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Quinta-feira, 3/1/2008 Literatura policial ou literatura bandida? Marcelo Spalding Grande clichê: a vida imita a arte. Maior ainda: mentira, é a arte que imita a vida. Seja por um motivo ou outro, nunca se viu tanto tiro e tanta morte na literatura brasileira, tiros à queima roupa, mortes sádicas, estupros covardes. Não estou esquecendo Rubem Fonseca, nem poderia, mas se antes podíamos apontar quem fazia "literatura policial" no Brasil, agora fatalmente esqueceremos muitos. Luís Dill, gaúcho, jornalista e escritor profícuo, com mais de dezena de livros publicados, acaba de inserir-se nesse hall com Tocata e Fuga (Bertrand Brasil, 2007, 128 págs.). Não que estréie nesse tipo de estética, seu Lâmina Cega, publicado aqui na província e até agora sem repercussão nacional (logo terá, tenho certeza), já trazia a violência para o centro da cena, uma violência sem causas aparentes, sem remorsos, sem penas. E narrada de forma habilidosa, vertiginosa, cinematográfica, por alguém que domina as técnicas narrativas da prosa breve. Pois de cara o leitor perceberá em Tocata e Fuga a mão do grande autor, possivelmente sinta medo já no primeiro conto, apague a luz e coloque o livro sobre a mesa ou no chão, vire-se e revire-se na cama, perturbado, e volte a acender a luz para ler pelo menos mais quatro, cinco histórias. Aos poucos perceberá que as onze histórias se cruzam, as personagens estão em uma e outra, ora bandidos ora vítimas, sempre armados, sempre prontos para morrer, o que os diferencia de nós, vítimas amedrontadas de tanta violência. "Pra ter medo de branco, o cara tem que ser muito feio, mal-encarado, de preferência com olho vazado, o queixo faltando um pedaço ou pelo menos uma cicatriz na testa. Mulher idiota. Consegue ficar com o sorriso diante do Rossi .38 SPL, modelo 726, inox, cano duas polegadas, seis tiros. Tira o cinto e desce, vagabunda! Nada." Morrerá a violinista que dirigia o Alfa Romeo dessa cena, a primeira do livro, como uma a uma morrerão as vítimas que cruzarem os caminhos dos bandidos do livro. E nesse sentido lembro de Cidade de Deus, o romance, e dos contos mais fortes de Trevisan. O livro, entretanto, não se pretende inserir na tradição neo-realista da literatura brasileira, e já na página de rosto traz o sugestivo epíteto "contos policiais". Mas o leitor segue folheando as páginas, conto a conto, e percebe logo que a polícia não faz parte daquele universo, a narrativa é sempre dos bandidos, dos assassinos, dos ladrões, as personagens são as prostitutas, os traficantes, os viciados, e quando a polícia surge em cena é para agir como bandido, torturar até a morte um transeunte mulato. Não há lei, não há justiça, tampouco polícia em Tocata e Fuga, como não havia em Cidade de Deus ou em Trevisan. Por isso, também por isso, talvez fosse mais adequado percebermos a presença de uma "literatura bandida" no Brasil. Uma literatura de dar medo, daquelas que se a menina de dezesseis anos lê, nunca mais passeia sozinha de noite nem fala com estranhos em carrões. Uma literatura que, acima de tudo, é reflexo da sociedade relatada nos jornais, dos crimes hediondos e banais, e inclusive dos estereótipos. Em Tocata e Fuga, por exemplo, os criminosos são via de regra da periferia, pobres, e cedo descobriram que o crime compensa, para o azar dos que andam de Alfa Romeu ou BMW: "Fazer o quê? Pior seria sujar as mãos com graxa, passar o dia batendo com um carimbo em cima de montanhas de papel, contar o dinheiro dos outros, servir drinques, arrumar dentes, pintar meios-fios, descascar batatas, vender enciclopédias", dirá o matador de aluguel. Maniqueísmo perigoso, talvez usado com ironia pela mão habilidosa de Dill, mas que fará os fãs do Capitão Nascimento gritarem cada vez mais forte "viva a pena de morte", "paredão pros bandidos", "ponham fogo nas favelas". A síntese dessa estética em geral e da ficção adulta de Dill em particular talvez seja um miniconto do próprio autor, publicado em Contos de Bolso, texto que considero o menor conto do mundo (pois há de se contar o título): "Aventura" Nasceu. Sim, porque diante de gente como as aqui representadas, viver é mais do que dificultoso, como dissera o jagunço de Rosa, viver é perigoso, pode ser cruel, pode ser muito pior do que a morte à bala, rápida, pode ser muito pior do que a falta de pão e carne, solucionável. É aventurar-se. Vivos fossem, Sherlock Holmes e Dr. Watson provavelmente reprovariam a nova estética da "literatura policial". Em "Um caso de identidade" já dissera Watson: "os casos que aparecem nos jornais são, em regra, bastante grosseiros e baixos. Temos nas reportagens policiais o realismo estendido aos seus limites extremos e o resultado, é preciso confessar, não é fascinador, nem artístico", ao que completou Holmes: "deve-se usar certa seleção e discrição para se produzir efeitos realísticos". Se tal recomendação é ou não válida ainda hoje, em tempos de Fantástico e Tropa de Elite, há de se pensar. Os acertos de Tocata e Fuga são também seus erros, a aposta na violência urbana crua, a falta de transcendência, a despreocupação com o jogo social que provoca tal cenário. Literatura para determinado nicho de leitor, ainda bem que literatura bem feita, feita por mãos habilidosas que certamente ainda nos brindarão. Para ir além Marcelo Spalding |
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