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Sexta-feira, 22/2/2008
Eu e o cursinho pré-vestibular
Ana Elisa Ribeiro

Quando decidi que profissão seguiria, lembro de confiar a meus pais o segredo. Sim, segredo. É que gente inteligente, para outros parentes, só deveria seguir carreiras da moda ou então aquelas mais óbvias. A minha, embora fosse antiga e tradicional, não se enquadrava nas categorias mencionadas. Com meus pais, que são quem me conhece, o segredo estaria guardado e a escolha, fora do alcance dos julgamentos limitadíssimos daquelas pessoas.

No final do ensino médio, depois de muita insistência minha e de meu irmão, meu pai resolveu pagar um intensivão de cursinho pré-vestibular. A indústria dos concursos exercia pressão sobre os estudantes, de forma que parecia impossível conseguir uma vaga na universidade pública sem passar por aqueles auditórios semi-escolares. Escolhemos o cursinho da moda e assistimos às aulas no turno da noite.

O melhor que tirei daquela experiência foi uma amizade duradoura que fizemos naquelas carteiras. Nosso amigo pegava carona conosco e prestava vestibular para Ciência da Computação, uma espécie de novidade entre as áreas de conhecimento. Víamos aulas-espetáculo de Biologia, Física, Química, História, Matemática, Português, Literatura (que, para a escola, curiosamente, são coisas diferentes!), Redação (opa, mais uma divisão!) e se me esqueci de alguma matéria, perdoem-me os vestibulandos.

Lemos livros, discutimos teorias, repetimos fórmulas, decoramos musiquinhas, fizemos provas simuladas e matamos algumas aulas. Quando tudo parecia insuportável, pensávamos no campus verdinho da universidade e no futuro a ser conquistado. Não sabíamos exatamente o que nos esperava, mas diziam os adultos que era bom.

Fiquei quatro sofridos meses naquele cursinho. Passei por lá como um projétil. Não fiz qualquer vínculo (exceto com nosso amigo, aliás, amigo até hoje). Cumpri o que deveria e passei no vestibular. Não era lá o curso mais difícil, mas fiquei entre os dez primeiros entre centenas de concorrentes. Na faculdade privada em que fiz provas antes, fiquei em segundo lugar. Quando saiu o resultado dos exames e marcaram o dia de matrícula, meu pai me fez uma proposta: "se passar na universidade pública, pode ficar com o dinheiro da matrícula e da primeira mensalidade (ou prestação, não sei) da escola privada. Nem quero saber o que você fará. Tome a decisão". O que ocorria era que, obviamente, a matrícula da faculdade particular deveria ser feita antes do resultado da universidade pública. Era, portanto, de fato, uma decisão a ser tomada.

Não fiz matrícula. Pensei, arrisquei, deixei que minha autoconfiança emergisse. Fiquei com a grana e comprei discos, não sei mais. Comprei livros também. Saí com amigos e paguei uma conta mais alta. Não me lembro. Esperei o resultado do vestibular público com ardências no pescoço. Mas passei, ainda bem. Passei. Levei trote da família, ganhei os parabéns e até abraços calorosos dos irmãos. Estava dentro. Mas foi aí que tive uma tristeza: estampado no jornal estava meu nome, ANA ELISA RIBEIRO, na lista dos aprovados por mérito do cursinho! Que lástima. A escola pública que me havia formado, constituído e amadurecido não tinha departamento de marketing, ora vejam. Mas o cursinho, claro, tinha.

Meu nome naquela lista só não era mais absurdo (foi assim que eu senti) do que o nome do meu amigo, candidato a Biologia, que havia freqüentado o cursinho por duas semanas. Não sabíamos se era motivo de risada ou de raiva. Sequer as musiquinhas com fórmulas de física haviam me servido para alguma coisa. As aulas de literatura eram muito menos do que eu havia lido até ali, sem contar que o professor maldizia nossa literatura o tempo todo. As correções de redação que aconselhavam a falta completa de criatividade e os padrões insossos de parágrafo me pareciam anti-aulas de produção de texto, burrificação.

A lembrança disso tudo está viva. Muito mais do que eu supunha. E veio à tona porque, nos dias que correm, vendo televisão, deparei com propagandas de cursinhos. O pré-vestibular da moda não é mais aquele que cursei, mas a propaganda continua a mesma. Equipes de professores sorridentes abraçam alunos aprovados e carecas. Belos jovens pulam com roupas sujas de tinta. Livros são jogados para o alto, como se entrar na universidade fosse a parte mais difícil. E uma música emocionante funciona como fundo para frases de vitórias e nomes de alunos, seguidos da colocação alcançada. Nunca se viu tanta gente em primeiro lugar. Nunca se soube de tanto primeiro lugar geral. Neste momento, as vedetes são as universidades federais ou as católicas. E, para minha surpresa, lá estava, na propaganda de um cursinho, a aluna que tirou primeiro lugar nacional no ENEM, entre mais de um milhão de alunos. A jovem, ex-aluna de uma escola pública, constava, como sempre, da listinha de aprovados por mérito do cursinho. Será que o direito não tem um enquadramento para isso? Deve até ter. Repare-se que não se trata do cursinho que se apropria da aprovação do estudante no vestibular, mas da apropriação de um primeiro lugar no ENEM, uma avaliação nacional que afere competências desenvolvidas ao longo do ensino médio! O estômago da gente precisa ser forte. Minha avó já sabia disso.

Ana Elisa Ribeiro
Belo Horizonte, 22/2/2008

 

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