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Segunda-feira, 21/1/2008
Gênero e imaginação
Pilar Fazito

Exercício de imaginação
É verdade, meu chapa... a realidade é dura. Casa, trabalho, fila no banco, supermercado, contas a pagar... Aí, para dar conta de tanta cotidianidade, você se refugia à noite no cinema ou em casa, diante de um DVD. Ou, ainda, lendo um livro. Você lê ou assiste ao filme se esquecendo completamente de que teve que entrar numa seção específica de uma livraria/biblioteca ou vídeo locadora. Seção essa que tem uma plaquinha para te ajudar a localizar o objeto do seu interesse: policial, guerra, romance, comédia, conto, poesia, erótico, suspense, ficção científica, cult etc. E quem quer saber dessa plaquinha? Nessas horas, você quer mesmo é absorver o entretenimento.

Então, você gosta de ficção científica. Aí você escolhe o Alien: o oitavo passageiro para te tirar um pouco dessa realidade massacrante. Ou você prefere ler As crônicas marcianas, do Ray Bradbury. E é impressionante como seu chefe some da sua cabeça nessas horas e você passa a acreditar que seres extraterrestes possam estar debaixo da sua cama ou atrás do seu armário, esperando um momento para atacá-lo.

Não, você não gosta de ficção científica. Você é chegado mesmo é no gênero terror. Poltergeist e Stephen King. Aí você passa a ter medo do seu gato, que te olha de um modo diabólico. Ou do palhaço de brinquedo, saindo debaixo da cama, já que camas, espelhos, batentes de portas e armários se tornam portais para mundos desconhecidos.

Agora tente imaginar que em vez de Alien você está assistindo a um filme brasileiro sobre o ET de Varginha. Ou sobre o chupa-cabras. Tente imaginar o suspense de ver um alienígena de metro-e-meio, com três olhos e pregas entre os dedos tal qual um atlante numa cidadezinha do interior de Minas Gerais.

Esqueça o Drácula de Bram Stoker e aceite algo mais nacional. Algo que seja uma referência de terror por aqui... Tipo assim, meio Zé do Caixão.

O gênero no Brasil
Provavelmente, a idéia de imaginar um filme brasileiro sobre o ET de Varginha, o chupa-cabras ou o Zé do Caixão tenha provocado riso após a referência a tanta "coisa séria". Por que será que temos mais facilidade em aceitar um alien gosmento, que se parece com uma barata e põe ovos, em vez de um homenzinho cabeçudo? Boa pergunta.

O fato é que mesmo após a turbinada do cinema brasileiro, observada desde Carlota Joaquina, ainda temos muita resistência com a questão dos gêneros no Brasil. Isso também pode ser observado na literatura, mas é mais evidente nas telas do país.

Como dizem por aí, brasileiro é um povo feliz; está sempre rindo. Até da própria desgraça. Tudo aqui vira comicidade (ou violência) e, convenhamos, a gente não leva mesmo nada muito a sério. Então, fica difícil pensar que seja possível fazer um filme de terror usando elementos nacionais. Mas basta vir de fora que aceitamos. Já imaginaram que A lenda do cavaleiro sem cabeça se parece com a nossa lenda da mula-sem-cabeça? A diferença está no número de pernas/patas, mas isso é um detalhe. Nossa mula poderia se tornar uma criatura tão terrível quanto um cavaleiro cruel que carrega a própria cabeça debaixo do braço e enche uma árvore com os corpos dos moradores de uma vila. Basta imaginação (e isso, o Brasil tem de sobra) e seriedade no trato dessa imaginação (isso, nós temos de menos).

Há ainda a resistência entre escritores e cineastas brasileiros a assumir o uso de gêneros. Existe uma idéia errônea de que o gênero diminui o valor de uma obra. Por isso, a literatura e o cinema têm observado a presença de trabalhos que buscam a todo custo um caráter mais autoral, que não se enquadre em gêneros.

Por um lado, é bom que o autor/cineasta encontre a sua "marca", o seu estilo autoral. Por outro, esquece-se de que é a inovação dos gêneros, algo muito mais difícil de obter, que atesta a genialidade de quem conta histórias.

Quem imaginaria, por exemplo, que o faroeste pudesse dar certo na Itália? Ninguém deu crédito a isso até que Sérgio Leone inaugurou o gênero do western spaghetti, levando consigo a consagração de Clint Eastwood como ator e de Ennio Morriconi como compositor de trilhas. Em termos de genialidade, pode-se dizer que o diretor foi o responsável por imprimir ao faroeste o humor italiano sagaz, muito mais inteligente e divertido do que a roupagem entediante dos clássicos norte-americanos, erguidos sobre o insosso tripé mocinho-índio-bandido.

