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Quinta-feira, 25/10/2007
Recuerdos da Fliporto
Julio Daio Borges

* Como vocês sabem, eu sou um assíduo freqüentador da Flip, também crítico contumaz da Festa Literária Internacional de Parati. Assim, parece que de tanto falar sobre, me convidaram para a Fliporto deste ano. Como o próprio nome já indica, a Fliporto é igualmente uma "Festa Literária Internacional", só que no balneário de Porto de Galinhas (em Pernambuco, próximo de Recife). Não é a primeira vez que eu crítico o sistema e o sistema me absorve depois. Logo, a idéia aqui - como eu participei da Fliporto - não é ser crítico, como um espectador (eu, na Flip) seria. Quero aproveitar a oportunidade para tentar mostrar uma "Festa Literária" por dentro. Porque as mesas, a programação oficial, todo mundo deve ter comentado já - agora, os bastidores, ninguém nunca mostra. Para não perder, claro, a tradição, dou minhas opiniões estritamente literárias e assinalo alguns pontos em que eles precisam melhorar...

* O convite para a Fliporto 2007 chegou a mim através da Lucila Nogueira, responsável pela programação. Eu acabei não sabendo direito como surgiu o meu nome para os organizadores, mas, como me encaixaram numa mesa para falar de "Literatura Digital", imagino que me conheçam da internet, pelas minhas opiniões meio avançadas sobre publicar on-line (e a recorrente crise do papel etc.). Não vou me ater muito à minha mesa, porque soaria redundante. Vou dizer, apenas, que foi legal conhecer (e ouvir) a Cida Pedrosa (do Interpoética) e a Delasnieve Daspet. Eu falei aquilo que vocês já sabem (talvez escreva um texto reunindo minhas idéias a respeito - uma vez que rascunhei tópicos para a minha fala). A receptividade foi ótima, apesar de a nossa mesa ter atrasado e mudado de horário (o que confundiu um pouco o público), e apesar de o nosso mediador não ter sido localizado. Muita gente querendo saber como o Digestivo ganha dinheiro e como sustentar blogs. Eu expliquei; espero ter ajudado o público de escritores on-line a se monetizar...

* Embora eu não seja escritor (poeta, contista, romancista), estava sempre junto das "estrelas" da Fliporto - no aeroporto, no avião, no ônibus, na van, no hotel, no restaurante. Eu e a Carol (que me acompanhou). Não havia aquela tietagem explícita de Parati, porque na Fliporto há menos público e porque suas ambições são mais modestas (não havia nenhum Prêmio Nobel e nenhuma celebridade literária - Jô Soares, Chico Buarque, José Saramago...). Então, foi tranqüilo; mas engraçado mesmo assim, porque estávamos sempre "do outro lado". No dia da minha mesa, eu acho que senti saudades da platéia (e de ser platéia), porque fui lá fora olhar a fila, a venda de ingressos, e ouvir um pouco da boca das pessoas. Nessas horas, lembro daquela cena do Quase Famosos, em que o rockstar vai a uma festa de adolescentes e confessa aliviado: "Vocês são pessoas de verdade!". Há mesmo essa sensação: artistas (ou wannabes), muitas vezes, vivem de poses estudadas, de falas decoradas, de discursos prontos - e isso tudo cansa. De repente, você quer gente de carne e osso. Relembrando a Grace Gianoukas, da Terça Insana: "Ser intelectual dói: Deixem-me ser burra".

* Gostei de conhecer o Horácio Costa. Como poeta e como pessoa. Talvez eu ainda resenhe o livro dele novo. Descobri o Horácio no evento "Poesia e Performance", em que, na Praça das Piscinas Naturais (de Porto de Galinhas), ele dividiu o palco com Claudio Daniel e Micheliny Verunschk (os quais também conheci), entre outros. O Horácio faz uma poesia muito rigorosa - alguns chamariam ele de "erudito", como chamam o Paulo Henriques Britto - e, pessoalmente, tem um excelente senso de humor. A leitura de poesia, em si, foi meio confusa, porque realizada numa praça pública, e os populares - naturalmente a mil léguas de distância do gênero poético - não fizeram o devido silêncio e, muito provavelmente, não entenderam patavina. Mas eu descobri um poeta novo; então, para mim, valeu. O Horácio, muito piadista, classificou a performance como de "literatura descabelada". O Claudio Daniel riu (não gostei tanto da poesia dele, mas ele tinha ótimos pontos de vista críticos - é editor). E a Micheliny Verunschk reclamou da Flip. A Flip era, quase sempre, a comparação-padrão.

