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Sexta-feira, 8/2/2008
Se um dia, uma culta viajante...
Ana Elisa Ribeiro

Tenho amigos no exterior. Queridíssimos, me fazem falta em várias ocasiões. O fato é que a gente se acostuma a viver sem eles e a vida segue em frente. Todo ano aquela promessa de visita. Os parentes pensam que seja oportunidade para fazer uma viagem turística sem pagar hotel. Sempre a mesma coisa. Não é assim que funciona? Fico com preguiça de sair de casa, pegar avião, ficar horas no ar com os ouvidos doendo, descer em terra estranha para ver barquinhos em Veneza ou para olhar de longe uma torre ou outra. Vou tentando algo mais interessante, tipo fazer um curso importante ou voltar com algum conhecimento duradouro incorporado.

Não conheço muitos portugueses ou holandeses deslumbrados com o Brasil. Não conheci muitos americanos interessadíssimos em "treinar o português". Não sei de franceses ansiosos por aprender teorias com um professor do Brasil. Não é curioso? A colônia continua aí. Inclusive na cabeça e no comportamento de algumas pessoas.

Gastos e qualidade de vida
Segundo uma importante fisioterapeuta mineira, a vida na Holanda é muito melhor do que aqui na zona nordeste de Belo Horizonte. Entre os poderosos argumentos dela, que não conhece a Holanda, diga-se de passagem, a qualidade de vida em Amsterdã também se deve ao fato de as pessoas não terem gastos com automóveis e andarem de bicicleta. Um médico aposentado bonachão disse, então, a ela: "Por que você não compra e usa uma bicicleta aqui mesmo?".

Vida cotidiana
Segundo a mesma fisioterapeuta, as pessoas, no Brasil, só conhecem a Europa por fotos. Quando ela passar vinte dias lá, poderá se sentir uma européia de carteirinha. Passaporte vale por quatro anos. A maconha holandesa ou italiana é muito melhor. Os homens espanhóis são mais altos e a comida já vem pasteurizada. As pessoas até atravessam a rua de um jeito diferente.

Coincidências
Diz a analista de sistemas que se mudou para a Holanda para trabalhar. Foi coincidência que, pouco antes de tomar a decisão, o casamento tenha desmoronado, o belo ex-marido tenha preferido morar em São Paulo e ela mesma tenha encontrado um holandês na noite mineira e tenha tido, digamos, uma "relação" com ele. A Holanda foi uma escolha consciente e era um sonho antigo. As pessoas ficam quase sem passado quando estão deslumbradas.

Cultura erudita
A fisioterapeuta e a analista de sistemas adoram beber. Apesar de terem entrado na casa dos trinta anos, terem suas profissões sérias e serem mestres por universidades federais, passam grande parte da semana programando a balada da vez. Na boate, são elogiadas pelos vestidos de grife e pela progressiva bem-sucedida. Depois de muita conversa fútil e assunto corriqueiro, dizem para os presentes na casa da vovó: "acho importantíssimo ir ao Louvre". O avô, aparentemente desatento, pergunta, coçando a dentadura: "você conhece o MASP?". Talvez, com esse roubo de obras de arte, elas tenham ouvido falar.

Mais cultura
Belas mulheres, quase independentes, não fosse a limitação cognitiva. Nessa defesa de conhecer o Louvre, uma tia atacou mais perto: "você tem o hábito de ir ao Museu de Arte da Pampulha?". É claro que não. A gente sabe que fica ali perto daquela igrejinha azul, que também foi feita por uns artistas. Os cem anos do Niemeyer refrescam a memória das pessoas sobre arquitetura. Camille Claudel já esteve ali? Sim, e mesmo Rodin. Mas o que eles fizeram mesmo? Passou no Fantástico? Não, saiu na Veja. Ah, bom. É que parei de assinar. Troquei pela Nova. Entendi. Então pense aí: por que será que uma brasileira que não se dedica ao circuito cultural brasileiro se tornaria, do dia para a noite, uma quase holandesa entendida de Mona Lisa? As pessoas mudam, diria minha avó.

Capital
Muito mais bacana se assumissem que vão fazer, na Europa, o que sempre fizeram aqui: beber, conhecer homens e fumar maconha. Isso, sim, seria mais autêntico. Só que em euros e falando holandês.

Olhares
Quando você olha a Mona Lisa, o que você vê? Quando chega diante da Moça com brinco de pérola, o que lhe vem à cabeça? Já sei, já sei. Uma senhora precisando de uma lipo e uma moça com um turbante démodé. É por aí mesmo.

E-mail de chegada
Lá na França tem um museu maravilhoso. Eu vi num filme. Preciso ir até lá. Na Itália tem um prédio redondo todo quebrado que também é importante. E tem também uma torre empenada que ainda está de pé. Na Holanda tem uns ventiladores bem grandes e na Espanha tem uns caras que batem em bois. Quando eu voltar, eu te conto melhor.

Entrevista para intercâmbio
Quando você morava em Belo Horizonte, quantos filmes via por ano? Cite alguns títulos deles. E quantos livros lia? Cite alguns autores. Via televisão? Que canais? Tinha vida social? Ia aonde com seus amigos? Discutiam sobre o quê? Conhecia seu país minimamente? Diga aí uma frase de uma canção mais recente importante para a cultura de lá: "tô ficando atoladinha".

Endereços
É muito importante ir ao Louvre ao menos uma vez na vida. Aquela avenida com nome bonito, como é? Ah, não sei. Não sei onde fica o Museu da Pampulha não. Como é que eu vou saber?

Apátridas
Mas esse tal de Portinari não é italiano? O que está fazendo nesta parede dessa igrejinha esquisita?

Curso rápido de civilização
Vai lá fazer o quê? Ver uns quadros. Para quê? Para dizer que eu vi de perto. Só conhecia dos livros de segundo grau. Isso me faz melhor, sabe?

Holandês, língua mundial
Saber uma outra língua é imprescindível no mundo de hoje, gente. O Leonardo, jogador de futebol, sabe várias. Eu mesma, quando souber holandês, vou ficar muito mais globalizada.

Ana Elisa Ribeiro
Belo Horizonte, 8/2/2008

 

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