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Sexta-feira, 24/8/2007
Livro policial baleia leitora
Ana Elisa Ribeiro

Edward Bloom (ou Eduardo Mineo) quase acerta: "Livro não é aquele monte de papel no meio de duas capas?". A pergunta que deu origem a essa resposta (também uma pergunta) era tão vaga quanto os conceitos de "monte de papel" e "capas".

A Unesco define como 49 o número mínimo de páginas para que uma brochura seja considerada livro. Bloom só não chegou a esse nível de sofisticação. Mas que é preciso ter capas, é. Papel já não é um material garantido. Livros foram considerados assim mesmo quando não eram feitos de fibra de madeira ou linho. Já eram livros quando se faziam de pele de carneiro novo ou de plástico. Mesmo os feitos de bits são "e-livros". E o que nos irrita hoje e leva o nome de pop-up já existia (com esse mesmo nome) nas edições de livros infantis projetados para que o cenário saltasse ao abrir das páginas.

Bloom faz a pergunta. Sim, livro pode ser isso aí. Nem sempre assim, um pouco mais para a esquerda ou para a direita. Com um tanto mais ou um tanto menos de permeabilidade. Meu filho de 3 anos, o Dudu, é que é confiante: livro é qualquer coisa que sai de dentro da minha impressora. Vai ver, é.

A poeta mineira Tânia Diniz é concisa (aliás, como são os poetas mais admiráveis que conheço): "O livro para mim é uma janela para os mundos!". Note-se a pluralidade dos mundos que ela menciona. Ronaldo Cagiano reforça o coro dizendo que não concebe um mundo sem livros, pelo menos este aqui. "O livro é o território que nos escancara as fronteiras da liberdade, que nos faz romper amarras e desatar algemas". É abrir um livro e confundir páginas com asas.

Na metáfora da viagem e do vôo, a jornalista Clara Arreguy afirma: "O livro é uma viagem para dentro e para fora de mim". O escritor Marcelo Xavier, na obra infantil Asa de papel, congestiona essa trilha dos viajantes dizendo que é possível viajar na leitura.

Numa perspectiva mais palpável, Clara Arreguy lembra que o livro é um "objeto bonito, gostoso, cheiroso, bom de pegar, levar e ficar. E de emprestar, porque livro bom é livro que se lê". Ao mesmo tempo, admitamos: livro dá um ciúme danado. Quem já não disse que não tinha a obra diante da iminência de ter que emprestá-la a um leitor de contingência, descuidado, afoito, oportunista, desligado ou mesmo aquele que só pensa na finalidade mundana da leitura?

Guga Schultze é menos específico. Sua resposta soa como o roteiro de uma história em quadrinhos ou a idéia para um filme de curta metragem. "Um livro é uma porta. Uma porta de passagem. Depois da porta existem escadas, pra baixo, pra cima; existe um muro, intransponível. Você volta. Um labirinto. Existe espaço, existe um beco. Um beco sem saída, mal iluminado e com um vampiro na espera. Existem luzes estáticas, luzes piscando. E escuridão. Existem vozes, sussurros; música, um coral de mil vozes. Desertos, geleiras. É uma viagem para ser feita sozinho. E deve haver um livro que é uma viagem sem volta". O Guga é uma viagem errática, com essa resposta mais precisa do que um catavento.

Se uns viajam, outros descrevem cenas de deleite ao lado do "objeto gostoso" de Clara Arreguy. Luís Eduardo Matta fornece detalhes calientes: "Leio para me distrair e passar horas agradáveis e intensas, do mesmo modo que outros ligam a TV ou jogam videogame. Nunca tive a menor cerimônia diante do objeto livro, nem o reverenciei como muitos o fazem. Trato-o sem pompa alguma e com a maior intimidade possível. Ler é algo tão trivial no meu dia-a-dia quanto almoçar ou conversar". Para o escritor, livro é para pegar, ler e dar uns amassos, sem cerimônia. Coisa que Ram Rajagopal faz, mas de outro jeito. "O livro é um amigo. Dentre meus vários amigos, ele é mais um amigo. Não tenho cerimônia, nem me atenho a regrinhas numa amizade. Aprendo, exploro e sigo adiante".

A designer Daniela Castilho resume: "É o melhor amigo, guarda mistérios que vão sendo desvendados a cada página virada, conta histórias, ensina segredos". Rotina de leitora viciada: "O livro é atemporal, é uma máquina de viajar no tempo. O livro alimenta sonhos e a imaginação". Eis, mais uma vez, a viagem do leitor. A despeito de todos os filmes sobre máquinas do tempo, estava aí a engenhoca de Gutenberg, para considerar apenas os objetos feitos em sistema industrial.

