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Terça-feira, 25/3/2008 Erudição e humor na ficção de Ruy Castro Luis Eduardo Matta Há alguns meses, numa daquelas noites preguiçosas e indistintas ― comuns, creio, à rotina da maioria de nós, cujos traços o tempo se incumbe de diluir no breu do esquecimento ―, liguei a televisão, coisa que pouco tenho feito ultimamente, e, mudando aleatoriamente os canais, eis que me deparo com uma antiga chanchada da Atlântida, célebre produtora de cinema das décadas de 1940 a 1960. O filme, chamado Os dois ladrões, era estrelado pelo impagável Oscarito, que contracenava com Cyll Farney, Eva Todor e Ema D'Ávila, entre outros e, por meio de um enredo para lá de espirituoso, trazia ao público um divertidíssimo festival de uma irreverência, ao mesmo tempo, inteligente e ingênua; um humor espontâneo e agradável que é, a meu juízo, uma das características fundamentais da alma brasileira. Naquele momento me bateu fundo uma sensação de pesar, de como a arte e o entretenimento no Brasil foram se tornando, ao longo do tempo, pesados, demasiadamente racionais, preocupadíssimos com grandes questões, sem contar, é claro, a baixaria, a futilidade, a vulgaridade, a volúpia da ignorância e a indulgência exagerada e promíscua que tomaram de assalto boa parte dos nossos canais de comunicação, a começar pela televisão comercial aberta. E fiquei me perguntando, entre uma e outra gargalhada provocadas pelas caretas e trejeitos de Oscarito: como pudemos perder tudo isso? É bom que fique claro: como já tive a oportunidade de reiterar em textos anteriores, não milito na ala dos saudosistas. Não acredito, como muitos, que estejamos vivendo a pior das épocas e tampouco me sensibilizo com as lágrimas de crocodilo daqueles que, apegados a um passado idealizado, pregam um retorno a uma simplicidade romântica e arcaica que, crêem, é "redentora". Do mesmo modo, apesar de não ser um servo da tecnologia, a ponto de, ainda hoje, continuar a ouvir LPs, fitas cassetes, escrever à mão e nunca ter tido a curiosidade de adquirir uma câmera fotográfica digital, dou um imenso valor aos avanços tecnológicos, como a internet, que, em muitos casos, tornou nossas vidas mais práticas e ágeis. Ao mencionar Oscarito e os filmes satíricos dos quais ele participava, me referi tão somente a um tipo de humor ingênuo, típico da nossa brasilidade, que parece ter caído em desuso numa época em que até os escritores de telenovelas se sentem na obrigação cívica de discutir temas "sérios" em suas tramas, sob pena de parecerem alienados e frívolos. Sendo que, em grande parte das vezes, tal discussão não passa de um verniz ordinário e mal-aplicado que, já no décimo ou vigésimo capítulo, começa a descascar revelando o quase vazio existente por trás. Na literatura, essa síndrome dá mostras de ser ainda mais intensa, e o humor, salvo exceções, tornou-se uma raridade num território aparentemente dominado cada vez mais por uma busca meio alucinada e narcísica pelo brilho estético, pelo culto ideológico à violência, por uma erudição oca, pela obsessão de reproduzir o "sórdido mundo real", pelo niilismo raso e ensaiado de butique (ou de boteco), por um desencanto hype pela realidade, por um desejo incontido e um tanto infantil de parecer transgressor, numa época em que todas as normas já foram devidamente subvertidas e em que este termo pouco ou nada tem de significativo ou impactante... A lista é extensa. Em circunstâncias assim, o riso ― uma vez alijado de seu assento no ambiente, digamos, letrado ― acaba encontrando refúgio nas vozes intelectualmente menos sofisticadas, sobretudo na TV, o que tem se traduzido em manifestações grotescas e baixas de um "pseudo-humor", uma versão desfigurada do riso, que se vale de expedientes torpes e apelativos para arrancar risadas fáceis de uma audiência