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Quinta-feira, 20/3/2008
Sobre o Caminho e o Fim
Ricardo de Mattos

"Fé e Razão constituem como que as duas asas pelas quais o espírito humano se eleva para a contemplação da verdade. Foi Deus quem colocou no coração do homem o desejo de conhecer a verdade e, em última análise, de conhecer a Ele, para que, conhecendo-O e amando-O, possa chegar também à verdade plena sobre si próprio." (João Paulo II, Carta-encíclica Fides et Ratio)

"A harmonia que regula as atividades do Universo revela combinações e fins determinados e, por isso mesmo, revela a força inteligente. Atribuir a formação primeira ao acaso seria um contra-senso, porque o acaso é cego e não pode produzir efeitos da inteligência. Um acaso inteligente não seria mais o acaso." (Allan Kardec, O Livro dos Espíritos, Livro I, Capítulo I)

"Por certo, os que crêem e os que praticam o judaísmo e os cristãos e os sabeus, qualquer dentre eles que creu em Allah e no Derradeiro Dia e fez o bem terá seu prêmio junto de seu Senhor; e nada haverá que temer por eles, e eles não se entristecerão." (Alcorão, Sura II, versículo 62)

Deus e Religião não se confundem. Deus transcende as religiões, e não há uma que, sozinha, consiga defini-Lo, nem a extensão de Sua vontade ou de Seu Juízo. Acredito que chegará a época em que o Pensamento não sofrerá mais a divisão artificial entre Ciência, Filosofia e Religião. O ser humano, tocado pela maravilha do mundo, nele verá um exemplar da obra divina e recorrerá tanto aos dados recolhidos pela Ciência quanto à disciplina da Filosofia para conhecer e compreender seu atual habitat, fechando o círculo ao louvar o autor de tanta perfeição. Um pensamento conciliatório, mas supra-religioso, supra-filosófico e supra-científico, deverá ter por fundamentos, entre outros ― mas não muitos ― a fé, a razão, o amor, a evolução, a moderação, a tolerância, a responsabilidade.

Deus é o pai de todos e de tudo Criador. No século XX o homem caiu em uma profunda crise espiritual, crise esta preparada pelo materialismo e ateísmo oriundos do século XIX. E pior: o que era crise existencial para alguns transformou-se em modismo para outros. Tornou-se bonito, tornou-se eloqüente, repetir que "Deus está morto", porque isso mostra ao menos que houve uma aproximação ― na maior parte das vezes apenas indireta ― de determinada obra, de certa corrente filosófica. Por outro lado, os dogmas religiosos cegaram o olho humano para o verdadeiro amor divino. Todavia, esta crise pode ser útil para que se afaste a idéia de um ser vingativo, de um "Senhor Deus dos Exércitos" e então comece-se a esboçar a idéia de um Deus de Amor, de Perdão e de Justiça. Esta tarefa muitas vezes é penosa para um indivíduo, que dizer para uma sociedade.

Há quem não acredite e teime em não acreditar "sem provas". Eu, quando quero provas da existência de Deus, vou para o jardim e observo as menores plantas. O homem as reproduz, faz cruzamentos e seleções, mas não consegue dispor da matéria do modo e quantidade adequados para criar um só grão de pólen viável. Ao visitar a famosa médium de Votuporanga, deparei-me com determinada mensagem: "Para quem não crê, nenhuma explicação é suficiente; para quem crê, nenhuma explicação é necessária". Não porque se louve a ignorância de se crer sem entender, mas porque quem crê acaba deparando-se cedo ou tarde com a resposta, e porque a Ciência ainda não respondeu tudo. As ciências todas são chaves para o conhecimento gradual do plano divino e seu autor. Mesmo que O negue? Sim, pois hoje se nega mas amanhã "cai a ficha".

A evolução do entendimento do homem de si para algo além de si e maior é gradual e, apesar do correr dos séculos, ainda presente. Há pessoas que já gozam de feliz beatitude, avançadas que estão na comunhão com Deus. Outras, ainda precisam de talismãs, objetos e intermediários, sem os quais não acreditam conseguir estabelecer contato com o Alto. Isso é natural, pois sendo o homem criado e Deus estando fora da criação, a distância, mesmo pressentida é assustadora. Daí a necessidade de tolerância no assunto. Para quem não acredita no próprio espírito, como exigir que acredite num maior? Se a pessoa acredita que o que chamamos espírito e alma nada mais são que projeções do cérebro, como fazê-la acreditar num ser cuja inteligência prescinde do aparelho cerebral para manifestar-se?

