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Quarta-feira, 16/1/2008 Algumas notas dissonantes Guga Schultze A música está no ar, do momento em que você acorda, toma um café e alguém liga o rádio. Um rock pauleira se instala no ar fresco da manhã, estala seus acordes simples sobre as paredes e bate em seus tímpanos recém despertos. Na rua, caminhando pela rua, um carro vem e pára na esquina. Alguém ouve música. O carro é um Audi, um importado, mas seu ocupante ouve alguma dupla sertaneja. Ou seja, o áudio não condiz com o Audi. Uns gemidos despudorados de paixão suburbana saem pelas janelas abertas. Seu ocupante, evidentemente, acredita na breguice geral do mundo. Mas não se engana tão fácil com automóveis. É brega, mas não é bobo. No prédio, dentro do elevador. A ascensorista está com seu rádio portátil (é rádio mesmo), fone nos ouvidos e olha para o painel de controle à sua frente como quem olha para uma paisagem distante. Vinte e cinco andares distribuídos em botões luminosos e estáticos. Ela ouve alguma obscura cantora nacional. Aquela voz de flauta doce, aguada, escapa de seus fones e vem pairando sobre o silêncio da cabine. Nos corredores do prédio. Discretas caixas de som produzem, no teto, alguma música inesperada e triste: o Concerto de Brandeburgo, de Bach, tocado com instrumentos eletrônicos e com um andamento hip-hop, lá sei eu. Um entregador passa distraído, segurando umas pizzas, assoviando. A melodia que o sujeito do corredor assoviava se reproduz na sua cabeça, como um vírus. Você cantarola, internamente e sem querer, Roberto Carlos: "Quando ― vocêsesepaaarou ― demim". Tudo muito natural, tudo no lugar certo. A música e as pessoas. O cotidiano dessa relação que todo mundo diz ser prazerosa, entre a música que soa por todo lugar e os seus passivos ouvintes. Mas é tempo de acrescentar algumas notas dissonantes, algumas observações ligeiramente corrosivas sobre essa antiga relação do ser humano com a música que ele produz, esse estado de embriaguez geral que está repleto de pequenos preconceitos, pequenos mal-entendidos de toda ordem (a começar pela Ordem dos Músicos, rá!) e pequenas idéias igualmente erradas. Tudo muito inofensivo, é claro, mas não custa desafinar um pouco o coro dos contentes, como diria Torquato Neto. Começo com a famosa afirmação que muitas pessoas fazem, e tantas vezes ouvida por mim: "Eu sou eclético(a) e gosto de tudo." A pessoa em questão está querendo dizer que aprecia igualmente pagode, samba, funk, timbalada, sertanejo, caipira de raiz, ponto de macumba, rock e Adriana Calcanhoto. É uma tristeza. (Talvez eu tenha posto o nome da Adriana Calcanhoto aqui para reforçar a tristeza. Ela é uma das cantoras mais tristes que eu já vi. Não que a música dela seja. Ela é que é assim, tristinha.) De cara eu rebato essa afirmação com outra, do mesmo naipe: "Quem gosta de tudo, não gosta de nada." Não que eu me expresse em voz alta nessas horas. Só penso, e procuro logo mudar de assunto. Simplesmente não dá para explicar que eu sei que: se você gosta dos filhos de Francisco, você não gosta do som de São Francisco, Califórnia, anos 60. Percebe? Aí você vê no jornal que tem um pianista virtuoso à solta e que ele vai fazer uma apresentação na praça, junto ao povo. No programa está incluído Chopin, Liszt e Luiz ou Chiquinha Gonzaga. Tudo certo? Não, tudo errado. Bom, eu não vou, se isso interessa. O fato dessa performance acontecer, desse jeito, significa apenas que a música não está sendo ouvida direito, por melhor que seja executada. Por falar nisso, pior do que um virtuose, só dois virtuoses. Ou uma banda de virtuoses. Uma boa definição de virtuose é aquele músico que, à força de praticar incansavelmente todas as escalas imagináveis e possíveis, numa rapidez cada vez maior, perdeu o contato com a melodia que, infelizmente, não passa também de uma seqüência ordenada de notas musicais. Ou seja, uma espécie de escala. Um virtuose do jazz é capaz de destrinchar uma escala dessas até torná-la praticamente irreconhecível. Depois ainda se