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Quinta-feira, 27/12/2007
A Via Láctea de Lina Chamie
Elisa Andrade Buzzo


Foto: Divulgação

Minha quase desistência em enfrentar o trânsito das seis para assistir à sessão gratuita, seguida de debate, do filme A Via Láctea mais parecia uma entrada de letreiros. E bem poderia ser, pois as estrelas gêmeas dos faróis nas Avenidas Dr. Arnaldo e Paulista dançavam com a mesma doçura que reencontraria... por lá.

Surgira em mim uma simpatia inicial com o trânsito. Resolvi que não era assim grande coisa, bastava me distrair olhando pela janela do ônibus. Alinhar meus olhos com uns olhos perdidos na bruma mal-disfarçada, observar com curiosidade o grafite dos 100 anos da imigração japonesa, imaginar a Paulista sem o ladrilho português... Se A Via Láctea busca os congestionamentos, os cidadãos normais de São Paulo o repudiam. Até mesmo aqueles com boa vontade. Peguei o metrô e pude chegar a tempo, a fila ainda não começara a andar, sala cheia, burburinho aconchegante e invernal num cinco de novembro. O longa começa de supetão.

Eu já nem sei se te amo mais

Quem aparecia era Heitor (Marco Ricca), um professor e escritor, de namorada mais jovem, que sai atordoado depois de uma briga pelo telefone com ela, Julia (Alice Braga). É pela discrepância que vemos Heitor saindo de casa às pressas, depois do telefonema atravessado. Segundo a diretora Lina Chamie, há uma "dicotomia entre som e imagem". O momento é de desespero, câmera nervosa, mas a música é a da trilha de Tom e Jerry.

É instigante ver a partir daí a São Paulo que se mostra embalada por outras trilhas, música clássica, versos de Drummond, Mário Chamie, o afloramento e os desencontros de uma história de amor possível. De certa forma, é o nada que acontece, história implícita, ou alucinação? "É um pouco essa viagem, que adentra a escuridão, que adentra o silêncio", disse Lina durante o debate no Espaço Unibanco de Cinema.

No meio do caminho me vi perdido numa selva escura, sem sol e sem saída

A Via Láctea é resultado de uma vivência da própria Lina na cidade. A imersão da poesia é a matéria-prima de um encontro sutil e bem-concebido no roteiro da própria diretora e de Aleksei Abib. Diversas citações literárias "impulsionam a história", como observou o ator Marco Ricca, também presente no debate. O resultado é uma naturalidade nos diálogos.

O poema "Campo de flores", de Carlos Drummond de Andrade quase teve um verso seu como título do filme, que deveria ser "Onde não há jardim", segundo Lina. Este poema do livro Claro Enigma, essencial à história de Heitor, tem sua primeira estrofe repetida em vários momentos:

Deus me deu um amor no tempo de madureza,
quando os frutos ou não são colhidos ou sabem a verme.
Deus ― ou foi talvez o Diabo ― deu-me este amor maduro,
e a um e outro agradeço, pois que tenho um amor.


Mas por que o escritor é tantas vezes representado como um ser tímido, caótico e angustiado, me pergunto diante de Heitor durante o filme (e lembro de outro escritor interpretado por Ricca em Crime delicado). Um Heitor aficcionado em saber quanto vai durar este relacionamento. São Paulo é mais do que um pano de fundo para esta história amorosa (acho que este termo é melhor do que "história de amor", e bem que Lina disse que "o filme é amoroso, não é amargo") seja na Livraria Francesa, na ruas do centro, no terraço do Edifício Martinelli. Ou nos avisos do iminente fim que aparecem em telões, quase como provérbios.

Sentimentos à deriva

Heitor, em seu eterno trânsito rumo ao encontro de Julia, está prestes a uma explosão silenciosa, penso, quando o trânsito da Avenida Paulista sobe aos céus e vemos sua linha colorida de sangue imersa (pulsionando) no cinza da cidade.

Lina encontra uma São Paulo "natural", já cenário pleno, com mínimas interferências no ambiente. Sem a intransigência e a arrogância de fechar ruas para filmagens, por exemplo. "A dificuldade de estar na rua é o vigor que está na tela", diz. O filme teve orçamento de pouco mais de 400 mil dólares.

É tão difícil cruzar o espaço até você

A equipe buscava o intransitável, ao invés de tentar contornar os congestionamentos, como todo paulistano... A Via Láctea mostra uma outra maneira de ver a cidade, que está realmente lá, basta uma mirada diferente. Faz jus à sua denominação de "corpo-a-corpo com a cidade semi-documental".

Temos uma Lina Chamie ― neste segundo longa-metragem da diretora, que estreou com Tônica Dominante (2003) ―, sensível aos movimentos urbanos. Atenta ao balé imprevisto no asfalto, os autos em visão aérea na geometria amarela dos cruzamentos.

Parece que só avanço num rio de luzes impossíveis

Néon vermelho, luzes quase cegantes depois da difícil escuridão na sala do Unibanco. Todo final de filme causa um atordoamento que bem ou mal acaba passando com as vitrines das lojas, o fast-food... Não é o caso. Na volta pra casa, pegar ônibus naquela mesma Avenida Paulista noturna e taciturna foi uma mera, possível, sublime continuação.

Elisa Andrade Buzzo
São Paulo, 27/12/2007

 

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