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Segunda-feira, 17/9/2007
Insuportavelmente feliz
Verônica Mambrini

Outro dia, discuti com uma pessoa. Discordamos, e rapidamente a alternância entre sarcasmo e respostas agressivas virou um bate-boca. Não me importo muito com embates e cada vez menos me altero com eles. Por outro lado, a pessoa gritava cada vez mais alto, me insultava e acabou me ameaçando. Quase levei uma bofetada. O motivo da discussão era pífio, o que é comum no mundo do estresse em que a maior parte das pessoas socialmente integradas vive. Ironicamente, um pouco antes, na mesma tarde, vi a pessoa em questão entretida com a leitura de Inteligência Emocional, best-seller de Daniel Goleman, PhD, que defende a tese de que o sucesso pessoal depende muito mais da capacidade de ser gentil e amável nos relacionamentos do que da capacidade intelectual das pessoas.

Ela lia por que achava que precisava desse tipo de livro? Ou por outro motivo qualquer?

Livros de auto-ajuda são de uma canalhice quase inconcebível. Voltam-se a pessoas carentes, doentes da alma ou ambiciosas, com sede de sucesso. Não duvido do poder deles, já que a maioria se baseia no conceito da mentalização: é preciso ver a coisa feita na mente antes que aconteça na realidade. Mas duvido que seja preciso escrever tantos livros, com variações das fórmulas de sucesso, para descobrir isso. Tento me cercar de pessoas agradáveis e, se possível, otimistas. Ou de pessimistas inteligentes, e sei que é cada vez mais difícil achá-los. Nossa era padece de um mal terrível: a obrigação de ser feliz. Insuportavelmente feliz.

Meu avô trabalhava na Sears, loja de departamentos de que os mais velhos vão se lembrar. Nessa época, uma pessoa como ele podia ser feliz, simplesmente. Ele não tinha estudado até o nível superior, mas a formação técnica lhe dava um trabalho capaz de suprir as necessidades de sua família, uma esposa linda e amada, três filhos inteligentes e saudáveis, uma casa confortável, ainda que sem luxos. Não sei se no íntimo meu avô era feliz, mas quando eu era criança, brincávamos em parquinhos, ele me ensinou a reconhecer canto de sabiá e de bem-te-vi, fazer dobraduras, ouvir histórias e amar cavalos (ele era viciado nas corridas do Jóquei, embora não apostasse). Não acho que uma pessoa infeliz fique satisfeita com esses pequenos prazeres; pelo contrário, mal consegue se dar conta de que eles existem. E isso é o mal de uma época: por processos midiáticos, econômicos e sociais, tudo é ambição e expectativa. No plano profissional, por exemplo, ter um emprego e salário digno não bastam: é preciso ser realizado. E a mesma ciranda roda em todos os aspectos da vida.

Muitas palavras-chave fazem o inferno da vida contemporânea: fama, poder, motivação, reconhecimento, independência, liberdade, sucesso, amor. Um ciclo de esforços infindável se desenrola: faculdade, cursos de idiomas que nunca serão praticados, pós-graduação, aparelhos eletrônicos sofisticadíssimos e que logo serão obsoletos, redes de relacionamento virtuais, maquiagens, o par perfeito, o relacionamento afetivo sem tremores, álbuns de viagens com fotos de lugares descolados, horas de malhação na academia e tratamentos estéticos. Tudo isso para quê? Para satisfazer a quem? Não sou uma adepta voraz da vida simples nem neohippie à deriva. Mas acredito que os livros de auto-ajuda são um efeito colateral de uma sociedade que está tão imersa em seus processos de evolução que não se dá conta de que eles existem. Assimilar a criação social que nos cerca como um fato natural é perigoso. Perde-se a consciência de si e do outro, e há o sentimento de ânsia permanente. Nada mais lógico, portanto, do que buscar uma resposta qualquer para a vida que parece tão sem sentido, tão à espera de que algo mais finalmente aconteça.

Dou a cara à tapa, contudo: li um livro muito interessante, que abriu meus horizontes. Era de auto-ajuda financeira: Mulheres boazinhas não enriquecem, de Lois P. Frankel. Não espero enriquecer por causa dele, mas pelo menos percebi porque o dinheiro não pára na minha mão. A tese central do livro é que as mulheres não valorizam o dinheiro e carreira em causa própria, e sim com a finalidade de cuidar das pessoas amadas e lhes proporcionar bem-estar. Descrições de alguns padrões de comportamento femininos, puras e simples, acompanhadas de dezenas de exemplos e dicas práticas, me pareceram sensatos e razoáveis, factíveis. Além de adaptáveis a vários tipos de problemas, desde sair do vermelho no cartão de crédito a como pleitear um salário mais condizente com as qualificações profissionais. Desse, gostei bastante.

Em termos de auto-ajuda emocional, ficção me parece muito mais eficaz do que os guias que forram as prateleiras das livrarias. A literatura é cheia de histórias capazes de mudar o ser humano. O dilema de Antígona, na tragédia grega, entre atender a um dever de Estado e deixar o irmão insepulto, ou cumprir a obrigação familiar e os costumes e prover-lhe um enterro, me valeu por anos de terapia e vários tratados de ética. Mais recentemente, encontrei um verdadeiro refrigério moral e emocional na série de TV House. O personagem principal é um médico que faz escolhas nos planos pessoal e profissional extremamente radicais, fundadas num sistema de valores complexo e pessoal. O ganho que a série me trouxe (como fizeram vários livros, discos e filmes) foi uma percepção nova sobre minha realidade. Livros de auto-ajuda trazem respostas; a arte geralmente traz perguntas. Por escolha pessoal, fico com a arte.

A auto-ajuda se baseia um mundo irreal onde tudo pode dar certo, onde perder não é uma opção. Não me parece uma opção para evoluir e amadurecer, embora muitas vezes esses livros estejam recheados de boas dicas pessoais e profissionais. Vale a pena buscá-las, é um paliativo tão útil como assistir Top Hat, musical de 1935. A cena em que Ginger Rogers e Fred Astaire dançam ao som de "Cheek to Cheek" é capaz de curar, por cinco minutos que seja, qualquer ferida na alma. Não à toa, é com essa cena que termina A Rosa Púrpura do Cairo, filme de Woody Allen em que Cecília, a personagem de Mia Farrow, volta a ter esperança depois de ter sua vida arrasada, com essa tomada. O filme é um acalanto, uma resposta a um país em crise. Mas muito mais do que de respostas, o ser humano precisa de perguntas, que os livros de auto-ajuda nunca trarão.

Verônica Mambrini
São Paulo, 17/9/2007

 

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