vangloria, ou acha que fez algo de suma importância para a arte. Você não percebe muita diferença entre o "Parabéns pra você" e um "Salt Peanuts", tocadas por um músico desses. No fundo é a mesma massa sonora, desarticulada, oriunda de uma aberração auditiva, cultivada longamente por seu executante. Então, voltando ao virtuoso que vai tocar na praça pública: a música não é eclética. Esses caras deveriam saber disso. Na verdade ela pode ser (e é), muitas vezes, fator de distanciamento entre as pessoas. Eu não posso (e também não tenho a pretensão de) ser muito amigo de quem se emociona com Zezé Di Camargo e Luciano. Eu estou num bar, por exemplo, e está tocando aquele negócio no rádio e um sujeito, um fã qualquer, está quase com lágrimas nos olhos, olhando pra você com uma expressão de cumplicidade embevecida na hora do refrão: "...é o amooooo-oor..." Parece querer dizer: "O amor é mesmo uma questão universal, né?" Eu penso que, fora a bichice do momento, ainda não é essa a questão, o amor. A questão, penso eu, olhando pro cara, é que ele é extrema, completa e irrecuperavelmente brega. Não dá pra confiar em você, meu chapa, e desconfio que você não vai entender, se eu tentar explicar. Música são tribos. É assim que funciona. A meninada urbana, que gosta desse negócio de tribos e gangues musicais, está certa. Não estou discutindo a qualidade da música que cada tribo ouve. Isso é outra coisa. As peças clássicas, ou eruditas, como queiram, têm em comum o rigor formal das partituras, alguns modismos, tendências ou época. Já é muito. Se você gosta de Bach, provavelmente gostará de Chopin, ou mesmo Tchaikovsky. Mas não de Stravinsky ou Debussy. Se você vai de Verdi, Wagner já fica difícil. São obras excludentes entre si. Tenho um conhecido que se retira às vezes para ouvir A Flauta Mágica, de Mozart. A coisa toda, completa. Puxei conversa sobre Bach, mas ele só disse "é, é muito legal também." Mas ele ouve apenas A flauta mágica e uma vez me falou: "não há nada igual, para mim". Certo, cara, vai nessa. Penso que também tenho minha música tribal, muito mais mundana que isso, mas a gente se entende na medida em que ele transforma a música num artefato de uso pessoal e intransferível. O fantasma de Mozart fica sorrindo pra ele. Um caráter (musical) à toda prova. Nos últimos anos, estive enfrentando o problema dos tenores. Aqueles. Eu ia numa festa qualquer, numa reunião, numa casa legal qualquer, com um certo bom gosto na decoração e tal. Lá pelas tantas alguém saca o DVD dos tenores. Tá certo, admito, é um passo além das duplas sertanejas. Mas é mais ou menos na mesma direção. Principalmente quando os tenores se juntam e fazem um repertório popular. Uau. Também não dá para aceitar as prima-donas da música popular. Um grande maestro, todo cheio de frescuras, ainda vai. Mas um sujeito com uma cara de bolacha Maria (os cantores hoje têm uma cara gorducha. São bem tratados demais e comem demais, presumo), cheio de aneizinhos, pulseiras e detalhes capilares esquisitos, convencido pela mídia e por ele mesmo que é alguém extremamente interessante ou, pior, que é um grande músico, importante e tal... blááá. E nada evidencia mais a breguice de alguém do que uma música brega. Se você escreve um conto muito sentimental, usa chavões literários, usa uma roupa peruosa, uns estampados de oncinha, uns anéis grandes e correntes estranhas no pescoço, você ainda tem o benefício da dúvida. Você pode estar só fazendo um tipo. Ou alguém pode atribuir sua incipiência literária à falta de leitura. Mas se você realmente prefere ouvir, em sã consciência e mais do que a qualquer outra coisa, um bochechudo sertanejo (geralmente são dois bochechudos, de uma vez), você não tem desculpas. A não ser, talvez, o batido "gosto não se discute." Realmente não se discute, mas apenas porque essa discussão geralmente está além da capacidade intelectual de quem tem um gosto desses. Paulo Francis uma vez disse que inteligência não é o forte de músicos, em geral. Claro, ele estava se referindo às bobagens que os músicos