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Sexta-feira, 21/3/2008
As horas podres, de Jerônimo Teixeira
Rafael Rodrigues

Nas rodinhas de conversas literárias, não é raro alguém se sair com a assertiva de que "críticos literários são escritores frustrados". A afirmação geralmente sai da boca de escritores frustrados ― que, definitivamente, não são e nem podem ser um críticos literários, pois boa parte dos escritores brasileiros em atividade não tem a autocrítica como uma de suas qualidades, e, por isso, continuam publicando livros sofríveis.

Exemplos para refutar tal despropério não faltam. O mestre-mor de nossa literatura de ficção, Machado de Assis, foi também crítico literário. Silviano Santiago, escritor consagrado, iniciou-se na literatura como um jovem resenhista. Milan Kundera, J. M. Coetzee, George Orwell, Ricardo Piglia, enfim, são vários os escritores talentosos e bem-sucedidos que fizeram e fazem crítica literária.

Nesse seleto grupo de bons críticos que são bons autores merece estar Jerônimo Teixeira, crítico literário da revista Veja, que teve sua novela As horas podres (Bertrand Brasil, 2007, 120 págs.) reeditada recentemente.

Jerônimo Teixeira é, talvez, o crítico mais odiado (é uma palavra forte, "odiado", mas na falta de outra, vai essa mesmo) pelos escritores brasileiros contemporâneos. Ele já fez duras críticas ao Movimento Literatura Urgente, a escritores participantes do movimento e não poupa de resenhas negativas nem mesmo escritores consagrados. Eu mesmo já falei mal de JT, há alguns anos. Isso não me impede de, agora, depois de ler As horas podres, elogiar sua obra.

O livro conta duas histórias: a de um jovem que mata o próprio pai e a de um escritor frustrado que volta a sua cidade natal para o enterro da mãe. Ambos pertencem ao mesmo lugar, a "simples e pequena" Estância Velha, município do Rio Grande do Sul.

Uma das histórias, a do parricida, é estruturada em diálogos. Tem seu início pouco depois do crime, o garoto já na casa do tio, irmão do pai assassinado, buscando ajuda e um advogado (o tio é advogado). A princípio, parece uma idéia absurda, pedir ajuda ao irmão do morto. Mas, à medida que o diálogo avança, passamos a conhecer certos fatos, certos segredos que envolviam o pai do garoto, o próprio garoto, seu tio e sua mãe.

O autor, em pequena entrevista concedida por e-mail, considera "a parte dos diálogos (...) tecnicamente falha". Mas, dentro do contexto e dentro da tensão gerada pelo assassinato, o diálogo entre o garoto e seu tio é plausível e verossímil. A conversa chega a ser vertiginosa, em certos momentos. Uma espécie de partida de xadrez, onde cada um dos interlocutores consegue fugir de sucessivos xeques-mates e até inverter a situação, mas a partida não acaba. Ou, se acaba, é sem vencedor.

A outra história é narrada pelo próprio escritor frustrado, que lembra da sua juventude em Estância Velha e comenta superficialmente como foi sua vida desde quando saiu da cidade natal para morar em Porto Alegre (pra que mais profundidade que "vidinha besta, funcionário-público-divorciado-sem-filhos, o fracasso inato da minha 'obra'"?). O retorno à cidade também o faz lembrar do caso de um "agricultor" (aspas do autor) de Estância Velha que teve os olhos arrancados. O crime jamais foi explicado, até porque o "agricultor" estava bêbado e não tem grandes lembranças do trágico dia. Esse crime realmente aconteceu, e realmente até hoje não foi explicado.

Estância Velha, para o "filho pródigo", tem um cheiro, um fedor em suas entranhas. "Não é filtrável pelo ar-condicionado. Não pode ser disperso por sprays desodorantes. Imune ao poder econômico, porque é o poder econômico. O fedor não pode parar." Poderia ser uma simples metáfora, mas não é. Esse mesmo fedor também está presente na outra história. Mas, na mente do escritor frustrado, é como se todos na cidade fossem envolvidos por esse odor. O fedor seria quase um personagem da história, como se ditasse os rumos da cidade, fadada a sempre ser "simples e pequena", nada além disso.

Há quem veja uma conexão entre as duas histórias, sendo o jovem que matou o pai e o escritor frustrado a mesma pessoa. Em certos momentos o livro dá a entender que isso é possível, mas o próprio Jerônimo afirma ter "lido algumas resenhas que dão como o mesmo personagem o rapaz que mata o pai (...) e aquele que retorna à Estância Velha depois de uma longa ausência (...). Não creio que o texto autorize essa identificação ― a mãe do personagem-narrador aparece, embora não nomeada, na história, e ela não é muda e entrevada como a mãe do personagem assassino".

Através do escritor frustrado, Jerônimo Teixeira faz uma série de homenagens a autores brasileiros. Nomes como Dyonélio Machado (e seu "horizonte inabarcável"), Machado de Assis (e seu "cinismo autêntico") e Augusto dos Anjos (e sua "beleza bizarra") são alguns citados. Além disso, o personagem, que volta e meia acusa-se de plagiário, deixa em aberto uma outra possibilidade para o diálogo entre o tio e o sobrinho. É como se a obra não tivesse fim.

As horas podres é um livro breve e envolvente. Não são necessárias mais que algumas poucas horas para lê-lo. A concisão, no caso de JT, não é falta do que dizer, mas sim domínio de escrita. E, fugindo do clichê, não seria necessário que o livro fosse mais extenso. Ele, tal qual Estância Velha, é simples e pequeno. Sem "manobras radicais" ou pretensões megalomaníacas. É um livro que conta, e muito bem, duas histórias sem solução. Não é a salvação da literatura brasileira, até porque lá se vão dez anos da primeira edição do livro (aliás, quem disse que a nossa literatura precisa de salvação?). Mas é um livro de qualidade bem superior a muita coisa que vem sendo alardeada como boa literatura.

Para ir além





Rafael Rodrigues
Feira de Santana, 21/3/2008

 

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