Para Daniela, "quem lê aprende a ser livre". Ou será que vive preso nos domínios da letra? Ou será que vive em fuga? A socióloga Áurea Thomazi emprega palavras fortes: "O livro é um objeto mágico". Mesmo sem pop-ups ou musiquinha, fico pensando nas caixas do Mandrake, em bolos de onde saem peruas maquiadas, das cartolas cheias de coelhos assustados, das mangas dos fraques desbotados dos prestidigitadores de festinha infantil, das caixas onde se serram mulheres de maiô, dos números com facas e lenços de seda. Mesmo pensando nisso, vejo que são universos possíveis no vasto mundo de imperfeitas emoções contido no livro.

O livro é mágico, não foi isso o que Áurea disse. Ela disse que "o livro é um objeto mágico" e descortinou: "É como se fosse uma caixa; e quando a abrimos e entramos nela, nos transportamos para outro lugar diferente daquele onde estamos". A eterna viagem. O discurso da viagem. E se é para assumi-lo, melhor pensar que nem sempre se viaja a turismo. Nem sempre se quer apenas tirar fotos dos monumentos clichês. Viaja-se a trabalho, a passeio, para visitar parentes, para estudar, para conhecer pessoas, para aprender línguas estrangeiras, para ser garçom, para juntar dinheiro. Viaja-se por viajar.

Melhor dar ânimo e pulso ao dono da agência: "Com o livro, podemos ainda encontrar com o próprio autor, conhecer o que pensam tantas pessoas e o que têm para nos contar". Eis o dono dos limites, o senhor das idéias, o detentor das patentes da invenção, o guia da viagem. Mas o viajante é muito mais esperto do que isso. Será? Ram adverte: "Vale lembrar que um livro, sem a experiência, não significa nada. Que ler um romance porque algum crítico ou professor o considera fundamental, não significa que você tenha que gostar ou mesmo achar importante. Acho que cada um escolhe seus livros, e na medida em que eles signifiquem algo para você, isso não importa para mais ninguém...". Concessões dadas ao leitor, terminados seus 15 minutos de glória, volta o autor a embaçar tudo: "O mais importante no processo do livro é a imaginação do autor. Se tocou a sua imaginação, se abriu você para novas idéias, ou para um mundo particular - e quantos romances de entretenimento não nos levam para lá - este livro é sua obra-prima particular". O autor, este sim, é mágico. O artista e sua varinha de condão, que toca, apenas na pontinha, a cabeça aberta do leitor-aprendiz. Público-alvo dos sonhos, não? O que fazer quando o leitor não se tange nem a chibatadas?

A ilustradora Yara Mitsuishi admite os ranços de mitologia relacionada à potência do autor: achava que escrever tantas páginas "era coisa de gênio". E precisa tanto? Por uma lógica, sim; por outras tantas, nem tanto. Bem menos e é best-seller. Mas que critério é esse, então? Quem define o quê? Who watches the watchmen? Quem é o editor do editor, afinal? Que mal há em se auto-editar? Pruridos, meu caro candidato a autor? Do it yourself e ligue djá para a gráfica mais próxima. Você pode. Na verdade, sempre pôde, mas não sabia disso, não é mesmo? Pergunte ao Mário de Andrade e ao João Cabral de Melo Neto. Mas é que agora que eles são canônicos, tudo parece mágico, não é?

Yara sangra a ferida com um toco de bambu: "Tem sempre um livro que mexe tanto com a gente que faz com que o passado não seja mais o mesmo, nem o futuro. Acho que é essa a magia das palavras, do livro". E ela ainda acha? Sei bem o que é ter a vida revirada por um monte de páginas entre duas capas.

Mas nem todo mundo tem uma relação amistosa (e só) com os livros. Nelson de Oliveira admite cenas de terror ao lado desses objetos. "Os livros (os meus e os alheios) sempre foram fonte de entusiasmo e pavor. A experiência mais intensa que já tive, envolvendo um livro, aconteceu há mais ou menos sete anos: foi a redação do meu primeiro romance, Subsolo infinito. O romance narra as peripécias de um sujeito que fez o pacto com o diabo. Até hoje não tive coragem de reler esse livro". Mas não se diz isso à-toa. Ler-e-escrever são, também, viagem sem volta. Escrever é ainda mais ao infinito. Escrever é o Ícaro em queda livre. Quem sabe?

E eu? Livro é um punhado de vontades costuradas e coladas, se a gráfica for boa. Mais adiante, se der tudo certo, quem sabe faço uns freelancers em festinhas infantis? Lá posso mostrar a potência da minha varinha de fazer versos e tirar da cartola um tantão de frases curtas costuradas à base de precisão, sarcasmo e muitas noites de digitação. Não é?

Ana Elisa Ribeiro
Belo Horizonte, 24/8/2007

 

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