costumam dizer, quando consultados. Também, se não me engano, contrapunha a genialidade da música de Wagner, um de seus compositores preferidos, com a falta de brilho, hã... mental, do próprio. Wagner adoraria a cena do ataque aéreo a uma aldeia sul-vietnamita, em Apocalypse Now (o filme de Coppola), com aqueles helicópteros que, durante o ataque, levavam grandes caixas de som, tocando A Cavalgada das Valquírias. E se por acaso fosse uma aldeia judaica, Wagner provavelmente teria orgasmos múltiplos. Mas deixa pra lá. Falando em inteligência, na música, vamos deixar de lado o músico e seus problemas e vamos encarar, de leve, os problemas da própria notação musical, por exemplo. Qualquer software de música, qualquer instrumento musical ― um violão, um piano, uma flauta ― "sabe" que a música é feita com doze notas. Só o músico não sabe, e insiste que são apenas sete notas e cinco acidentes. E que cada um desses acidentes pode ter dois nomes (sustenidos e bemóis). É mole? Por causa dessa insistência você se depara, por exemplo, com uma partitura que apresenta uma armadura em Dó Sustenido Maior (ou seu tom relativo, Lá Sustenido Menor). Não vou entrar nos detalhes sangrentos, mas apenas esclarecer ao leigo (sou pouco mais que um leigo total) que: ― existe uma pauta, aquelas cinco linhas onde se escrevem as notas. ― existem escalas e tonalidades, Dó Maior, Mi menor, etc, e a maioria das músicas se encaixa nelas. Então, suponhamos: você quer escrever uma música (não me pergunte o porquê) em Dó Sustenido Maior. Você deve preencher o início da pauta, que tem só cinco linhas, com nada menos que sete sinaizinhos de jogo-da-velha. A armadura de Dó Sustenido Maior, com todos os seus abomináveis sustenidos. Significa que ao longo de cada linha assinalada (ou espaço entre as linhas), as notas serão sustenidos. Suponho que você é um compositor moderno e que, embora o tom geral de sua música seja Dó Sustenido Maior, você vai fazer uma coisa modernosa, cheia de modulações. Ou seja, vai mudar de tom durante a música. Com as conseqüentes trocas de armadura, sustenidos, bemóis, etc. Suponho também que você queira que outros músicos possam ler sua música. Fica uma coisa bastante tortuosa, devo dizer. Significa que você deve entrar urgentemente para um conservatório e, depois de anos, bastante árduos, talvez consiga alguma fluidez na leitura de partituras (por comparação: você aprende a ler e escrever português em poucos meses, no pior dos casos). Significa também que você deve aceitar, obrigatoriamente, um estilo gráfico do séc. XVII, uma grafia barroca e rococó, cheia de salamaleques. Nada menos que isso. A clave de Sol, pela mãe do guarda, aquilo era pra ser apenas a letra G. Muita gente acha linda, eu acho apenas excessivamente bichosa. Ok, ok: rebuscada. Excessivamente rebuscada. Uma vez, conversando com um músico, amigo meu, propus a abolição dos sustenidos e bemóis: "Por que vocês não nomeiam todas as notas? As doze. Te dou uma sugestão: Dó, Dé, Ré, Ri, Mi, Fá, Fol, Sol, Sá, Lá, Li, Si. Por que vocês não aumentam o número de linhas da pauta e param com essa porcaria de linhas sobressalentes? Por que vocês não escrevem G e F, igual gente normal, no lugar dessas claves cheias de frescuras? Por que..." ― ele me cortou: "Você tá sendo ridículo, sô." Eu disse que tudo bem, mas não fui eu quem começou com esse negócio de ser ridículo. Achei, há alguns anos, um livro chamado Ódio à música, de um francês chamado Pascal Quignard. O título me chamou a atenção, ainda que eu não tenha chegado a esse ponto, e eu comprei. O autor é bastante erudito, ainda que o livro seja uma colcha de retalhos mal costurada. Mas é interessante e, na contra capa, está: "Quando a música era rara, sua convocação era perturbadora e sua sedução, vertiginosa. Quando a convocação torna-se incessante, a música passa a repelir. O silêncio tornou-se a vertigem moderna. Seu êxtase." Eu poderia acrescentar, quase grosseiramente: e durma-se com um barulho desses. Guga Schultze |
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