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Segunda-feira, 3/3/2008
Uma caixa grande demais
Marcos Visnadi

Em meados dos anos 1990, aos 70 anos, Odai Orimoto teve diagnosticados depressão e Mal de Alzheimer. Desde então seu filho Tatsumi, que há mais de 30 anos realiza performances no Japão e em vários outros lugares do mundo (São Paulo incluso), tem utilizado sua mãe como protagonista de suas fotografias e intervenções urbanas.

Genericamente chamado de Art Mama, o trabalho de Tatsumi Orimoto costuma causar riso ou indignação num primeiro momento. Em "Small Mama + Big Shoes", por exemplo, a pequena Sra. Orimoto tem de caminhar pelas ruas desertas de Kawasaki ou por um corredor polonês formado por fotógrafos e críticos de arte numa galeria em Tóquio utilizando enormes sapatos que a engolem até a metade das canelas. Em "In the big box", a velha é colocada dentro de uma enorme caixa de papelão no meio de sua sala de estar.

Travestida de um ridículo aparentemente nonsense, a imagem da Sra. Orimoto preenche praticamente metade da galeria do MASP, onde a Retrospectiva Tatsumi Orimoto permanece em cartaz até 6 de abril. Numa terça-feira à tarde, na semana seguinte à do carnaval, me pareceu que, embora a série Art Mama não difira essencialmente do resto da obra de Tatsumi, é diante dela que o público mais se detém, que os comentários surgem, que os dedos apontam, que as gargalhadas soam.

Tatsumi afirma que o propósito de Art Mama é o de estabelecer comunicação com sua mãe que, abatida pelo Alzheimer e ensurdecida pelos efeitos colaterais dos medicamentos que toma, se expressa cada vez menos e prefere passar seus dias deitada no tatame, vendo televisão. Com Art Mama, a intenção de Tatsumi Orimoto é tirar sua mãe da apatia e da reclusão e arrancá-la da invisibilidade social que acompanha sua doença e sua idade avançada. Art Mama, para ele, é o trabalho de valorização de uma vida.

Por que o ridículo, então? Por que expor sua mãe idosa em situações humilhantes, por que expô-la a risos ao redor do mundo?

Se as experimentações de Tatsumi melhoraram ou não a comunicação com sua mãe é coisa que interessa apenas a ele, a ela e talvez às demais pessoas que têm de lidar com o Alzheimer, seja em seus próprios corpos, seja nos de seus amigos, familiares ou pacientes. A nós, que vamos ao MASP nestes dias quentes de verão, Art Mama comunica alguma outra coisa.

A expressão emburrada da velha japonesa, imutável no decorrer das fotos, com suas bochechas caídas e gordas, suas muitas rugas e seus olhos indiferentes e algo cínicos contrapõe-se ao nosso riso algo sádico e, desprovida de inquisições, deixa aflorar espontaneamente aquilo que compõe o substrato do nosso modo de ver a velhice. Trazida para o centro da cena com um pneu de borracha enfiado na cabeça, ou nua durante o banho, a minúscula senhora nem de longe lembra a velhice saudável e sorridente que tem aparecido nos últimos anos, cada vez mais, como padrão de vida desejado por nós não só para nós mesmos, mas também, e principalmente, para os velhos e as velhas que nos cercam. Esse novo referencial de velhice tem resultado, no senso comum como no discurso médico especializado, na culpabilização das pessoas idosas pelas suas próprias dificuldades e infelicidades.

O olhar que dirigimos a Odai Orimoto é um olhar de surpresa frente a imagens que não correspondem ao nosso referencial imagético da velhice e, ao mesmo tempo, de satisfação por encontrarmos a velha esquisita e de cara fechada no lugar que lhe é devido: o do exótico e do risível.

No avesso do politicamente correto, as fotos de Tatsumi Orimoto não aparecem como uma tentativa bem-intencionada de sensibilizar o público para as agruras de uma velhice marginalizada; muito pelo contrário, Art Mama é, para nós, a evidência de uma alteridade que não pode senão permanecer como tal: alheia e estranha.

Estrangeira. A Retrospectiva Tatsumi Orimoto faz parte das comemorações pelos 100 anos da imigração japonesa no Brasil e é significativo que essas fotos venham justamente de uma cultura tida como valorizadora de seus idosos. Simultaneamente familiar e estranha, a cultura japonesa, assim como a velhice, escapa, com Tatsumi Orimoto, às nossas pretensões totalizantes.

Diz-se que Odai Orimoto é das maiores admiradoras do trabalho do filho e que gosta muito de participar das performances elaboradas por ele. Infelizmente, não pôde vir ao Brasil por recomendação médica, mas ainda assim Tatsumi abriu sua exposição com uma homenagem à velhice, servindo um jantar para 50 senhoras da comunidade nipo-brasileira. Vale ressaltar ainda que o artista já levou os experimentos de Art Mama para hospitais e centros de tratamento dedicados a pessoas com Alzheimer ou outras deficiências mentais. No Museu de Arte de São Paulo, no entanto, o trabalho de Tatsumi Orimoto provoca momentos de alegria e descontração principalmente para jovens cultos da capital paulista. No caixote refrigerado de Lina Bo Bardi, a caixa de papelão de Orimoto é uma opção lisa e divertida para uma tarde de verão.

Para ir além
O convívio social aos olhos de Tatsumi Orimoto

Marcos Visnadi
São Paulo, 3/3/2008

 

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