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Terça-feira, 1/1/2008 Evidências do Nada: a poesia de Paulo Ferraz Jardel Dias Cavalcanti Acaba de ser lançado pela editora Selo Sebastião Grifo o longo poema "De novo nada", de Paulo Ferraz. Em seus 584 versos livres o poema abre-se à experiência da própria existência contemporânea: fragmentada, crispada, insegura, flutuante e fraturada. Para isso, vale-se da liberdade dada pelo ritmo de uma escrita ela também flutuante e fragmentada, tal qual a realidade que nos cerca. Bacharel em Direito e mestre em Teoria Literária, Paulo Ferraz é autor de outros dois livros: Constatação do óbvio (1999) e Evidências pedestres (2007), também publicados pela Sebastião Grifo. O título do livro De novo nada, relacionado na capa à antiqüíssima imagem da Vênus de Willendorf, evoca a idéia de que sempre estivemos vivendo numa espécie de "terra desolada" ou no círculo vicioso e diabólico de Sísifo e que, conseqüentemente, "nada de novo há sob o sol". Existiria no centro do poema, a partir da consciência da fragmentação universal e da ausência de utopias ou de qualquer desejo de transcendência, a crença na falência da cultura? Não, pois se assim fosse nem o poema seria escrito pelo poeta. O que se passa é que é a partir dessa consciência, alfinetada pelo desqualificado mundo contemporâneo, que o poeta parte para sua experiência de escrita poética. Como dizia Walter Benjamim, autor de uma das epígrafes do livro, se só temos o caos é a partir dele que devemos criar. A poesia de Paulo Ferraz, pode-se dizer, adequa-se a esse pensamento. O resultado é seu instigante poema "De novo nada". Na orelha do livro Viviana Bosi chama a atenção para o aspecto da experiência da cidade contemporânea (metáfora do existir contemporâneo) "que fundamenta toda a paisagem e sensibilidade do poema — história embebida na singularidade subjetiva". É, pois, a partir da experiência dentro da cidade que o poeta mergulha seu focinho na realidade desconcertante e na suposta falaciosidade da vida contemporânea. O livro se abre com um encontro inusitado entre o poeta e uma cigana, mais mendiga que cigana, que lhe agarra a mão num átimo. Nesse encontro já se anuncia a crise com as utopias, pois o futuro lido por uma mendiga mais que cigana (decadência dos oráculos) já traz em si o desconcerto de qualquer idéia de realização ou adivinhação futura. A utopia, impossibilitada de habitar a memória, esta inútil, "perdeu-se na poluição". O poema expõe na sua linguagem irritantemente desenraizada o principal aspecto da nossa existência "asfáltica, estéril, onde nada nasce", inclusive "imprópria para o plantio das palavras". Por isso, "nossa mudez é absoluta, mesmo a daqueles que pensam ter o dom da palavra, mudez seca como nem a pedra é seca". A idéia já apresentada e, inclusive, defendida pela literatura moderna, da experiência como um espelho aos cacos, de onde só podemos captar fragmentos isolados, parece ao poeta tingida por uma certa melancolia. Embora seu próprio poema seja um amontoado de cacos, captação de dados relativos, sem a mínima pretensão à totalidade, há uma contradição dentro do poeta e dentro do poema: uma utopia negativa, um desejo insistente de que não deveria ser assim e que pode ser percebida na preocupação com a mulher do outdoor ("É de carne? Paga suas contas no fim de cada mês? Come o que como?"), "seu corpo falso, luzes prisioneiras do papel, não nos esconde que é engodo". O que diria o poeta diante do belo ideal das esculturas gregas? O mesmo que Platão? E o que diz do mundo contemporâneo? Diz, talvez, o mesmo que Saramago, que estamos como sempre e mais que sempre dentro da caverna de Platão. A relação que o poeta estabelece entre a beleza falsa da modelo do outdoor e a cigana, que é apenas uma mendiga inapta para o projeto de adivinhar possibilidades para o futuro, se dá através da idéia da impossibilidade da constituição de significados ou de palavras que tenham valor: o resultado é claro — "nossa mudez é absoluta". Ou ainda: "não tenho mais nada a dizer, não espere de mim a palavra ou o gesto". A experiência da desterritorialização (outro aspecto da existência contemporânea), vista como um terrível isolamento social, aparece nos versos seguintes: "Se tombamos, não há quem nos levante, e na cama, quem nos aqueça, e na ofensa, quem nos defenda". Ao longo do poema alguns versos anunciam a contraditória nostalgia por um lugar outro que não esse da desolação da realidade falsa, da esterilidade ou da transcendência inviável: "Devo esquecê-la? Sem ela, viver não posso, não posso viver contente, pois a sombra me cobre aonde eu for, uma espessa nuvem de tormentas e saudade que minha vida envenena." Embora condene este mundo é dele que sua poesia nasce, é dele que retira os seus versos velozes e estonteantes, é dele que brota seu poder de dialogar com a possibilidade de conviver em crise com a incapacidade de comunicação, inclusive transformando isso em poesia: "O mundo nos atravessando a cento e dez, o mundo em movimento, o mundo se perdeu na confusão de tanta noite e tanto dia, na profusão das coisas passando...". Como que descrevendo a negatividade de sua própria experiência poética, diz: "mas essas linhas são confusas, não me levam a nenhuma visão". O que o poeta parece temer é o que Joyce transformou em máxima para sua obra: "A história é um pesadelo do qual eu quero acordar". O real pode ser apenas "êxtase-tormento", já que tornou-se deserdado do passado, do presente ou do futuro, mas é onde o poeta mergulha sua fuça para nos trazer seus versos, frutos da sua vivência pelas ruas, "em que nada mantém sua aura". A Vênus da capa do livro não é apenas o atestado de que estamos sempre paralisados num tempo morto. Talvez seja a lembrança de que esta estatueta, tal qual a poesia, seja um talismã da fertilidade, e que a única verdadeira fertilidade possível, a da linguagem, só pode ser alcançada pela poesia. Mesmo que a poesia não signifique mais nada nesse mundo. E o mundo, o que, afinal, significa? De novo nada. Assim vaticina o poeta. Jardel Dias Cavalcanti |
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