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Terça-feira, 16/10/2001
Para pecar, vá de manga
Vera Moreira

Yara Mitsuishi

Minha última coluna gastronômica (Proibida ou não, é musa inspiradora) discorria sobre questões bíblicas e foi ao ar no terrível dia 11 de setembro. Afeita da interpretação de sinais que sou, fiquei muito em dúvida de voltar a mexer com o Jardim do Éden. Mas, teimosa como uma mula e pra nunca perder a consciência de que a razão deve prevalecer sobre a superstição, lá vou eu. A história, agora, é com a uva e pra esquentar a “polêmica”, resolvi eu mesma eleger o fruto proibido: manga. Quem já caiu de boca numa manga vai avalizar minhas argumentações para essa eleição, tenho certeza.

Depois da teoria da banana ser o fruto proibido a Adão e Eva, descobri, lendo um livro bárbaro, “Receitas inspiradas da Bíblia”, que existem os defensores (ou seriam acusadores?) da uva. Os excessos de vinho eram bastante conhecidos nos tempos bíblicos. Dizem que depois de muitas pesquisas realizadas, os especialistas foram levados a crer na uva. Que outra fruta, indagam, poderia ter sido responsável por tentar o primeiro casal a desobedecer a Deus com tanta facilidade? Mas se o álcool levou o homem a pecar, a uva não foi única culpada, pois os povos antigos eram mestres em obter álcool também a partir de figos, tâmaras e cereais. O vinho, em geral, era diluído com água e quase sempre condimentado com canela, mel e ervas. Os gregos e romanos ainda bebiam o vinho misturado com água do mar (arghhh...), o que dá uns ares de moderação, não parece?

Pensei muito no assunto e fiquei convencida de que nem banana, nem uva, mas quanto menos maçã pode ser o fruto proibido. Vamos ser razoáveis, a maçã é uma fruta inocente, que combina muito mais com o amor do que com o pecado. Foi o beijo de amor do Príncipe Encantado que tirou da boca de Branca de Neve o pedacinho de maçã envenenada pela invejosa Rainha. Através dos tempos, a maçã do amor, encarnada de tão vermelha, é partilhada por casais apaixonados, desafiando, inclusive, toda e qualquer lógica do paladar.

Raspando de colherinha, você alimenta com a polpa da maçã o seu bebê. Já houve quem dissesse que as tortas de maçã são uma parte considerável da felicidade doméstica dos norte-americanos. E são as sobremesas mais apreciadas nos bistrôs franceses, o tipo de restaurante que prima por fazer as pessoas se sentirem como se estivessem em seus lares. A primeira aparição de uma torta de fruta na literatura inglesa – a descoberta de colocar frutas frescas dentro das tortas, no século XVI, foi de ingleses e franceses –, num verso da Arcádia, de Robert Greene, dizia: “Thy breath is like the steame of apple-pyes” – Vosso alento é como o vapor de tortas de maçã. Já os austríacos têm o delicado apfelstrudel, meu grande orgulho de carregar o sobrenome Spiess de minha querida mãe, que faz essa quinta maravilha do universo como ninguém, ninguém mesmo! É puro amor de mãe em forma de doce.

Na colheita dos pomares da Bretanha, existe a figura da mãe das maçãs, o símbolo da fertilidade e da boa sorte. A melhor maçã era deixada na ponta do galho mais alto, se ela se mantivesse no galho até todas as folhas terem caído com os ventos do outono, haveria uma boa colheita no ano seguinte. Não apenas naquela árvore, mas em todo o pomar, incluindo as pereiras e ameixeiras. E quem não conhece o ditado popular americano “An apple a day keeps a doctor away”? Se sentir dor de estômago, coma uma maçã e constate o milagre. Tome chá de maçã para inflamações da bexiga. Enxágüe os cabelos com vinagre de maçã, para evitar a queda. A maçã é assim, amantíssima, uma fruta que inspira o belo, a saúde, uma energia pueril.

Eu nunca vou esquecer do Mário de Santi e sua indefectível maçã todas as tardes na redação da Gazeta Mercantil, em Porto Alegre. Ficava pensando, quando eu crescer, vou ser igual ao Mário. Ele era tão diferente do resto ruidoso da redação, um homem saudável, equilibrado, com a vida bem resolvida. Eu, naquela época, aos 20 anos, me deixava seduzir por qualquer prato de dobradinha e cerveja em um boteco sujo da esquina. Cresci e já não sucumbo mais com tanto entusiasmo a bucho e cevada (apesar de sentir verdadeira saudade daquela dobradinha, programa obrigatório de happy hour na maravilhosa companhia de Luiz Carlos Merten). No entanto, ainda não cheguei à perfeição do Mário. Até hoje este meu amigo é aquele tipo de pessoa que você encontra às 8 da manhã ou às 8 da noite e tem sempre a impressão que ele recém saiu do banho. Assim, continuo comendo maçã todas as tardes – esperança é a última que morre!

Mas, então, qual seria uma fruta tão libidinosa que poderia expulsar Adão e Eva do Paraíso? A manga, é claro. Quando você começa a descascar uma manga, sente a delícia do tato com a sua carne firme, macia e morna. A textura lúbrica, o perfume doce e a cor dourada como o sol, um convite irresistível ao prazer. Na primeira mordida você já começa a se lambuzar todo e daí pra frente é um chupa e lambe de proporções pecaminosas. No final, você está com as mãos e a boca completamente molhadas daquele suco viscoso e inegavelmente saciado. A manga chega a ser indecente, encantadoramente indecente. Mas logo, logo vem uma sensação de culpa, porque no afã de devorá-la, as fibras se grudaram em todos os seus dentes, sem exceção. É como aquelas paixões/tesões avassaladoras, você vai ao céu e ao inferno em questão de minutos.

A manga nua e crua é esplêndida, mas também preparada rende uma experiência arrebatadora. Originária da Índia, uma das receitas mais conhecidas é a do chutney, um condimento para acompanhar carne assada ou pratos frios, que nada tem de inocente, mas sim de caliente. Prepara-se com fatias da fruta, cebola ralada, vinagre, curry, sal, pimenta-do-reino, açúcar, gengibre, coentro moído, páprica e noz moscada. Uau! Vou já pra cozinha pecar com a manga... Ou, pensando melhor, talvez seja mais interessante esperar pra colocar em prática o slogan de um verdureiro empreendedor citado por Jane Grigson: “Partilhe a manga, no banho, com seu amado”.

Vera Moreira
Gramado, 16/10/2001

 

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