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Terça-feira, 2/10/2007 Dando a Hawthorne seu real valor Daniel Lopes Pode parecer desperdício de espaço, mesmo de espaço virtual, dedicar um texto a um clássico da literatura, nessa época em que os leitores (escritores incluídos) cada vez mais tacham primeiro a crítica literária e, depois, os próprios clássicos como insignificantes. E, no entanto, é de um clássico que trata este artigo. The scarlet letter, de Nathaniel Hawthorne, foi publicado pela primeira vez em 1850 (no Brasil, A letra escarlate, Martin Claret, 2006, 247 págs.). Se passa na Nova Inglaterra e remete a um acontecimento fictício do século XVIII, a saber, de como Hester Prynne, mulher de meia-idade, foi punida por ter tido uma filha fora do casamento e, juntando ofensa ao pecado, se recusado a revelar o pai da criança. De fato, esse drama é bem conhecido; já foi transposto para o cinema várias vezes, a última delas em 1995, com Demi Moore no papel de Hester. O que é importante, a cada vez que se falar do livro, é desfazer um mito que o cerca, aquele que diz que sua protagonista principal é uma mulher "forte", "revolucionária" mesmo. Tampouco o livro é revolucionário, quanto à forma - lembra muito as obras do período romântico na rija linearidade de seus capítulos. Além disso, embora seu autor seja tido como um divisor de águas na literatura estadunidense, por ser o primeiro a adotar uma prosa mais distinta da dos ingleses, ele emprega aqui várias passagens de puro romantismo, ainda que no geral trate-se de uma peça realista, levantando questões sociais importantes. Hester Prynne. Esta é vista por vários leitores de Hawthorne como uma pessoa extremamente corajosa, de pensamento avançado muito além de seu tempo. Alguns podem ver mesmo em sua figura uma precursora das lutas feministas. Nada disso, no entanto, encontra fundamento em The scarlet letter, e só pode resultar de uma leitura desatenta ou pré-determinada. Vejamos o enredo. Devido ao relacionamento ilegal que gerou uma criança, a menina Pérola, Hester, logo após o nascimento da filha, e com ela nos braços, é exposta em praça pública com uma letra "A" de tom escarlate no peito. "A" de adúltera. Eis seu castigo - carregar a vestimenta que contém essa letra pelo resto da vida, como uma mácula. O castigo é uma cortesia da Justiça da Nova Inglaterra setecentista, que nada mais faz que representar os anseios de uma população de moralismo radical e misticismo vulgar. Com a condenação efetivada, Hester recusa-se a deixar os Estados Unidos rumo à Inglaterra, onde poderia passar despercebida e recomeçar a vida. Isso porque ela internalizou a pena que os outros lhe imputaram, raciocinando que a Nova Inglaterra "foi o cenário de sua culpa, e aqui deveria ser o cenário de sua punição terrena; e então, talvez, a tortura que seria sua vergonha diária acabaria por purgar sua alma, e gerar uma outra pureza além da que ela havia perdido; uma mais beatífica, porque resultado de um martírio" (tradução livre a partir do texto original editado pela Dover Thrift). Essa visão da protagonista não é em nenhuma medida revolucionária, convenhamos. Adiante, o autor apresenta mais detalhadamente Arthur Dimmesdale. Ele é o pai de Pérola. Ou seja, aquele que pecou junto com Hester. Só que no seu caso tudo se complica ainda mais, por ser ele um respeitado religioso. Tão respeitado que, quando começa a ficar pálido por conta das angústias decorrentes de sua falta junto aos rigores da conduta cristã, algumas pessoas, sem suspeitar da verdadeira causa de sua palidez, "declaravam que, se o Sr. Dimmesdale estava morrendo, isso se dava porque o mundo não era mais digno de ser trilhado por seus pés". O peso na consciência faz Dimmesdale ter alucinações, e, além disso, há um simbolismo aqui: ele vive com a mão no peito, como se a sua letra escarlate estivesse não exposta, como a de Hester, mas escondida no coração e, assim, muito mais lancinante. Aqui, surge em cena Roger Chillingworth, marido de Hester que, quando retorna de um longo período em meio aos nativos da América do Norte, é cheio de surpresa e decepção que a encontra exposta em praça pública, com uma filha fruto de pecado nos braços. Conhecedor da medicina natural que