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Quarta-feira, 30/1/2008 Ciclones sobre a cruz Guga Schultze Uma das melhores leituras, em 2007, foi o best-seller de Richard Dawkins, Deus, um delírio (Companhia das Letras, 2007, 528 págs.). Julio Daio Borges, nosso editor, já escreveu sobre ele aqui, no Digestivo Cultural. A ousadia de Dawkins é bastante explícita, a ponto de protegê-lo da acusação de pretensioso ou arrogante, porque Dawkins se coloca de cara na linha de tiro, declarando a intenção de converter o leitor ao ateísmo. Não dá pra acusá-lo de tentar uma catequese invertida, ou de fazer um proselitismo escuso. Ele diz, com todas as letras, que é isso mesmo o que ele está tentando fazer. Dawkins tem coragem, ao mexer numa casa de marimbondos. Uma casa bem menor, hoje, do que nos tempos de Bertrand Russell, quando este lançou, por volta de 1957, Porque não sou cristão (Livraria Exposição do Livro, 1972) ou quando Herman Hesse cometeu pequenas mas instigantes heresias e apostasias em Demian. De qualquer forma, é preciso um mínimo de coragem para afrontar uma "insensatez generalizada, erguida em consenso, a ferro e fogo, sobre o Ocidente". As críticas que Dawkins recebeu pela sua "virulência" são infundadas. Deus, um delírio é um livro suave, bastante bem-humorado, tranqüilo, até. Pese as falhas da tradução, que tornam muitas passagens mal articuladas, o livro é bastante claro, no seu todo. O tradutor parece que não acompanha bem o que Dawkins está dizendo, ou não entende bem o que ele diz, de forma que às vezes é literal demais, uma coisa perigosa quando se traduz do inglês, particularmente. Dawkins vai contra a idéia de "deus", no geral. Por tabela, ataca a religião. A culpa não é de Dawkins apenas, já que a religião se apossou quase que totalmente de "deus", de forma que fica difícil pra qualquer um falar em deus fora da esfera da influência religiosa. As religiões se proclamaram, desde sempre, porta-vozes exclusivas da questão, não dando espaço para nenhuma outra forma de se tratar o assunto, a não ser nos próprios moldes, ou seja, transformaram "deus" em uma questão de fé, apenas. O darwinismo de Dawkins é sofisticado e maleável ao ponto de ser uma interpretação a posteriori daqueles princípios básicos. Ele não repete Darwin, apenas se orienta por onde Darwin abriu caminho. E, evidentemente, Dawkins apresenta o evolucionismo como ferramenta para a compreensão da natureza, não como verdade em si. Dawkins pareceria dizer que "deus" também pode ser uma questão de investigação científica. Mas nem Dawkins escapou totalmente da imposição religiosa de "deus", de maneira que, quando descarta a idéia, está descartando o novelo religioso por inteiro. No livro Cem anos de solidão, de García Márquez, o padre de Macondo vem visitar o velho patriarca, José Arcadio Buendía, que está meio louco, preso por cordas debaixo de uma castanheira. O padre vem humanitariamente fazer companhia ao velho e tenta ensinar o jogo de xadrez. Ao perceber que o jogo é uma batalha, o patriarca confunde o padre ao dizer que não concebe como duas facções inimigas podem concordar com as mesmas regras. Algo parecido está em jogo no livro de Dawkins, na medida em que a religião apresenta apenas duas alternativas, como uma regra única para o jogo do ser humano à procura de suas origens: crer ou não crer em deus. Ou seja, crer, segundo a religião, é a única forma de encarar a hipótese de um criador. E, uma vez aceita a hipótese, apresenta-se ao crente a imagem religiosa de deus, com todas as suas implicações extremamente humanas e, por que não, absurdas. Dawkins escolhe não crer. Dawkins recebeu pelo menos uma resposta, O delírio de Dawkins, livro de um casal de teólogos, Alister e Joanna McGrath. Bem escrito mas cheio de evasivas, não tem, nem de longe, o impacto natural que Dawkins provoca. Talvez mereça uma resposta de Dawkins, e os autores podem agradecer à boa sorte por ser Dawkins o debatedor e não Christopher Hitchens. O livro de Dawkins é até um livro calmo. O mesmo não se pode dizer de Deus não é grande, do jornalista inglês, citado acima, Christopher Hitchens. Hitchens não é cientista e não tenta calmamente provar que está certo. Apenas detona a religião, baseado em suas experiências como jornalista, em sua capacidade de pensar por si mesmo e em seu desprezo agudo por enganações de toda espécie. Um verbo que Hitchens deve odiar, sem culpa, é "tergiversar". Em comum, Hitchens e Dawkins defendem a moralidade natural do ser humano, em contraste com a necessidade dessa moral ser "soprada" dos altos escalões celestes, como insistem os pastores para o rebanho. Para Hitchens o comportamento das altas cúpulas celestiais, eclesiásticas e do rebanho inteiro chega a ser imoral. Até aí eles