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Segunda-feira, 13/8/2007
Os meninos da rua Paulo
Gian Danton

Existem obras que ultrapassam em muito seus objetivos iniciais, que começam singelas, sem grandes pretensões, mas acabam se tornando clássicos. No Brasil, tivemos Narizinho Arrebitado, de Monteiro Lobato, uma tímida incursão do autor pela literatura infantil (que não existia no Brasil na época), mas revelou-se um verdadeiro divisor de águas, fazendo com que posteriormente o escritor passasse a se dedicar apenas ao Sítio do Pica-pau Amarelo. Mas um caso muito mais extremo é Os meninos da rua Paulo (Cosac Naify, 2005, 256 págs.), de Ferenc Molnár. Este não só se tornou um sucesso mundial como ultrapassou as barreiras da literatura infantil. Tornou-se leitura adulta e virou até tema de uma música do Ira! ("Sou menino da rua Paulo, de um bairro em Budapeste, sou menino de São Paulo, lá da vila Mariana").

A música do Ira! explica, em parte, o sucesso do livro. Embora a história se passe na Hungria, no final do século XIX, ela fala sobre garotos de qualquer época, em qualquer lugar. Ela trata de temas universais: honra, coragem, traição, lealdade. Quando se tem 12 anos, esses são os temas mais relevantes do mundo. A lealdade ao grupo é o valor mais importante numa época em que crianças deixam a barra da saia da mãe e precisam encontrar novos modelos e novas formas de enfrentar o mundo. O grupo passa a ser a família, e os pequenos fatos envolvendo esse grupo refletem o mundo.

Em Os meninos da rua Paulo, um grupo de garotos usa um terreno baldio, um grund, como base de operações, um local em que jogam péla, brincam de clube, fingem participar de um exército, arremedam eleições. O grund é o império deles. Mas em outro local, numa ilhota no Jardim Botânico, existe um outro grupo com as mesmas características, com uma diferença: esses não têm um lugar próprio para brincar. A maneira encontrada para resolver a situação é invadir o grund do outro grupo.

A guerra tem uma espécie de aspecto mítico que fascina meninos nessa idade. A camaradagem, a coragem e a aventura que ela desperta podem ser vistas em diversos episódios da cultura pop. Do filme Conta comigo (baseado na novela O Corpo, de Stephen King) passando por episódios dos Simpsons e de Anos Incríveis, temos a missão militar como um ideal imaginado por garotos. Em Conta comigo os garotos precisam chegar ao local de um acidente para encontrar um corpo. Em Anos Incríveis os meninos precisam chegar a uma festa para adolescentes. Em Simpsons os meninos mais fracos precisam brigar contra os que os maltratam. O caráter militar é destacado até por marchas militares.

Em todos esses casos, a missão militar estilizada é um rito de passagem para a vida adulta. É um teste severo pelo qual muitos não passarão e continuarão sendo crianças para sempre, e outros sucumbirão. Os meninos da rua Paulo parece ser a obra que melhor expressou essa condição, daí o fascínio que sempre irá provocar. Junta-se a isso uma narrativa simples, mas fluente, com diálogos reveladores. Mólnar escreve como se estivesse simplesmente se lembrando de fatos acontecidos - o que leva vários pesquisadores a acreditarem que a história é auto-biográfica.

O autor, cujo verdadeiro nome é Ferenc Neumann, nasceu na Hungria, em 1878, numa família judia de classe média. Em decorrência de uma lei do Império Austro-Húngaro, foi obrigado a mudar seu nome para o idioma local. Trabalhou como jornalista, mas ficou famoso com o teatro. Suas peças foram encenadas em toda a Europa, muitas delas adaptadas para o cinema. Durante a primeira guerra, ele foi correspondente e viu rapazes defendendo suas trincheiras, o que pode, em parte, ter influenciado a obra.

No entanto, se o livro pode ser baseado em guerras de verdade, certamente o comportamento dos combatentes é idealizado. Há um rigoroso código de ética entre os rapazes, que não permite, por exemplo, que dois meninos ataquem só um. Em determinado momento a bandeira dos meninos da Rua Paulo é tomada pelos inimigos. Um dos meninos a traz de volta e é repreendido, sendo a bandeira devolvida. O general Boka, líder da patota, explica que só poderiam tomá-la em batalha. Quem dera nossos governantes tivessem metade do senso de honra e ética desses meninos.

Na Hungria o livro ficou tão famoso que um homem apareceu dizendo-se a inspiração para o personagem Nemecsek. Como resultado, começou a ser convidado a fazer conferências e contar reminiscências, ganhou presentes e até um apartamento, até ser desmascarado. De adorado, passou a ser odiado, pois ninguém lhe perdoava por mexer em um mito.

Se o livro vale apenas por seus méritos literários, o ótimo tratamento da Cosac Naif o valoriza ainda mais. A editora aproveitou a tradução feita por Paulo Rónai, ele mesmo um imigrante húngaro que, fugindo do nazismo, veio ao Brasil tornar-se um dos nossos mais importantes intelectuais. Aqui, traduziu A comédia humana, de Balzac, e organizou o volume de contos universais Mar de histórias, em colaboração com o amigo Aurélio Buarque de Holanda.

Além de manter a ótima tradução, a editora colocou textos introdutórios, posfácio, biografia do autor, do desenhista e do tradutor. Até a encadernação é caprichada, com orelhas longas, que firmam o livro e uma bela capa que flagra um momento de infância e reflete bem o conteúdo do volume.

É livro para comprar, ler e recomendar aos filhos.

Para ir além





Gian Danton
Macapá, 13/8/2007

 

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