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Quarta-feira, 22/8/2007 Auto lá! Guga Schultze Em termos de auto-ajuda, nada é melhor do que uma auto-escola. É onde a gente recebe a verdadeira auto-ajuda, percebe? Isso é tão evidente que dispensa comentários. E eu fico parecendo ser aquele tipo de pessoa que perde um amigo, mas não perde a piada. Não é bem verdade, mas eu espero não encontrar um deles, esses meus amigos, com um livro de auto-ajuda debaixo do braço. É preciso dizer isso, doa a quem doer: um livro de auto-ajuda debaixo do braço denigre a imagem da pessoa. Não a auto-imagem. Essa, lá dentro da cabeça do leitor, está sendo enviada (olha o gerundismo) para o Olimpo, para a companhia dos deuses. Falo é da imagem que as outras pessoas podem fazer do sujeito. Aquelas outras raras pessoas que não estão também portando seus livrinhos debaixo do braço. Porque as que lêem são cúmplices e, quando se encontram, falam do livro que estão lendo, umas com as outras. Trocam informações auto-ajudatórias, ou auto-ajudativas, sei lá, e, ao fazerem isso, encontram mesmo uma parcela da tão desejada felicidade - aquela quimera maluca e cor de rosa que tanto desejam, mais bonita que a Gisele Bündchen. Esses livros realmente funcionam, de alguma forma. A busca pela felicidade é um direito universal. Todo mundo concorda, mesmo porque parece que a gente já nasce sabendo disso. Mas eu me lembro de uma história que eu li - acho que foi nas Seleções do Reader's Digest, em que a polícia de Sidney, Austrália, utilizou as habilidades sobre-humanas de um aborígene (meus dicionários virtuais não registram essa palavra! Estão precisando de uma auto-ajuda aí), um nativo do deserto australiano, para achar pistas de algo ou alguém desaparecido. O nativo conseguiu, dentro da moderna Sidney, localizar o que a polícia procurava. Os policiais que o acompanhavam ficaram boquiabertos. Depois, disseram ao aborígene que ele poderia escolher um presente, o que ele mais gostasse, entre as coisas que ele viu na cidade, como pagamento pelo seu excelente trabalho, já que o aborígene, uma criatura do deserto, não queria e nem precisava de dinheiro. O aborígene quis levar pra casa uma torneira. Não adiantou explicar que uma torneira é só a ponta visível do processo de se obter água nas cidades. Não adiantou falar de encanamentos, captação e tratamento da água, da rede pluvial urbana e outros detalhes técnicos. Ele queria apenas uma torneira. E foi o que levou, para a consternação dos policiais que tentaram dissuadi-lo, mas que acabaram comprando a melhor torneira que puderam achar, mesmo sabendo que esse detalhe passaria despercebido ao aborígene - se a torneira fosse de latão ou de ouro, dava na mesma. E lá se foi o nativo, feliz da vida com sua torneira nova, de volta para o deserto. Quero dar ao nativo o benefício da dúvida; imagino que ele fosse tão ou mais inteligente que qualquer pessoa, que compreendesse perfeitamente a questão da torneira e que nós realmente não saibamos nada sobre o poder da contemplação, da posse ou de qualquer outro exercício mágico com objetos comuns. Mas, continuando, a felicidade é uma torneira (tenho que me lembrar desse título, quando for escrever meu livro de auto-ajuda). Ou melhor, a busca pela felicidade é uma obssessão pela torneira, esquecendo todo o resto que permite que a torneira nos dê água. Buscar a felicidade, além do mais, é um negócio muito auto-indulgente. Todos têm esse direito, mas quem disse que todos merecem? Ok, deixa pra lá. Não sou eu quem vai dar uma de juiz. A felicidade é um efeito de causas muito variáveis e ainda pouco conhecidas. Não se pode sair por aí, correndo atrás de um efeito, esquecendo as causas. E, além disso, é muito deselegante alardear que se está correndo atrás da felicidade, quase como se ela fosse uma droga qualquer, ainda que muito inebriante. Alcoólatras são mais discretos atrás de bebida. Agora, a primeira pessoa que um livro de auto-ajuda realmente ajuda é o autor. Além do editor, é óbvio e ululante. Esse, muitas vezes, nem precisa ler. O poder da auto-ajuda é tão intenso que basta que o editor lance a obra no mercado e faça uma divulgação legal. O livro faz de tudo, sozinho, para que ele, o editor, tenha uma vida melhor. Se os homens são de Marte e as mulheres são de Vênus, os editores são terráqueos de pés no chão. E constroem lindas mansões para morar, para viver minimamente bem, aqui nesse planeta, já que têm que suportar a triste realidade de não serem nem marcianos nem venusianas, apenas pobres seres terrestres, incapazes de voar para as estrelas. Está bem; este livro, particularmente, o dos sexos alienígenas, não é tão ruim. O título anuncia que homens e mulheres são diferentes entre si - haveria alguma dúvida