estão parelhos, mas enquanto Dawkins se esforça pela volta de um iluminismo científico e, provavelmente, está atento às repercussões positivas do seu livro, Hitchens não está nem aí. Demarca friamente sua distância da procissão dos crentes, é brilhante sem tentar ser persuasivo e contundente até onde sua experiência nas letras (ou no jornalismo) lhe permite. Aceita tranqüilamente que "o mal", digamos assim, está presente no homem e independe da religião. Mas ridiculariza esse mesmo argumento quando é usado para justificar atrocidades cometidas em nome de deus. Hitchens não aceita irresponsabilidades e exige responsabilidade assumida. Não pretendo me estender demais sobre os dois livros. Não caberia aqui. Basta apontá-los como boas leituras, de certa forma originais na medida em que são poucos os livros que "peitam" as crenças em geral. Existem mais alguns dignos de nota, como o ótimo romance Um riso na catedral, do brasileiro Dalmy Gama, professor de literatura, que apresenta uma visão esclarecedora e original sobre crenças, crendices e o que pode estar por trás disso tudo. Outros, mais antigos (e surpreendentes por isso mesmo) como o já citado Porque não sou cristão, de Bertrand Russell e La desilusion de un sacerdote, de um ex-teólogo alemão radicado na Argentina, Franz Griese, são leituras pra lá de esclarecedoras. A pergunta que geralmente se faz diante dessa controvérsia toda é: por que se preocupar com este assunto? Por que se ocupar com esse debate pró ou contra a religião e qual seria, afinal, a importância desse mesmo debate? Há várias respostas pertinentes a essa pergunta. Uma delas, talvez a mais abrangente, é que pode mesmo ser necessário ao homem um aprofundamento da velha questão "quem somos, de onde viemos e para onde vamos". Na medida em que a religião pretende que essas perguntas fiquem inteiramente sob sua órbita de influência ou, pior, pretende responder de modo arbitrário a essas indagações, fornecendo nomes, datas, tamanho, modus operandi, endereço, objetivos e idéias da própria entidade conhecida como "o criador", o debate já se justifica. Só o tamanho absurdo do cosmos, crescendo ao longo das últimas seis décadas (quando foi brutalmente ampliado), depõe, e de uma forma cada vez mais categórica, contra a pretensão humana de ser o centro das atenções do suposto criador desse mesmo cosmos. Outra resposta possível, mais na esteira do livro de Hitchens, é que a religião, principalmente no Ocidente, firmou-se em bases extremas de ódio. Seis séculos de Inquisição são mais do que suficientes para qualquer religião ter criado seus opositores ferrenhos. Ao contrário dos europeus, que sofreram diretamente vários flagelos religiosos, o cristão brasileiro não leva tão a sério sua própria fé. "Ouso dizer" (como diz Hitchens) que o o cristão tupiniquim é, geralmente, um despreocupado sem-vergonha. Menos mal. Não frequenta muito a igreja, não se confessa, escolhe no que acreditar, mistura crenças diversas, mantém comércios pessoais com santinhos, conhece a Bíblia de ouvir falar. Em suma, não conhecem bem a religião que professam e ficam meio perplexos com essa "tempestade em copo d'água", promovida por esses autores estrangeiros. O próprio Leonardo Boff, figura que me parece a síntese do catolicismo brasileiro mais esclarecido ― ameno, humanista e bem-intencionado ―, molha a camisa tentando esclarecer para si e para outros cristãos a realidade da Inquisição, num longo prefácio ao livro mor do Tribunal do Santo Ofício, o Manual dos Inquisidores, usado pela Igreja durante alguns meros séculos. A herança dessa realidade ainda não se dissipou de todo. Deus parece um tabu. Podemos sentir, em qualquer lugar, o desconforto gerado pela simples menção da divindade. A gente tolera, ainda com razoável simpatia, as expressões tipo "graças a deus" ou "pelo amor de deus" mas, mesmo essas, precisam ser instintivamente dosadas. Seu uso constante não faz bem pra imagem pessoal. Normalmente essas expressões são acompanhadas de rápidos olhares para cima e igualmente rápidas expressões faciais de desamparo. Suportáveis ainda numa tia sabidamente carola, mas não numa pessoa de quem se espera ouvir alguma coisa interessante. Basta alguém olhar para cima e dizer, com convicção, "deus seja louvado" para que a sua próxima frase sofra uma queda enorme no seu percentual de credibilidade. São razões que talvez não interessem tanto a todo mundo. Ainda que praticamente todo mundo tenha sofrido pelo menos os ecos meio aterrorizantes de palavras cheias de ameaça contra sua integridade física, mental ou espiritual, como queiram. Mas, como diz a Bíblia, "tempo de semear, tempo de colher". E sem colher de chá. Para ir além Guga Schultze |
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