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Quinta-feira, 6/12/2007 Uma gentileza, por favor Adriana Carvalho "Mamãe, gentileza é de comer?", pergunta o pequeno no restaurante. "Não, por que?", questiona a mãe. "É que eu ouvi o papai pedindo uma gentileza, por favor, para o garçom". Se a resposta da mãe fosse "sim, meu filho, é de comer", quais características teria a gentileza que o garçom traria em sua bandeja? Com certeza não seria industrializada, nem condensada, tampouco pasteurizada ou prensada, não teria conservantes e nem corantes artificiais. A verdadeira gentileza, para ter seus delicados e voláteis princípios ativos intactos, deveria ser servida de modo bem natural. Quase dispensável é dizer que estaria entre os alimentos orgânicos, porque seria um paradoxo uma gentileza recheada de agrotóxicos, fazendo malcriações para o meio ambiente ou para os trabalhadores que a cultivassem. As contradições da gentileza não estariam na sua forma de cultivo, mas sim no fato de que seria, como tudo que é bom e gostoso, extremamente calórica sem, contudo, entupir artérias ou provocar síndromes metabólicas. A cada mordida, a cada "Hummmm!" de prazer, os sucos nutritivos da gentileza elevariam os níveis dos hormônios e neurotransmissores relacionados com o prazer humano. Seriam, dessa forma, uma ameaça - com todo o cavalheirismo possível - ao império do chocolate, o grande curandeiro atual das carências de amabilidade. Alguns estudos investigariam inclusive sua relação com o aumento da presença de ocitocina, hormônio que dá uma força química aos vínculos entre mães e filhos, e entre casais. Voltando ao restaurante, a gentileza não se demoraria em chegar à mesa, porque não seria delicado deixar os comensais esperando e com fome. Poderia ser servida à temperatura ambiente ou morna, nunca fria: gentileza fria é mera polidez, reflexo condicionado do ser "educado", e é cheia de falsidade. O menino pequeno veria o garçom colocar à frente de seu pai um prato com um alimento de formas arredondadas e harmoniosas, como uma pêra em calda, talvez. Pediria para provar um pedaço e veria que ela seria suavemente doce. Não lhe caberia um sabor escandalosamente açucarado, muito menos amargo, ácido ou salgado, embora cada um deles tenha sua função, seu momento e sua graça. Os médicos receitariam o consumo de gentileza para a manutenção de um estilo saudável de vida: "Você precisa incluir na sua dieta verduras, frutas e legumes. Diminua as frituras. Gentileza pode consumir à vontade". Poderia ser um alimento usado em desenhos infantis para incentivar bons hábitos e costumes. O marinheiro Popeye, se ao invés de espinafre enlatado, comesse umas gentilezas recém-colhidas do pé, não sairia por aí dando sopapos em ninguém. Encontraria umas maneiras menos macho-man de resolver seus problemas com o Brutus. As empresas que incluíssem gentilezas no cardápio de seus refeitórios seriam de fato socialmente responsáveis com seus funcionários e deixariam de pedir nos processos de seleção candidatos "dispostos a trabalhar sob pressão". Quem comesse gentileza nunca se esqueceria de dar bom-dia, até-logo ou pedir por favor. Faria isso de forma natural e não mecânica, como acontece com os atendentes moldados pela Blockbuster, McDonald´s ou Starbucks. Esses comem na firma a amabilidade padronizada e esterilizada, que provoca desagradáveis efeitos colaterais. Como o sorriso escancaradamente morto, igual ao que o Jack Nicholson, no papel de Coringa, inimigo do Batman, provocava em suas vítimas com um gás infame. Essa gentileza é sem graça como petit gâteau industrializado. Sem gosto como peixe preparado no microondas. Gentileza seria ainda um alimento especialmente recomendado para quem sofre de algum dos seguintes problemas: dormir com a bunda descoberta, que provoca mal humor crônico e distúrbios da cortesia; compulsão por mágoas em conserva, ardidas como pequenas cebolas transparentes (cebolas são, sabidamente, vegetais que fazem muita gente chorar); consumo exagerado de verdade de colherinha na infância. Tenho uma amiga que diz isso: "Fulana comeu muita verdade de colherinha quando era pequena, por isso ficou assim". Diferentemente da gentileza, a verdade de colherinha pode ser imaginada como um alimento com calorias vazias, tais quais os refrigerantes: deixam o indivíduo inchado de si e dão a falsa sensação de alimentação. Poderiam ser vistos também como papinhas de nenê de potinho. Sem sal, sem tempero, sem experimentação dos sabores e texturas originais. Comida morta. Pseudo-sabedoria. Prática de consumir, a verdade de colherinha isenta o indivíduo de filosofar, pensar, ponderar ou mesmo considerar que pode estar errado. Não exige que se procure outras fontes de conhecimento, que aceite outras opiniões. Não é necessário nem sujar muita panela, nem mesmo lavar louça depois, porque a verdade de colherinha já vem, é claro, com uma colherinha de plástico descartável totalmente grátis. Está escrito no pote que é Verdade, então não há mais o que discutir. E o rótulo ainda diz que é enriquecida com dez vitaminas e ferro, o que alivia a consciência de quem a come, mesmo que não saiba para que serve tanta vitamina exatamente. Quem se entope de verdade de colherinha sempre critica de maneira pouco cortês o que você ou os seus filhos comem, como se vestem, como se portam. Sempre tem um conselho que é para o seu bem, sempre lança seu olhar recriminador para as criaturas inferiores com quem acredita ser obrigada a conviver. Novamente de volta à mesa, o menino pequeno aprovaria a novidade que acabara de provar. A mãe ficaria feliz e surpresa de vê-lo experimentando algo novo. O pai não pediria café e deixaria até mesmo para escovar os dentes bem mais tarde, só para preservar um pouco mais na boca o gosto da gentileza. Adriana Carvalho |
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