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Quarta-feira, 31/10/2001 A inteligência, por Sandy & Junior Paulo Polzonoff Jr A felicidade dela é tão genuína, que não tenho como criticar. Fico aqui pensando, chorando em frente à televisão, numa atitude meio sádica, no caminho que escolhi, tão diverso deste. Olhe para ela: trancinhas no cabelo, com um sorriso largo que é o exato oposto de minha cara tosca quando chorando. Sou, no mínimo, tão patético quanto ela. Meu choro, entretanto, vai desaparecer amanhã, enquanto a felicidade dela, expressa naqueles dentes tão brancos, vai permanecer provavelmente para o resto da vida, sabendo, como sei, que estas pessoas geralmente não mudam seus gostos. Impossível foi não correr para o computador para escrever sobre isso. Pena que não tenha os recursos de imagem para retratar o que vejo. Tampouco tenho a paciência necessária para descrever a meu leitor a mentira sob os holofotes, com nome e sobrenome, mentira esta que já é dinastia, por assim dizer. Aqui estou eu, olhando para a janela, fumando um cigarrinho ilusório agora, querendo um uísque (garçom, por favor um uísque!), pensando seriamente no que podem pensar aqueles que estão acostumados a me lerem comentando coisas mais “altas”. Voltando à felicidade da fã. Uma mulher já, que um homem desejaria facilmente, não fosse a carinha de criança que a torna mais e mais infantil na medida em que vai deixando escorrer seu conhecimento inútil para dentro de meu ouvido que já agora tenho por ferido. Mulher, como é que você foi parar aí, deixando-me aqui todo perdido, jogado num canto, me sentindo um lixo só porque tenho um volume pesado demais sobre o colo, enquanto você responde às perguntas sobre seu objeto de adoração como se falasse algo deveras relevante para este país, que neste momento chamo pacificamente de merda? Este país é uma merda, caros, mas não sei se tenho culpa nesta merda. Muito provavelmente. Como um intelectual — como me chamam, mas nego veementemente — devo ter minha parcela de culpa, ao deixar que isso viesse a acontecer. Que este texto diminua ao menos um pouco de minha culpa sobre esta merda que nós chamamos sem nenhum orgulho de Brasil. Há quem se vista de verde-amarelo, quem ache o Hino Nacional uma grande canção; há até quem beije esta terra, achando que aqui somos abençoados por um Deus que tem passaporte verdinho. Mais do que nunca hoje sinto vergonha, do país e de mim. Não quero, entretanto, parecer um homem cheio de autocomiseração. Olho para o lado, vejo a estante cheia de livros e não posso deixar de dizer simplesmente que este foi o caminho que escolhi. A mim cabe pagar o preço, se o preço for chorar ou viver nessa vidinha pequena que estou vivendo, enquanto vejo pessoas semi-analfabetas ganhando milhões. Pago. A mentira se expõe. Como será que vocês não vêem isso? Basta abrir o olho e os ouvidos. Não precisa ser genial; eu não sou genial. Por que não se põe as cartas na mesa? Ou será que é justamente isso que se quer: não ver? A mentira está ali, ao vivo, por favor. Calem-na por um instante. Depois do choro, sinto náusea. Será que é Sartre, a quem desprezo hoje, impondo-se? Nojo, enjôo diante da mentira. Volto ao início deste texto, contudo: a felicidade da fã é tão genuína, como é que posso criticar? Não posso, ao menos não sem me criticar também. Afinal de contas, eu fico aqui escrevendo este monte de palavras, veja só, preocupado que você, leitor, não saiba que a mentira, até aqui, se chama Sandy & Junior, que a fã se chama Monalisa, e que o programa a que assisto é Domingão do Faustão, por força da ocasião, já que agora não posso ter TV a cabo. É... ou você acha que eu só sei me debruçar sobre autores franceses, diretores italianos, cantoras de jazz negríssimas gravando Cole Porter? Sim, meu caro amigo: o lixo cultural também existe neste meu cerebrozinho. Vamos colocar em outros termos, ok? Em vez que chamarmos Sandy & Junior e esta farsa toda de mentira e lixo cultural, já acho que é hora de nós, fãs ou “intelequituais”, pensarmos neste tipo de produto, de que se valem tantos outros tubarões, como apenas seres humanos. É uma tentação dizer o contrário, tentação a que incorro muitas vezes, mas que tem de acabar, porque só assim posso deixar de achar que este país é realmente uma merda, para achar tão-somente que é um país