* Me impressionou muito o Douglas Diegues, inventor do Portunhol Selvagem. Espero que ele se lembre de me enviar seus livros. Eu gostaria muito de escrever sobre sua poesia (ou prosa poética). O Régis Bonvicino já havia me falado dele por telefone. Com muita veemência; foi o único nome de "poeta novo" que ele citou. Eu guardei. Aí topei com o Douglas na Fliporto, numa mesa em homenagem a ele, que dividiu com o Joca Reiners Terron e com o Xico Sá, mais um pequeno argentino cujo nome me foge agora (foi chamado na hora; não estava no programa). O impacto do Douglas Diegues, fazendo uma análise, foi similar ao do João Filho, numa das últimas FLIPs. O Douglas conquistou a audiência nos primeiros minutos (para muitos, ele era um desconhecido) e, quando declamou, podemos dizer que foi apoteótico. A força da língua por ele inventada - misturando evidentemente português e espanhol - é tamanha que um autor consagrado da Geração 90, como o Joca Reiners Terron, verteu um de seus poemas especialmente para o "portunhol selvagem"; e o Xico Sá, cronista contemporâneo consagrado (agora, também editor), vai lançar um romance inspirado no idioma de Douglas.

* Me impressionou também o fato da Fliporto dedicar tanto espaço à poesia - um gênero, hoje, considerado difícil. Eu, por exemplo, jamais poderia organizar um evento de poesia. Conheço um poeta ou dois, no máximo. Ou sou muito rigoroso; ou sou muito desinformado. Enfim, na Fliporto os poetas proliferavam - e havia várias mesas a eles dedicadas. E as pessoas iam escutar. Outro poeta de quem gostei (em certa de trinta, gostar de três, até que é bom...) foi o Fabian Casas, da Argentina. Outro que recitou na tal Praça - que o Horácio, sempre inspirado, classificou como "um mercado do século XIV" -; mas o Fabian teve ainda menos sorte, porque, além de enfrentar a incompreensão dos populares, lutou contra o som de uma discoteca, no sábado à noite, à toda. Num dado momento, a própria Lucila alcançou o microfone e incitou o coro (do qual fazia parte, por exemplo, o Ronaldo Correia de Brito): "Desliguem o tecno americano!". Não era tecno, nem era americano. Era Kid Abelha cantando "Pintura Íntima", numa versão eletrônica. (O que teriam pensado os letristas do Rock BR, considerados igualmente "poetas" por tantos?)

* As mesas dedicadas à cultura e à importância de Pernambuco eram, também, muitas. Gostei bastante da palestra do professor Edson Nery da Fonseca, reforçando a relação de Gilberto Freyre com a América Latina. Manuel Bandeira também apareceu, lindamente, nas palavras de Thiago de Mello (esse, um poeta total), que chegou a se emocionar na abertura da Fliporto. Tinha uma voz poderosa, estilo Dorival Caymmi, e alcançou aquele estado que permite alguém falar, com propriedade, do sentido da vida. No dia seguinte, uma fã, tendo um livro seu autografado, chorava ao contemplá-lo... Mas voltando a Pernambuco: bastante ilustrativa a mesa sobre os cinco séculos de poesia no estado; na realidade, um livro; atores de teatro declamavam, com inventividade, um poema de cada autor. João Cabral (sempre), Joaquim Cardozo (incrível como ele é forte em Pernambuco); até figuras históricas como Frei Caneca; e memorialistas ou prosadores como Joaquim Nabuco. A princípio, pode soar como bairrismo, mas não é exagero - porque a importância do Recife, por exemplo no século XX, se mede pela presença ali de Clarice Lispector (durante sua infância) e de Nélson Rodrigues (durante seus primeiros anos). O Horácio Costa e o Celso Daniel foram para Olinda, um dia. Eu não consegui; mas fiquei com vontade.

