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Segunda-feira, 28/9/1953 Guga, para iniciantes Guga Schultze Quando eu nasci, a bruxa malvada do Oeste estava lá, disfarçada de enfermeira, ou tia distante, fazendo uma visita. Apontou seu dedo magro pra mim e disse: - Vocês pensam que esse bebê feioso vai se tornar um belo rapagão? Ah, não vai não! - e saiu, escoltada até a porta pelo meu avô, ex-inquisidor do exército brasileiro, que detestava surdamente bruxas de todo tipo. Todo mundo ainda estava lá, ouvindo enternecidamente os berros do bebê chorão, quando ela voltou, aparecendo na janela, pelo lado de fora, batendo com o dedo magro nos vidros fechados até que alguém a notasse. Meu pai foi lá, subir o vidro. - Sim? - perguntou ele. Com o dedo unhudo na frente do nariz, como se revelasse um segrêdo, ela ainda disse: - E vai ser careca! - e foi embora para sempre, como faz uma bruxa malvada depois de amaldiçoar alguém. Suponho que tenha voltado para o Oeste, mas não tenho certeza. De forma que tive que nascer de novo, aos sete anos de idade - sendo isto, evidentemente, uma imagem poética que roubei do Millôr Fernandes -, trocando a zona norte do Rio de Janeiro, minha cidade natal, por um vale encantado no interior de Minas. Foi uma bela tentativa de fugir da maldição, mas que funcionou apenas parcialmente. Muitos anos depois, relendo trechos da Bíblia - não com as intenções de praxe, mas com outras, inconfessáveis - descobri que eu estive nos jardins do Éden, lá pelos meus sete anos de idade. Não vou descrever o Éden, indescritível por natureza. Fomos expulsos em pouco mais de dois anos, quero dizer, a família toda teve que se mandar para Belo Horizonte. Um lance político qualquer, com o meu pai sendo mandado embora, faltando só a espada de fogo nas mãos do anjo guardião, o segurança do todo-poderoso (assim com minúsculas). Mas cada ano vivido lá valeu por uns cinco, se fossem vividos em qualquer outro lugar. De forma que eu estava em Belo Horizonte, com a idade entre oito e nove anos e era, sem dúvida, uns dez anos mais velho. Essa margem temporal a meu favor foi diminuindo através dos anos e, finalmente, no meu último aniversário, olhando para minha própria imagem no espelho do banheiro, pude recitar, com toda convicção, outra frase do Millôr: "a verdade é que já sou um homem da minha idade". Menos mal. Eu só lia, escrevia poemas e desenhava em todos meus cadernos escolares, ou seja, desdenhava totalmente a escola. Meus rabiscos e traços, guardados em gavetas, foram devidamente apreciados pelas traças, meu público fiel. Nunca liguei muito para meus originais e, acredito, pelo menos nisso eu fui original. A espinha dorsal da arte, ou seja, a auto-valorização que cada artista acaba desenvolvendo, em mim esteve ausente. Talvez por isso, acabei virando um fumante invertebrado. Parei de fumar muitas vezes. Sempre ao terminar um cigarro. Não pretendo dissertar sobre minha vida acadêmica, mesmo porque, praticamente, não tive nenhuma. Dos vinte aos vinte e tantos anos enfrentei uns cinco vestibulares. Passei em tudo, ok, e de primeira, mas o tempo somado nessas cinco faculdades não chega a um ano, acho eu. Eu me envolvia num corpo a corpo com o corpo docente, na maior parte das vezes. Hoje eu sei que a culpa não foi de ninguém, apenas do bom deus, que criou corpos do barro e viu que era bom, e criou os corpos docentes e não viu que não era bom. Uma falha divina, como tantas. Muito mais interessante, pelo menos pra mim, foram outros aprendizados. Por exemplo, alguns anos praticando karatê. E eu era um talento, a julgar pelo que o sensei (mestre) vivia me dizendo: "Tá lento! Tá lento!" Parei com aquele negócio no dia em que me peguei trocando socos numa aula e pensando no que Faulkner queria realmente dizer com um dos monólogos de Darl, em Enquanto Agonizo. Fiz também um curso de