primitivo, feito de seres humanos primitivos, intelequituais ou fãs ou ídolos populares. Pois é, meu amigo, cujo nome oculto por pudor à sua inteligência, tenho me debruçado, neste fim-de-semana, sob a questão dos ídolos populares. Na sexta, assistindo ao Ratinho, percebi, por mais que ache isso impossível, beleza naquelas mulheres gordas e feias e quase todas negras e certamente todas pobres, aquelas mulheres que se sentavam no sofá, esperando ou pedindo um teste de DNA, para certificarem-se ou não que homens, também negros e pobres em sua maioria, e feios também em sua miséria que costuma a nos chocar só porque estamos acostumados a um padrão de beleza classe-média, são os pais de seus filhos. Sim, meu amigo, há beleza, sim. Uma beleza tão rústica que extrapola estes sentimentos pretensamente sofisticados a que estamos acostumados. Beleza de fêmea resguardando o futuro de sua cria. Algo que não cabe em João Antônio ou Dalton Trevisan. Depois, sem querer, me deparei com coisa assustadora: o humor do A Praça É Nossa. Você, como outras pessoas inteligentes que conheço, não suportam cinco minutos do programa semanal. Para dizer a verdade, eu mesmo não agüentei nem dois minutos. O minuto e meio, porém, que vi do programa, foi-me suficiente para identificar uma falha nossa. Não é o humor que é ruim, a piada sem graça; é que tudo ali é tão ingênuo, tudo tão parado num tempo em que as pessoas consideravam palavras como chato um palavrão, que nos constrange. A sisudez tirou nosso humor — a culpa é de quem? Hoje passei a tarde em casa. Nada pior do que domingo à tarde em casa, com chuva lá fora, sem TV a cabo. Um mundo de descobertas, porém, me foi apresentado hoje. Primeiro, logo depois do almoço, com um tal “quadro da princesa”, com um pagodeiro cujo nome me foge agora. A idéia é simples: pega-se alguém muito pobre, coloca-se numa limusine, e se dá um banho de loja na moçoila, a fim de fazê-la sentir-se uma princesa. Nada que dê prejuízo, claro. As lojas ganham publicidade e o apresentador, audiência dos pobres-diabos como eu. Não sei se é comum, mas neste domingo em que assisti ao quadro, uma moça começou a descrever sua vida. Pobre, sim, começava a estudar tarde. Tinha uma filha, fruto de um amor passageiro. Morava em Minas Gerais e foi para São Paulo à procura de melhores condições. Na cidade, entretanto, foi posta para fora por causa de um desentendimento qualquer e teve de dar a filha. Neste momento ela chorava copiosamente (viva os lugares-comuns!). Sabia eu já que ela iria ter tudo de volta, graças ao poder da televisão. Agora me diga, amigo, me responda com toda a sinceridade: não há beleza nisso? Nem ao menos no relato da mulher? Até que desagüei no Sandy & Júnior, depois do jogo da seleção. Vi duas fãs se digladiarem numa disputa infantil para ver quem cantava com o Junior. Vim para o computador e comecei a escrever este texto. Lembrei das narrações de amigos de imprensa, que diziam que os seguranças da dupla, truculentos, batiam em crianças durante o show. Chamou-me a atenção mesmo foi a felicidade da fã ganhadora. O tamanho do sorriso. E o tamanho daquilo que eu considerava uma mentira. Por fim, tenho de resignar-me. Olhar por trás de dois grossos vidros: o primeiro, da televisão, com sua ilusão de fácil constatação (eco, eco); e o segundo, o da falsa crítica, que se opõe à mentira criando outra mentira: a de que a cultura popular é feita por verdadeiras obras-primas da dramaturgia. Oh, engano! Quanto mais simples o postulado, mais difícil para nós, “intelequituais”, é compreendê-lo. Não vou me debruçar sobre livros ou nomes de fraque e cartola para dizer algo que vi na emoção rasteira, na palavra — amor — usada assim irresponsavelmente, sem grandes sofismas. Não vou me apoderar de frases de Shakespeare, tiradas de uma cena obscura de uma peça mais obscura ainda. Nem tampouco vou recorrer às memórias de Proust, à linguagem cifrada de Joyce, à cólera de Céline, aos jogos lógicos de Wittgenstein, à tristeza de Nietzsche, à poesia quadrada de João Cabral. Vou ser simples e direto ao dizer que, meu caro, estou diante do ser humano; e é o ser humano, assim despido de nossa pretensa inteligência, que me interessa. Porque assim sou eutambém: humano, despido de toda a sua inteligência. Paulo Polzonoff Jr |
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