A Religião, por sua vez, é um instrumento, não um fim. Converti-me do catolicismo ao kardecismo justamente quando passei mais a explicar aquele do que a encontrar as explicações que eu precisava. Entretanto, toda grande religião encerra em si algo de verdadeiro sobre Deus, sobre a origem das coisas, sobre a origem do homem e seu papel espiritual. Parece que o Conhecimento foi polvilhado sobre o mundo, cabendo ao homem o trabalho de reuni-lo num todo coeso, lembrando-se que do trabalho e do empenho nasce o mérito. Vá-se a uma livraria e na seção de livros sobre religião encontra-se um número cada vez maior de estudos sobre pontos comuns.

"Pontos comuns?" Como conciliar Politeísmo e Monoteísmo? Tentando entender que as primeiras imaginaram um ser para cada virtude ou qualidade, e as segundas, um ser com todas as qualidades ou virtudes. Entre os gregos, apesar da previsão de Zeus como pai de todos, havia Marte protegendo a guerra; Palas Atena, a deusa da Sabedoria; Afrodite, a divindade relacionada ao Amor. O cristianismo e o islamismo consolidaram a idéia judaica inicial de um só Deus. O catolicismo, contudo, vertente do primeiro, parece ter querido delegar Suas funções, transformando-se no que já foi chamado "politeísmo de um só Deus". Em Cidade de Deus ― o tratado teológico, não o romance ―, Santo Agostinho criticava aos romanos justamente por esta difusão da divindade, por esta troca de um Único Perfeito por uma infinidade humanizada.

Afinal, quem está certo, o monoteísta ou o politeísta? Ambos, pois buscam aquilo que está fora e acima de si. Um crê no Supremo Arquiteto do Universo ― para usar o vocativo caro aos maçons ―, seja Ele intermediado ou não por um santo, por um anjo, por um espírito de maior elevação. Sobre esta classificação maçônica, ela acaba nos levando de volta ao texto de Allan Kardec citado na epígrafe: não se concebe um plano arquitetônico sem um arquiteto. O acaso inteligente não é mais acaso. O Politeísta, por sua vez, crê num conjunto de divindades, e fatalmente elegerá uma de sua preferência que se tornará o seu Uno. O hinduísmo prevê uma tríade básica: Brahma criando, Vishnu conservando e Shiva destruindo. Os membros do Hare Krishna concentram-se em Vishnu, figura principal do Bhagavad Gita.

O que atualmente impressiona os sentidos do homem é a dificuldade. Como é que um islamita e um hindu se unirão um dia para celebrar um mesmo Criador? Como o ateu se colocará ao lado do espiritualista? Terá o animista que entender primeiro toda a sutileza teológica das religiões? Acredito no pensamento unificado, num ecumenismo de sentido, ainda que continuem variando as formas de culto. E é bom que variem, para que o umbandista continue à beira da praia ofertando à Iemanjá, o canto gregoriano continue repercutindo pelas catedrais, os muezzins anunciem das torres das mesquitas o momento de orar, os dervixes rodopiem e certos budistas continuem girando suas rodas de oração. Luís da Câmara Cascudo, em Civilização e Cultura, afirma que não existe cultura superior ou inferior, mas sim cultura suficiente. Adapto a lição e repito que não há religião melhor que a outra, mas sim aquela suficiente ao Espírito que escolhe e acolhe. Não há uma escala de um credo ao outro: quando os espíritos encontram-se na altitude, não importa qual foi o ponto de partida de cada um.