quanto a isso? - e pretende esclarecer várias dificuldades típicas no relacionamento homem/mulher. Foi uma boa tentativa, John Gray, mas eu me lembro vagamente do que Hamlet disse. Hamlet, personagem de um outro fantástico livro de auto-ajuda, que disse algo sobre o fato de que há mais coisas entre Vênus e Marte do que supõe a nossa vã filosofia. Ou algo parecido com isso, mas tenho certeza de que ele quis dizer isso também. Gosto de olhar o céu, de noite. Às vezes consigo identificar Marte e Vênus mas, devido à minha formação intelectual de pulp fiction, encaro essas lindas estrelinhas à maneira do capitão Kirk, a bordo da nave estelar Interprise: imagino que os klingons estão por aí, nesses espaços cósmicos e todo cuidado é pouco. Não espero amizade, muito menos orientação espiritual, da parte dos klingons. Mas parece que as pessoas estão sedentas por afagos, elogios e promessas. Venham de onde vierem, mesmo do espaço exterior. Os seres dos outros planetas, dizem, descobriram a fórmula da felicidade e, tipicamente, como todo mundo que realiza tal descoberta, se apressam em espalhar as boas novas, o mapa da mina, pro universo inteiro. É um dos ramos mais interessantes na literatura da auto-ajuda e quejandos: esse contato com seres extra-terrestres. Os E.Ts são bonitinhos, com aqueles grandes olhos de gafanhoto. Eles saem dos discos voadores e abrem os longos braços, indicando que estão abertos a toda manifestação de amor universal. O lado negro dos E.Ts só é sentido pelas pessoas abduzidas. Parece que "abduzido" quer dizer "abusado sexualmente". Pelos relatos que a gente ouve por aí, acho que é isso. A abdução não é para fins de prazer, mas para obscuras intençõs científicas, que os E.Ts não revelam a ninguém. Faz parte do charme dos E.Ts o fato deles nunca explicarem o que realmente querem aqui nesse planeta. Há um componente global na felicidade que não permite que a pessoa feliz fique na sua. Ela tem que transmitir sua mensagem de calor humano, ou não-humano, para os outros seres vivos. Vi, certa vez, uma senhora pacata, sentada na varanda de sua casa, com um cachorrinho no colo. Uma cena de certa beleza, o sol da tarde e aquela mulher tranqüila, tomando sol na varanda, com um desses dobermans minúsculos, um pincher, no colo. Meu amigo, a quem eu tinha ido buscar prum churrasco, saiu da casa e, enquanto a gente ia embora, me explicou que sua tia estava, de novo, mentalizando o cachorro. "Se a gente chegar muito perto, ela começa a mentalizar a gente também", disse ele. De forma que a família evitava um contato mais prolongado com a tia mentalizadora e ela, sem muita opção, passava suas vibrações positivas para o cachorrinho, todas as tardes. "Ela acredita que passa coisas boas pros outros. Andou lendo esses livros e tal. O problema é quando você tem que entregar um trabalho na escola e tem uma tia do seu lado, te mentalizando. Ela não fala nada, mas só de saber que ela está ali, pensando em sua direção, já te desconcentra na hora." A única coisa que me ocorreu foi comentar que, de uma forma ou de outra, a tia dele tinha mesmo algum poder mental. Escrevo, mas sem muito conhecimento de causa. Nunca li nada de auto-ajuda, no sério. Ou talvez tenha lido, mas não encarei sob esse prisma. Tenho dificuldades com a palavra "ajuda"; mal e mal ajudo outra pessoa, e só quando me pedem. Não seria capaz de me ajudar, inclusive. A palavra "ajuda" pressupõe um acréscimo de forças, ou de energia, ou de conhecimentos, para realizar qualquer coisa. E eu costumo usar toda a minha energia, que é mínima, nas coisas que eu faço; de forma que não tenho nem como me ajudar. Já li coisas que fariam arrepiar a espinha dorsal de um invertebrado - e essas coisas, sim, me ajudaram a compreender melhor outras coisas, e sou contrário à idéia de espalhar isso impunemente por aí -, e fico deveras constrangido com esses livros que pretendem ensinar, por exemplo, como enriquecer, como adquirir poder, de um tipo ou de outro. Porque, no fundo, a auto-ajuda (e outros bichos) trata disso: como adquirir poder, qualquer tipo de poder. De magos a magnatas. Mas li, por exemplo, se isso pode ser incluído na categoria, Um livro de cinco anéis, de Miyamoto Musashi - o lendário samurai japonês que nunca foi derrotado. É bom para quem, como eu, foi derrotado inúmeras vezes. Pelo menos me ensinou a ficar longe de uns caras que acham que também são samurais e não sabem perder. Tampouco sou de Marte. Sou de muito mais longe: "Há luzes estranhas nas proximidades de Arcturus/ vozes apregoam um nome desconhecido nos céus." Venho daí, desse lugar, desse verso que eu li, quando era criança e nunca mais esqueci. Acho que volto pra lá, um dia desses. Guga Schultze |
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