tiro e me descobri um ótimo atirador, apesar do astigmatismo e da hipermetropia, além de não gostar de estampidos. Nem o de rolha de champanhe. Na verdade, desenvolvi duas técnicas essenciais à prática do tiro, mas não vou, aqui, passar o ouro pros bandidos. Em todo caso, cartas para a redação. Meus amigos me dizem que não me assusto facilmente. Não é bem assim. O que acontece é que os impulsos nervosos chegam muito lentamente ao meu cérebro, de forma que duas ou três horas depois do susto, costumo gritar: "aaahhh!" Mas aí eu disfarço e digo que me lembrei de alguma coisa, e a impressão deles permanece. E para não dizer que não falei de flores, um cursinho de cinema aqui, outro de programação de computadores acolá, essas coisas amenas da modernidade. Aprendi pelo menos a programar uma ida ao cinema. Tudo é lucro, tô dizendo. Conservo intacta minha inclinação noctívaga e, se antes eu gostava de andar pelas ruas à noite, procurando estrelas no céu da cidade e nos olhos das mulheres distraídas, hoje, quando a noite desce, inclino-me para a cama e durmo o sono dos justos. E dos injustos também. Ainda uma inclinação noctívaga, é ou não é? Acredito intensamente no ocultismo e uso sempre que preciso. Na verdade, virei um mestre do ocultismo: quando me oculto, ninguém me acha. Telepatia pra mim é coisa trivial e leio pensamentos até de espíritos antigos, é só abrir os livros. Gosto de cães e gatos. Me identifico com a postura típica desses últimos, em cima dos muros. Principalmente quando os cães estão latindo lá embaixo e aí é que eles não descem de jeito nenhum. Às vezes me sinto pequeno frente à gigantesca maré cultural do novo milênio; eu, uma criatura do milênio passado. Mas, em compensação, elevo-me na companhia dos meus amigos. Os mais baixinhos, claro. Libriano, ascendente em Leão, oscilando entre o sim e o não com a leveza de um elétron desgarrado; essa leveza de quem desconfia, a priori, do fenômeno muito comum das convicções totais. Me defendo, às vezes, da urgência, de alguma cobrança em minha postura - cobrança mínima que seja - com a máxima filosófica: "penso, logo, hesito". Mas não prefiro ser essa metamorfose ambulante. Isso, por algum motivo, me soa kafkaniano demais, embora não o seja. E se escrevi pilhas de textos, está tudo nas gavetas, esperando a fogueira, a mesma que Kafka quis mas não ousou fazer com seus papéis. Um desejo que é, diga-se de passagem, minha única afinidade com esse sujeito. Coisas de escritor que desconfia da escrita, a começar pelo próprio texto. Acho literatura um mal necessário. Entre um mal necessário e um bem desnecessário, fico com o primeiro. Ainda que ache bem desnecessário ter que escolher. A memória é uma peneira sacudida continuamente pelo tempo; ficam algumas pepitas, Faulkner, Shakespeare, poesia sulamericana, o rock dos Beatles e Stones, outras coisas que estão chegando agora, coisas que ainda chegarão e ficarão retidas por um tempo - mas, como disse George Harrison, all thinghs must pass. Por falar em tempo, não gosto de revelar idade - nenhum problema quanto a isso, apenas precaução contra os preconceitos arraigados que as pessoas mais jovens têm. Falo de experiência própria - não que eu os tenha sofrido, mas porque também os tive. Plantei árvores (uma), escrevi livros, tive filhos. Não necessariamente nessa ordem e, disso tudo que está escrito neste parágrafo, até aqui, só posso dizer que não se pode sempre evitar o chavão. Nesse caso, particularmente, muito melhor não evitar. E a tempo: Guga é um apelido, claro. Um apelido de infãncia. Schultze é mesmo nome de família, mas descartado pelo meu avô, o titular. E que eu resgatei e tal. Uma longa história desinteressante. Mas já aconteceu de alguém ir lá em casa procurando por Rodrigo Godoy e eu mesmo respondi: quem? Guga Schultze |
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