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Sexta-feira, 21/12/2007
Do ridículo (especial aviões)
Ana Elisa Ribeiro

"Ridículo" é uma palavra comum, empregada amiúde no dia-a-dia do mais jovem falante da língua, ainda mais neste país. Mas "ridículo" tem sinônimos (ou quase) mais elegantes, tais como os equivalentes "risível" ou o agressivo "grotesco", que são bem menos aplicados em situações normais. Mas é isso o que é, de vez em quando: grotesco. Sem aspas nem nada, porque elas, aqui, tinham apenas a função de destacar uma palavra das outras, metalinguagem. Não sendo isso, é risível mesmo. E há circunstâncias em que a sensação do ridículo passa discreta como um elefante pela nossa frente. Sentir-se ridículo embrulha o estômago, de um jeito nojento. Sentir-se ridículo pode dar raiva também. Constrangimento, dano moral. Muitas vezes a gente tem vontade de chorar por ter sido ridículo. Fernando Pessoa, que mais elegante não há na escrita, falava no ridículo. Chamava as cartas de ridículas, quando são cartas de amor. Ridículas. Casais apaixonados soam ridículos mesmo, se bem que a palavra "barangos" seja mais adequada. Mas quem nunca foi ridículo? É risível achar que a elegância dura o tempo todo. Seja lá onde for.

Cenas risíveis
O avião estava quase decolando. A moça no microfone apressava nominalmente os ridículos que se atrasavam. Não se sabe por que alguém perde o avião. Tudo tão planejado, avisado, repisado. Mas as pessoas se despedem tanto, mas tanto, que o avião sobe. E a moça estava encalacrada no detector de metais. No meio do aeroporto, sala de embarque cheia, e ela ali, atrasada, tirando o cinto de metaleira para ver se o detector parava de apitar.

No avião, a dona do corpinho arbustivo dorme. E ronca de boca aberta. A aeromoça (mais precisamente, uma aerovelha) passa constrangida e deixa a senhora sem sanduíche. Fiquei o tempo todo observando para ver se a dona ia babar. Não babou.

O segurança é anão. Forte, másculo, simpático, mas é anão. E se alguém resolver infringir as regras de segurança do aeroporto? O que fará o segurança anão?

No Rio, o túnel Rebouças estava avariado. Ninguém entra, ninguém sai. Dizem que não havia táxis no aeroporto. Todo mundo preso no trânsito. Quando chegava táxi, cobrava 150 reais para levar trouxa até o Centro. Vê se pode? Na fila, os sotaques paulistas teciam comentários: só podia ser carioca mesmo. Eu pensava: só podia ser paulista mesmo. A gaúcha se espremia entre a pernambucana e a goiana que falavam ao celular, na fila, bem alto, pra todo mundo ouvir que elas iam pra Copa. Táxi mais caro ainda.

Mais tarde, ainda o Rebouças avariado, o trânsito menos anormal e os táxis já cobravam 50 reais para ir até o Centro. Mas os despachantes, simpáticos, falavam de futebol, organizavam a fila e negociavam com as pessoas para que fossem de duas ou três em cada carro. Pelo mesmo valor, por cabeça.

Os carros passavam dentro de poças de água. Saía vapor dos canos de descarga dos automóveis. A moça corria como uma aranha por entre as enxurradinhas de lama da Lapa. De salto alto.

A porta do banco não me deixa entrar. Não há cinto nem relógio. O apito toca e o segurança olha com cara de poucos amigos. Vê se tenho cara de bandida? Antes tivesse. Estaria muito mais segura.

O portão do prédio tem timer. Depois de alguns segundos, ele se fecha sozinho. A moça ficou presa com a sombrinha emperrada. Mandaram correr, ela achou que era brincadeira. O portão emperrou. A moça está machucada. O portão não deixa ninguém entrar tranqüilo. Medo infantil de que a cancela caia na cabeça, parta o crânio. Há medos que nos lembram as noites no berço.

O trânsito está ruim. Tudo meio lento, ameaça chover e o cansaço amplifica as buzinas. O cheiro das coisas se perdeu no mormaço. Santa Rita, valei-me. Mas aí o sinal fica vermelho. Quando volta ao verde, antes mesmo de tudo voltar a funcionar, o cara de trás buzina. É ridículo.

O outro parou antes da faixa, mesmo com sinal verde, porque percebeu que não caberia do outro lado da rua. Se se adiantasse, fecharia o cruzamento, causando a sensação de ridículo de quem dirige na transversal. Preferiu parar. O motorista da Kombi atrás não entendeu. Tem gente que não tem visão nenhuma, nem para o que está logo adiante, embaixo do nariz.

Interessante mesmo foi a saída do shopping, onde as cancelas se abrem e se fecham zilhões de vezes por dia. Na chuva, à noite, alguém esqueceu o bilhete com o código de barras que permite a saída. A cancela não se abriu. O fiscal veio conversar. Formou-se uma fila de uns dez carros logo atrás. Buzinas. As pessoas começam inteligentes e compreensivas, mas dura pouco. O moço vasculhou os bolsos, a bolsa, o carro inteiro. Não achou. O fiscal mandou voltar. A fila atrás não deixou. Então o motorista da picape que estava atrás, uma dessas robustas-para-homens-com-pinto-pequeno, arrastou o carro do moço e saiu levando a cancela do shopping. Eu fico na dúvida sobre a reação dessas pessoas grotescas. Será que acham bacana contar isso no bar? E a moça que acompanhava o dono da camionete? Quem teria um namorado desses?

A médica pensou que iria sozinha na fila de três poltronas. Quando me viu, resistiu em tirar a bela bolsa de grife do assento. Depois, fez boca murcha quando me sentei bem ao lado dela. Passou a viagem, de pouco mais de duas horas, lendo a dissertação de mestrado de algum infeliz que tratava de cirurgia plástica. Eu lia uns pedacinhos, mas não podia chegar muito perto. A viagem inteira foi árdua. A médica passava as páginas do volume espiralado e fazia manobras para me importunar. Vingança. Ela me batia com os cotovelos, esbarrava em mim e cruzava as pernas com amplitude bem maior do que o necessário. Não desisti. Fiquei ali assim mesmo, fingindo que comia amendoim.

O avião vai sair. O aviso nas telas dizia que a aeronave já estava em solo. Depois piscou para Now bording. É isso mesmo? Não dava vontade de ir embora. Tanta gente dizendo que o avião pode cair. Mas a gente prefere ir assim mesmo. Antes eu levo um dossiê da Clarice Lispector para ler durante o vôo. Cadeira do meio, que eu detesto. A moça ao lado chama a comissária: me arranja gelo? Fiquei encafifada por alguns minutos, me sentindo ridícula ao perguntar. Mas me intrometi: para quê gelo? É que diminui minha imensa vontade de vomitar. O gelo veio. Chamei a comissária: Quer gelo também? Não, quero saber se neste vôo tem alguma poltrona sobrando. Descaradamente. Pela atenção, obrigada. Have a nice flight.

Ana Elisa Ribeiro
Belo Horizonte, 21/12/2007

 

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