escrita não é tão boa quanto se apregoa e nem a internet é tão ruim quanto se acredita. Existem bons e maus profissionais em ambos. Com o mínimo de bom senso, consegue-se facilmente separar o joio do trigo. O que está faltando é autocrítica. Já passou da hora, aliás. A internet e o papel devem conviver juntos, dialogar, cooperar entre si e não desconfiarem um do outro. Os leitores estão aí para serem conquistados, mas, ao invés disso, jornalistas e blogueiros preferem continuar com esse bombardeio esquizofrênico, de onde todos saem derrotados ― principalmente os leitores. Nasci na internet, me reinventei no papel, que por sua vez me levou de volta, através do blog e estou aberto a qualquer mídia que se interessar pelo meu trabalho. Qual a vantagem, então, em ser extremista? Não podemos limitar nossas perspectivas em nome de uma ortodoxia sem sentido, seja ela pró-internet ou pró-papel. Diogo Salles |
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