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Segunda-feira, 22/10/2007
O ano em que estou pouco me lixando para o Oscar
Clayton Melo

O ano em que meus pais saíram de férias, filme dirigido por Cao Hamburger, acaba de ser escolhido como representante brasileiro no Oscar. Sim, é "festa da indústria", não vou engrossar o coro verde-e-amarelo para que papemos o caneco dourado e nem me interessa aqui conjecturar sobre as reais possibilidades de vitória do longa brasileiro. Em todo caso, fiquei feliz com sua indicação, pois se trata de um belo filme e que faz parte da fina flor do nosso cinema contemporâneo.

O primeiro ponto que sobressai nesse longa-metragem é o deslocamento do foco quando o assunto é a memória dos anos de chumbo. O ano em que meus pais saíram de férias traz latente a questão da ditadura militar vista pela ótica da infância roubada. Também evoca reflexões sobre a relação paradoxal do futebol com a alma de um país - paixão nacional utilizada como instrumento de alienação pelo governo militar.

Além desses temas, no entanto, há um outro que corre subjacente, mas cuja força se impõe para além das demais abordagens possíveis: é o despertar do sentido de humanidade frente a situações-limite. É o resgate da fraternidade em tempos sombrios.

Um personagem em particular simboliza esse movimento: é Shlomo (Germano Haiut), um velho judeu solitário que se vê forçado a cuidar de Mauro (Michel Joelsas), menino de aproximadamente 11 anos. Perseguidos pela ditadura militar, os pais do garoto fogem e o deixam aos cuidados do avô (Paulo Autran), que morre no mesmo dia em que recebe a notícia de que passaria a se responsabilizar pelo neto.

Mauro então se vê sozinho no mundo. Shlomo entra na história por ser vizinho do avô do garoto. Ao perceber que o menino não tem onde ficar, acolhe-o em seu apartamento - a contragosto, quase que por obrigação.

No início, a relação entre ambos é pautada pela frieza do velho, que por vezes se mostra indiferente ou dá lampejos de impaciência. Com o passar do tempo, no entanto, estabelece-se sorrateiramente uma relação de cumplicidade, como se a solidão de ambos pavimentasse o terreno para o afeto, para o carinho - ainda que tudo se dê quase que no silêncio. Com poucas palavras e sem toques, desenvolve-se entre eles um poderoso sentido de fraternidade.

A partir desse contato, Shlomo começa a se transformar. Fica nítida a preocupação sincera com o bem-estar, com o destino de Mauro. O grande mérito de Cao Hamburger é ter feito com que o processo de humanização de Shlomo - que tem no menino o agente da transformação - se desse sutilmente, sem arremedos de pieguices, sem o estratagema das histórias de Hollywood. Não há excessos, e os sentimentos se manifestam pelo olhar - da câmera e dos personagens.

As mudanças em Shlomo atingem o ápice quando ele empreende uma busca para saber do paradeiro dos pais de Mauro. Arrisca a própria pele, tanto que é preso pela polícia acusado de subversão - tudo porque manteve contatos com quem não devia. "Foi virar comunista depois de velho?", ironiza um policial.

Todas essas questões me remetem ao que Hannah Arendt analisa em Homens em tempos sombrios. No livro, a pensadora alemã reflete sobre a transformação por que passa o ser humano em épocas terríveis. Ela cita Rousseau, para quem a "natureza humana comum a todos os homens se manifesta não na razão, mas na compaixão, numa aversão inata, conforme colocou, a ver um companheiro humano suportando sofrimentos", escreve Hannah. Ela continua: "Lessing estava bem familiarizado com ela (a fraternidade); ele falou dos sentimentos filantrópicos, de um apego fraternal a outros seres humanos que brota do ódio ao mundo onde os homens são tratados 'inumanamente'. Para nossos propósitos, porém, é importante o fato de a humanidade se manifestar mais freqüentemente em 'tempos sombrios'".

O fato de Shlomo ser judeu só reforça a representação do sentido de fraternidade em tempos sombrios de que fala Hannah Arendt. Afinal, trata-se de um povo que sofreu na pele a opressão - vide o nazismo. Recorrendo mais uma vez às palavras de Hannah, "a humanidade sob a forma de fraternidade, de modo invariável, aparece historicamente entre povos perseguidos e grupos escravizados; e, na Europa do século XVIII, deve ter sido natural detetá-la entre os judeus, que eram então recém-chegados ao círculo literário".

E veja como são as coisas: uma das amiguinhas de Mauro se chama Hanna (sem "h" no final), papel interpretado com brilho por Daniela Piepszyk, garotinha para lá de talentosa que rouba a cena. Pode não ter sido proposital, mas a semelhança com o nome de Hannah Arendt não deixa de ser simbólica.

De resto, O ano em que meus pais saíram de férias é pura poesia, pelo que diz e não diz; pelos recados no silêncio, pelo olhar da câmera que se faz criança; pela certeza de que, embora as feridas abertas pelos anos de chumbo não estejam plenamente cicatrizadas, a experiência humana supera o Arbítrio.

Nota do Editor
Clayton Melo é jornalista e assina o blog Ponto de Fuga.

Clayton Melo
São Paulo, 22/10/2007

 

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