Caso haja um esforço para observar as coisas de um ponto mais alto, um local onde os nomes e ritos não importem, até o ateísmo encontra o seu papel, o de purgar os erros e os exageros do fanatismo. Derruba os castelos de areia do erro e da superstição, mas peca por não oferecer nada em troca, mesmo sabendo da inclinação humana para o que está acima de si. O ateu empedernido em simplesmente negar assemelha-se, em hilária imagem encontrada no Evangelho de Tomé, ao cachorro dormindo na manjedoura, que não vai comer a palha e mesmo assim não deixa os bois comerem. Como o ateísmo não é um corpo filosófico mais coeso e perfeito do que qualquer outro que já tenha surgido, acabam surgindo curiosas contradições, como a do ateu que cultiva o espírito.

As feridas causadas pelas perseguições religiosas ainda estão abertas. O massacre da noite de São Bartolomeu; a estúpida revogação do Édito de Nantes; a guerra entre hinduístas e muçulmanos, que culminou com a separação territorial e criação do Paquistão; a perseguição secular aos judeus; o papel da Inquisição; o atentado de 11 de setembro. Entretanto, não foi a Religião quem causou todos estes horrores, mas o orgulho e a arrogância de indivíduos, que mascararam seus interesses sob um véu de religiosidade, encontraram adeptos e levaram seus propósitos até às últimas conseqüências. Todo culto sistematizado possui, no mínimo, três variáveis: a dos iniciados, a dos comuns e a dos fanáticos. Por vezes não se encontra entendimento entre os representantes de cada variável, que dizer entre eles e os de outras crenças. O teólogo aflige-se com a tacanhice do devoto, o fanático implica-se com ambos e o ateu coloca a todos num balaio só.

Diz-se que religião não se discute. Afirmo que sim, deve-se discutir. Não para que um crente tente superar e converter o outro, mas para que ambos exercitem-se no conhecimento daquilo que crêem, encontrem suas próprias deficiências, aprendam supri-las e apresentem suas próprias convicções para o conhecimento alheio. Por outro lado, acredito que nos dias de hoje o que mais dignifica uma pessoa ― e por extensão, seu credo ― é o exemplo.

Que o ser humano tem naturalmente a inclinação pelo divino, isto é fora de dúvida. Que a ausência de uma crença afeta o indivíduo, isso parece claro. Tanto afeta que, descontentes com a ortodoxia, um grupo de gregos reivindicou perante os tribunais da Grécia o direito de cultuar os antigos deuses. Um dos números da revista Vida&Religião noticia a criação de uma igreja em que o deus cultuado é o jogador de futebol Maradona. Outro número da mesma revista fala sobre uma seita de origem francesa para a qual Jesus Cristo, Buda, Maomé e outras figuras importantes seriam enviados de extraterrestres com a missão de dirigir a Humanidade em certo sentido. O ateu apega-se à Ciência e parece não admitir que haja outra resposta além dela. Tal como a Sociologia afirma não existirem vácuos de poder, não me parece demais observar a inexistência de vácuos de fé.

Decorre disso que é inviável alcançar-se uma sociedade sem nenhuma moral religiosa. Acaso são as leis humanas, exclusivamente, eficientes contra a generalização do furto, do roubo, da malversação do patrimônio público? Serão a lei humana e a ciência que impedem, de forma definitiva, que o pai toque sua filha e a irmã tente envolver o irmão? Há fatos que repugnam por serem contrários à lei do homem, mas há outros que repugnam de forma a exceder o mero entendimento legal. Onde essa legislação extra-humana? A Ética não é a resposta suficiente, pois se o fosse, ou não seriam necessárias comissões governamentais ou profissionais de ética, ou seus ditames seriam atendidos assim que proferidos. Se a obediência a um ditame ético é imposto mediante coerção estatal, então deixamos de ter um princípio ético e chegamos a um artigo legal. Observe-se, inclusive, que diante da discussão sobre se estas leis vêm da Natureza ou são criadas pela Sociedade, e da necessidade urgente de se ter algo comum em que se basear, é que se chegou à elaboração dos chamados Direitos Humanos. "Seja necessidade natural ou social, o que importa é que queremos que todo indivíduo, seja de que país, sexo, religião ou opção política for, tenha direito à vida, ao respeito, à integridade etc". Não duvido que este seja um primeiro passo do ecumenismo de sentido mencionado acima.

Ricardo de Mattos
Taubaté, 20/3/2008

 

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