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Sexta-feira, 7/3/2008
Confissões de uma doadora de órgãos
Ana Elisa Ribeiro

Eu doei livros. Depois da enésima mudança de casa, resolvi me desfazer de parte da minha adolescência. Na verdade, parte do meu ensino fundamental e um tanto do ensino médio. Coleções quase inteiras de livros paradidáticos, séries sobre Segunda Guerra Mundial (que me era um assunto encantador), coletâneas paradidáticas de contos importantes da literatura brasileira, livrinhos para fazer provas de português e até um manual de normalização científica em edição mais antiga. Todos em bom estado de conservação, limpos, bem-tratados, mas empoeirados. Em alguns casos, fiquei mais de década sem folhear. Havia livros com dedicatória de amigos e colegas de escola. Lembro de um que havia sido presente do grande colega. Depois brigamos, perdemos o contato, graças a Deus. Quando ele me achou no Orkut, desfiz minha conta e sumi no mundo de novo. As pessoas pensam que só porque a gente cresce, as mágoas se desfazem. Eu não consigo que minha memória apague o que lastimei.

Fui até a biblioteca, cheguei no balcão de fórmica, naquela boa e grande escola pública federal. Havia três funcionárias conversando. Depois de um "bom dia" animado, perguntei se ali se aceitavam livros como doação. Elas disseram que sim, mas que havia algumas condições. Confesso que a loura que continuou de costas me transmitiu certa má vontade, mas resolvi ignorar a minha impressão ruim. Falaram que eu deveria deixar meu nome completo, contatos e que os livros poderiam ser aproveitados em outras bibliotecas da rede escolar, dependendo do assunto de que tratassem. Eu disse então que iria até meu porta-malas trazer a sacola.

Era, de fato, uma sacola grande e cheia. Muitos livros, mais de trinta, todos em bom estado. Confesso também um certo remorso. Mas eu já estava ali. Não tinha mais volta. A decisão havia sido tomada quando as estantes começaram a envergar e eu resolvi aliviar o peso das prateleiras da minha casa. Outro motivo era que, enquanto eu mantinha os livros ali, em cativeiro, muitos estudantes precisavam de material para pesquisa, especialmente aqueles meninos dedicados que não têm livros em casa ou não acessam a Internet. Daquela escola, justamente, havia saído a aluna que fora o primeiro lugar nacional do ENEM. Era meu presente para aquela instituição.

Os livros foram espalhados pelo balcão. Mostrei um por um, como se mostram fotos ou jóias. A funcionária que veio me atender tinha um sorriso permanente. A julgar pela reação que tinha a cada título, senti que ela realmente estava feliz e surpresa com a minha doação. Pegava cada exemplar e examinava a capa. Leu a dedicatória do meu amigo de escola sem qualquer cerimônia. Nem perguntou se eu queria ficar com aquele livro. Ela sabia que eu estava ali para ajudar. Comentou umas obras, qualificou alguns autores, mostrou-se interessada em livros de Sidney Sheldon, comentou com a colega que eu trazia coleções e séries quase inteiras. Disse assim: "ah, mas estes livros não vão sair daqui". E eu ganhei o dia.

Demorei um pouco a me desgrudar do balcão. Relutei um pouco, no fundo, em deixar meus livros ali. Lembrei de algumas pesquisas escolares que empreendi com eles. Sempre gostei de ter livros. Não apenas o que convencia minha mãe a me dar, mas aqueles que foram comprados com a grana da merenda. Horas e horas passeando por sebos e livrarias, junto com alguns amigos que também descobriam os livros. Saí do balcão emocionada. Com a voz trêmula, falei com a moça: "tomara que tenham boa serventia". E ela sorriu, já com os livros nos braços, levando para a mesa onde seriam cadastrados. Depois disso, seriam distribuídos pelas prateleiras da biblioteca e dificilmente eu poderia juntar aqueles cacos da minha vida escolar novamente.

Aquelas obras, juntas, formavam uma parte do meu catálogo, do meu álbum de leitora, do meu universo particular (com a licença de Marisa Monte). Aquela pequena biblioteca era uma caixinha de jóias, cristaleira de objetos de viagem. Mesmo paradidáticos sobre a deriva dos continentes ou sobre Getúlio Vargas ajudaram a me constituir leitora. Também me afirmaram como curiosa, pesquisadora-mirim, índices de que eu seria sempre uma persistente e que teria gosto em cumprir tarefas que me pareciam interessantes. Até hoje sei coisas sobre química e física que me soavam lindas quando eu estava no ensino médio. Nunca me abstive de conhecer o que eu não sabia. Mesmo que fosse nos livros.

Eu doei livros. Não sei se seria mais emocionante doar sangue. Meu Rh é negativo, meu sangue é O, qualquer banco de sangue gostaria do meu auxílio. Mas não me dirigi ainda a nenhum hemocentro. Nos meus documentos, sou doadora de órgãos. Se não morrer esmagada, penso que terão mais serventia para outras pessoas do que para os vermes. Duvido que eu chegue estraçalhada no céu. Deus há de ter senso estético. Também sou doadora de córneas, caso meus olhos não possam mais ver, um dia. E doaria mais coisas que parecem me pertencer. Os livros que deixei no balcão eram, para mim, algo assim como meus olhos, meu coração e meu sangue. Tomara que ajudem outras pessoas a viver melhor.

Ana Elisa Ribeiro
Belo Horizonte, 7/3/2008

 

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