Não há índios a cavalo, bradando tacapes, nem mocinhas indefesas no bang-bang italiano de Sérgio Leone simplesmente porque isso não faz parte da cultura daquele país. A genialidade está justamente na subversão do que é esperado. Vejamos um exemplo: ao contrário do que se poderia acreditar, levando em conta o título do filme (refiro-me ao original, em inglês, que foi toscamente traduzido no Brasil por Três homens em conflito), em O bom, o mau e o feio, o bom não é tão bom assim, o mau não é tão mau e o feio... Tudo bem, tenho que dar o braço a torcer, o feio é feio mesmo. De todo modo, foi o western spaghetti de Sérgio Leone que humanizou de modo realista os personagens clássicos desse gênero.

Quem atinou para a questão do menosprezo ao gênero no Brasil foi Newton Cannito, roteirista de Quanto vale ou é por quilo? e Cidade dos homens, entre outros trabalhos. Em novembro de 2007, Cannito participou de um debate sobre o gênero policial, ocorrido no 3º Fórum das Letras de Ouro Preto, em que também estiveram presentes o escritor português Francisco José Viegas, o Titã Tony Belotto e o escritor e roteirista Marçal Aquino, como mediador.

Cannito falou bem sobre a questão e foi, injustamente, mal interpretado por alguém da platéia quando se referiu ao fato de Glauber Rocha ter usado o gênero faroeste no início de carreira. Ele não deixou por menos e reiterou: o diretor brasileiro, responsável pelo surgimento do Cinema Novo, recorreu sim ao faroeste nos filmes do início de carreira e isso não fez dele um cineasta menor.

A certa altura do encontro, Marçal Aquino comentou o fato de o terem procurado para a realização de uma série nacional nos moldes de um CSI norte-americano. A idéia era importar para o gênero policial brasileiro todo aquele aparato primeiro-mundista de análise de impressões digitais, exames de DNA e o escambau para a resolução de crimes. O comentário não poderia ser outro: não funciona. E não somente porque não temos a verba nem o aparato policial que eles têm por lá. Não adianta importar modelos estrangeiros. É preciso criar o nosso a partir do que já existe em termos de gênero.

Realidade demais!
O cinema brasileiro ― e por que não dizer, a literatura também ― anda muito preocupado em manter um comprometimento com a realidade. É possível enumerar uma enxurrada de filmes que seguem o mesmo estilo "retrato da violência social": Ônibus 174, Carandiru, Cidade de Deus, Tropa de Elite e por aí vai. Não discuto a qualidade dos filmes, mas o tratamento e o tema. Todos são filmes polêmicos, tiveram ótima bilheteria, estão vivos na memória coletiva e são comentados sempre que possível. Mas é realidade demais. Um bombardeamento de imagens e textos sobre morros e favelas, pobres de um lado, o tráfico do outro, a inércia de uma classe média medíocre e a sugestão de que existem milionários em nosso país que estão, comodamente, por trás de tudo.

Há quem enquadre esses filmes numa espécie de gênero policial genuinamente brasileiro. Não deixa de ser uma tentativa de uso das características discursivas do gênero policial. O problema é que ainda estamos presos ao tal comprometimento com a realidade e, por isso, nem os realizadores nem o público estão preparados para "viajar", sem julgamento de valor, no componente ficcional inerente a todo gênero, inclusive o policial.

Muito barulho por nada
Para ilustrar o que acabo de dizer, vale lembrar que nenhuma discussão sobre Tropa de Elite, até agora, foi capaz de assumir que, apesar da quantidade de off's didáticos, a trama do filme funciona bem, em termos ficcionais: um comandante do BOPE, louco para se afastar do serviço, tem que preparar um substituto enquanto enfrenta a cobrança familiar, institucional e social.

Todo texto/filme, sobretudo uma ficção narrada em primeira pessoa, é tendenciosa. Não sei por que tanto "auê" em torno do filme e essa necessidade de usá-lo para discutir o problema do tráfico, da violência e das favelas no Brasil. Em vez de críticos e jornalistas fomentarem essa verborragia que não se transforma em ação positiva, talvez fosse melhor que diretores do ensino privado parassem de fechar cursos de Letras e empregassem mais professores de Português e Literatura para ensinarem à população como interpretar de forma consciente a linguagem, os textos e os filmes.

Realidade, imaginação e gêneros ficcionais
A forma repetidamente chocante como a violência e a realidade social vêm sendo tratadas no cinema brasileiro tem provocado um efeito contrário àquele que se espera. Em vez de acordar o espectador para os problemas, tem banalizado esses mesmos problemas; e de tanto apanhar, a gente acaba perdendo a sensibilidade e a capacidade de se colocar no lugar do outro.

Num país em que sobra realidade, material e imaginação, faltam idealistas subversivos e gente que compre sonhos. Falta gente que entende o poder transformador da ficção, dos gêneros assumidamente ficcionais que influenciam por analogia, não pelo choque direto com a realidade.

Pilar Fazito
Belo Horizonte, 21/1/2008

 

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