usa ervas e raízes, Roger acaba sendo encarregado de curar o reverendo Dimmesdale de seus maus ares. Imediatamente ele suspeita no religioso a existência de um segredo guardado a sete chaves, o qual, por meio de longas conversas onde vai deixar transparecer uma despretensão inexistente, tentará descobrir, mesmo que tal mistério não seja dito com todas as letras por Arthur. É para isso que existe a malícia, e Roger é cheio dela. As situações vão ficando tensas e levam a um final que não é genial, chega mesmo a ser cansativo, com muita prosa poética e diálogos previsíveis. Mas o que nos interessa é o comportamento de Hester. Ela, além de se decidir por ficar na Nova Inglaterra para viver sua sentença, nem mesmo cria antipatia pela sociedade que a puniu. Pelo contrário, passa a servir os cidadãos em épocas de surtos de doenças, o que faz com que muitos passem a ver em seu "A" não a inicial de "adúltera", mas de "able" (capaz). Nada como o tempo. Também, Hester Prynne reconhece seu lugar não apenas como determinado pela hierarquia dos gêneros (um homem que tem um filho ilegal, naquela sociedade, não sofre nenhuma retaliação, já uma mulher... e isso parece muito natural), mas também pela das classes sociais - "Hester nunca exigiu mesmo nem o mais humilde direito de compartilhar dos privilégios do mundo, a não ser respirar o ar comum e ganhar o pão de cada dia para a pequena Pérola e para si mesma através do leal trabalho de suas mãos". Desse modo ela se auto-habilita a ocupar o patamar de mulher humilde e pecadora. Não é que, nos momentos de placidez que às vezes invadiam sua solidão, ela não se tenha permitido alguns pensamentos heterodoxos (ou "liberdade de especulação", na época mais comum no outro lado do Atlântico), mas a presença de Pérola a seu lado lhe dava um "senso de maternidade" que acalmava os ânimos. Não fosse por isso, talvez, em dando curso a tais pensamentos e os convertendo em ação, ela pudesse acabar por "solapar as fundações do establishment puritano", embora Hawthorne não explique quais ações de sua personagem poderiam levar a isso, e sobre as quais podemos apenas especular. É interessantíssimo notar que a atitude mais "revolucionária" (ou menos convencional) de Hester não é em relação à libertação feminina, mas contra o celibato, e ainda assim de forma bastante indireta, despropositada, pode-se dizer mesmo inconsciente. São de suas conversas a sós com Dimmesdale que podemos inferir tal atitude. Ela lhe diz: "O que tens tu a ver com todos esses homens de ferro e suas opiniões? [referindo-se aos superiores do amante na hierarquia da igreja] Eles mantiveram o melhor de ti em escravidão por muito tempo já!". E sugere: "O futuro ainda está cheio de experiência e sucesso. Há felicidade para ser desfrutada! (...) Pregue! Escreva! Aja! Faça qualquer coisa, menos ficar parado até morrer!". Ora, é assaz lógica e surpreendente a conclusão a que chegamos: nenhuma das atitudes que Hester urge serem tomadas pelo amante, ela própria teria coragem de assumir. Ela, que depois da sentença recolheu-se com a filha em uma casinha isolada, decidida a remoer calada sua desgraça. Ela, que em nenhum momento sequer aventa a possibilidade de revelar a seus algozes o nome do respeitável Arthur como co-reponsável por toda aquela infâmia. Resumo da ópera. Nathaniel Hawthorne, até hoje elogiado por gente como seus conterrâneos Paul Auster e Philip Roth, através de sua mais conhecida obra não quis traçar a saga de uma mulher injustiçada que se rebela contra a opressão de uma sociedade puritana e hipócrita, utilizando para isso uma linguagem e/ou formato literário inovador. Não. Ele quis, isso sim, através de uma técnica convencional (e quase sempre eficaz), retratar uma mulher a tal ponto inserida numa sociedade puritana e hipócrita, que não vislumbra nada além de suas fronteiras e juízos, não vendo como ou por que se rebelar, e não fazendo qualquer esforço nessa direção. Está aí a grande contribuição de Hawthorne às letras e ao pensamento social estadunidense, que, para não passar despercebida, deve tomar o lugar de interpretações equivocadas que vêem em sua célebre personagem aquilo que ela não é. Para ir além Daniel Lopes |
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