* Outra mesa boa foi a do Antônio Torres e do Moacyr Scliar. Falaram bastante como foram inventadas, nos anos 70, as turnês de escritores. (Depois o Movimento Literatura Urgente acha que inventou alguma coisa...) Antônio Torres, Ignácio de Loyola Brandão e João Antônio saíam autografando e dando palestras pelo Brasil afora, vendendo, eles mesmos, os livros, "evangelizando", no bom sentido, a população para a causa de literatura. Depois, eu falei para o Antônio Torres que essa vivência deles era imbatível ("on the road", brincou o Ivan Junqueira) - na comparação com os escritores novos, que não tinham nada para falar ("a literatura de hoje anda muito umbigocêntrica", Ivan Junqueira, de novo). E o Moacyr Scliar é muito carismático. E seguro. Contou, imperturbável, a história de ter sofrido plágio, por aquele autor canadense, mas foi elegantíssimo. Passou por cima. Confesso que tentei ler os últimos livros tanto de um quanto do outro (Torres e Scliar), mas não consegui - ainda assim, não muda a minha avaliação da mesa deles na Fliporto. Os escritores - penso eu - têm, às vezes, fases melhores falando do que escrevendo. E as lições devemos tirar das duas coisas.

* Na questão estrita da América Latina (a tônica desta Fliporto), e mesmo dos autores latino-americanos, não sei se, desta vez, embarquei muito. Acho bonita a causa da América Latina unida (muito levantada, por exemplo, pelo pessoal da revista Archipiélago), mas não sei se acho viável - na prática. Eles têm uma coisa que nós não temos, que é a união da língua e, parcialmente, da cultura - o que podem querer mais? Força política? Relevância econômica? E eles têm uma forte contrapartida, agora, na Europa: a Espanha. Nós não temos nada disso, embora o Brasil tenha permanecido unido e não tenha virado uma porção de países (ainda que seja assim, na prática): temos uma língua, representativamente, fraca no mundo; e não temos tanta representatividade hoje na Europa (afinal, Portugal não apita tanto quanto a Espanha contemporânea). Alguns brasileiros se deixam envolver pela cultura da América Latina, como os organizadores da Fliporto, o Douglas Diegues e até eu, em certo ponto, mas isso não me faz acreditar que o Brasil inteiro possa embarcar numa viagem de se "unir" à América Hispânica. A história do Brasil é outra. E, muitas vezes, eu acho que estamos mais próximos dos Estados Unidos - pela dimensão continental, pela posição estratégica no globo, pelo caldeirão cultural com a África e os imigrantes - do que qualquer outra nação. (Xingamentos, ao final, no espaço para comentários...)

* Para mim, como palestrante, valeu a experiência da Fliporto. E para o público, valeu? Não saberia informar. Mas a Flip original permanece, ainda, como referência absoluta (apesar das falhas que eu, anualmente, aponto). Acontece que a organização da Flip é imbatível. A minha avaliação, em Parati, é mais conceitual, e acaba não sendo uma responsabilidade, de todo, dos organizadores. Hoje existem tantos pontos de vista sobre os caminhos da literatura no Brasil... Independentemente de quem tem razão, uma coisa é certa: poucas vezes se discutiu tanto o assunto. Poucas vezes ("na história deste País") a literatura foi, tão insistentemente, pauta, no País de Não-Leitores. Talvez, como os blogs (Pedro Doria), seja só uma bolha... Os autores mais velhos, na Fliporto, me pareceram sem esperança - depois de uma vida toda devotada à tentativa de fazer a classe média preferir literatura à novela das oito (em vão). Com a fragmentação das mídias, contudo, os autores novos parecem mais esperançosos - ainda que, de literatura mesmo, entendam pouco. Paradoxo clássico: quem sabe, não pode (ou não quer mais); quem pode, não sabe... Particularmente, eu acho que esse negócio de ler tanto, na internet, ainda vai nos levar a algum lugar...

Para ir além
Fliporto

Julio Daio Borges
São Paulo, 25/10/2007

 

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