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Quarta-feira, 26/9/2001 Telhado de vidro Daniela Sandler Anteontem estava vendo um programa na tevê pública norte-americana, a PBS - uma espécie de TV Cultura daqui. Era um documentário interessante sobre a Guerra Fria - começava na Segunda Guerra, quando os Estados Unidos e a União Soviética eram aliados, e terminava no governo Reagan e na Guerra nas Estrelas, passando, oportunamente, pela Guerra do Afeganistão (1980). O programa mostrava, entre outras coisas, as técnicas de propaganda do governo soviético - a doutrinação ideológica por meio de aparatos culturais, meios de comunicação de massa e produtos artísticos e de entretenimento. É bom notar que a palavra "propaganda", em inglês (escreve-se assim mesmo, como em português), não tem o sentido corriqueiro de anúncio comercial como no Brasil. "Propaganda", por aqui, permanece ancorada à sua conotação política: propagar idéias, difundir um programa político, fazê-lo permear a sociedade. Falar em propaganda, aqui, é evocar doutrinação política de uma forma geral - e os governos totalitários em particular, em especial o estalinismo e o nazismo. As associações se desdobram em suas manifestações concretas: parcialidade na divulgação de notícias; mentiras históricas em jornais e em livros; fotomontagem; arte e literatura tendenciosas. O documentário mostrava exemplos da propaganda política soviética, em especial do antiamericanismo. As distorções e difamações eram tão absurdas que, segundo o documentário, no mais das vezes não surtiam seu efeito doutrinário. Russos davam depoimentos dizendo nunca haver acreditado na propaganda (sabiam, no entanto, que deviam ao menos fingir - a repressão política e a patrulha ideológica compensavam as falhas da doutrinação). Um dos exemplos dizia respeito à Guerra do Afeganistão - segundo o documentário, o "Vietnã dos russos". A despeito das imagens oficiais, que mostravam as boas intenções dos russos levando o desenvolvimento ao Afeganistão, os depoentes eram unânimes: sabiam que o exército russo estava levando uma surra, voltando não apenas desmoralizado como física e emocionalmente destroçado. Como no Vietnã. Identificação projetiva Não pude deixar de pensar no que escrevi neste Digestivo na semana passada, quando falei sobre a parcialidade da cobertura televisiva norte-americana do ataque terrorista de 11 de setembro. Lembro-me de ter destacado o espanto de ver o maquinário ideológico em ação: a parcialidade, o exagero, as estratégias de seleção de notícias e imagens para provocar um determinado estado de ânimo - ligado, por sua vez, aos interesses políticos do governo norte-americano. São fatos inegáveis, a despeito da postura de cada um de nós em relação à conveniência de uma guerra, que governo e tevês norte-americanas acertaram o compasso na promoção de uma empreitada bélica. Para isso, não basta motivar e encorajar o público - é preciso preparar o terreno, sedimentando uma versão específica dos fatos que justifique uma ação tão radical. Isso inclui, inclusive, minimizar as conseqüências e os custos materiais e sociais de uma guerra. Que é tudo isso senão "propaganda" política? Pensei nisso enquanto ouvia o narrador do documentário, que falava dos soviéticos como se falasse de um planeta distante, de uma lógica estrangeira. Que nome dar à cobertura do ataque terrorista feita por canais comerciais como ABC, NBC, CBC e Fox? Não só isso. Que nome dar à decisão da rede PBS de colocar no ar um documentário sobre a Guerra Fria - documentário parcial, concentrado em desbancar a imagem do governo soviético sem dar um mínimo espaço para "o outro lado" - justamente quando se fala em uma nova grande guerra, longa e custosa? A ilusão de que a propaganda política, a arte tendenciosa e a distorção dos fatos são praticadas apenas por regimes totalitários ou fanáticos religiosos só se sustenta se nós continuarmos caindo como patos na propaganda dos nossos próprios regimes. De certo modo, a propaganda soviética tinha uma vantagem: sua própria falta de sutileza, que tornava a mentira aparente. Os regimes democráticos caem reféns da ilusão de imparcialidade, de verdade cristalina, de ausência de interesses na difusão de notícias, fatos e versões. O imediatismo "aqui-agora" do telejornalismo, as imagens mais-que-reais em closes microscópicos e tomadas panorâmicas, o registro instantâneo e "ao vivo", tudo isso constrói a impressão de contato direto com a realidade, sem intermediação de idéias ou tendências. Tanto som e fúria nos distraem de seu propósito - talvez distraiam mesmo os próprios jornalistas e editores, presos em seu trabalho de escavar e jogar em nossa cara o "real". Para mim, os meios de comunicação de massa - nos quais incluo o cinema de Hollywood, a música pop, o Wal-Mart, o mercado de automóveis - fazem tanta propaganda política quanto fazem anúncio comercial. Sua propaganda pode não ser tão exagerada ou maquiavélica quanto a soviética ou a fascista. Por outro lado, por ser tão convincente em sua "transparência", é muito mais insidiosa. Neste caso, mais do que nunca, quem tem telhado de vidro que não jogue a primeira pedra. Errata histórica Para constar: propaganda política e arte tendenciosa nem sempre tiveram conotações negativas. Quando da Revolução Russa, os mais liberais e idealistas entre seus artistas e intelectuais conceberam a idéia de AgitProp - manifestações para esclarecer e educar, para mostrar as injustiças do regime antigo, para levar educação e cultura a pessoas destituídas. AgitProp não era lavagem cerebral, mas liberação política por meio da arte e dos meios de comunicação (de massa, inclusive). Gostaria de não precisar lembrar os leitores de que esses setores artísticos mais avançados foram posteriormente massacrados pelo estalinismo (infelizmente, juntar no mesmo saco todos os envolvidos na revolução - de idealistas a sanguinários - é mais um dos efeitos deletério da ignorância histórica, ou da doutrinação política). E, por fim, para fazer justiça: não fui de modo algum a primeira a falar nos terrores internos à democracia. Para quem se interessa pelo assunto, recomendo Terror and Consensus: Vicissitudes of French Thought, editado por Jean-Joseph Goux e Philip R. Wood (Stanford: Stanford University Press, 1998). Daniela Sandler |
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