estupidificada e, com isso, garantir a afluência de anúncios e merchandising. Contudo, verifico que, felizmente, tem havido no Brasil ilhas de resistência a essa mentalidade. Ilhas que se manifestam por meio do talento e das idéias de alguns de nossos escritores, intelectuais, jornalistas e internautas. São pessoas dotadas de consistente massa encefálica, que enxergam no humor, mais do que um eficiente instrumento para denunciar a realidade de forma certeira e mordaz, o estilo ideal para narrar um fato, compor uma crônica, ou mesmo conduzir um romance. É o caso, por exemplo, de João Ubaldo Ribeiro, em livros como Crônicas de um brasileiro em Berlim; de Jorge Amado em seu Farda, fardão, camisola de dormir; e de Campos de Carvalho em suas Cartas de viagem e outras crônicas, publicadas, em 2006, pela José Olympio. É o caso de vários artigos de Fausto Wolff e de Olavo de Carvalho (de cujas idéias, tanto de um quanto de outro, discordo em boa medida sem, contudo, deixar de reconhecer seu valor, sua inteligência, e seu senso de humor e de, a despeito de alguns percalços recentes, admirá-los por isso). E é, também, o caso de um outro brasileiro, respeitável e boa praça, que tive a satisfação de conhecer pessoalmente há poucos meses, consagrado no jornalismo e na redação de preciosos livros documentais e que, nos últimos anos, vêm, disfarçadamente, dando, com indiscutível êxito, seus primeiros passos na prosa de ficção: Ruy Castro. Ao longo das últimas quase duas décadas, desde a publicação, em 1990, do livro Chega de saudade, que revive os anos dourados do surgimento da Bossa Nova (obra, por sinal, obrigatória para todos que amamos a música popular brasileira, neste ano de 2008, quando a Bossa Nova comemora meio-século), o nome de Ruy Castro esteve fortemente associado às biografias que escreveu, como as de Nelson Rodrigues, Carmen Miranda e Mané Garrincha, tendo sido esta última, durante anos, objeto de uma ruidosa polêmica entre o escritor e os herdeiros do "anjo de pernas tortas". Agora, a pouco conhecida vertente ficcional de Ruy Castro começa a se consolidar, como nos demonstra dois livros publicados por ele recentemente: a novela policial Bilac vê estrelas (Companhia das Letras, 2000, 152 págs.) e o romance Era no tempo do rei (Alfaguara, 2007, 248 págs.), que, aliás, mencionei na minha relação de leituras marcantes de 2007. Li, certa vez, uma crônica de Sérgio Cabral (o pai), onde ele dava uma definição perfeita dos moradores do Rio: a de que toda a população da cidade é formada por cariocas, sendo que alguns até nasceram aqui. Ruy, natural de Caratinga, Minas Gerais, assim como seu conterrâneo Ziraldo, adotou o Rio e tornou-se, como poucos, um ardoroso defensor da "carioquice", além de um dos grandes estudiosos da história da cidade e da sua cultura. Numa recente confraternização à qual compareci às vésperas do Carnaval no belíssimo Instituto Cultural Cravo Albin, aos pés do Morro da Urca, numa inacreditável noite fria, nublada e chuvosa em pleno verão, encontrei ― parafraseando Pilar Fazito nesta crônica sobre o último réveillon ―, algo que, até então, julgava impossível: cariocas ainda mais apaixonados pelo Rio do que eu. Uma gente culta, simpática, alegre e bacana, como Ricardo Moraes (um dos patronos da célebre Banda da Rua do Mercado, que traduz a essência do legítimo Carnaval do Rio de Janeiro), Ricardo Cravo Albin (mentor e presidente do instituto, que me presenteou com seu excelente e comovente Tons e sons do Rio de Janeiro de São Sebastião, sobre a história da música popular carioca, que, por sinal, estou lendo neste momento) e, é claro, Ruy Castro. Ruy, assim como Moraes e Cravo Albin ― e, permitam-me o atrevimento, eu também ―, é daqueles cariocas que valorizam a cidade como um todo e não apenas o seu aspecto turístico, embalado pelo velho clichê das praias e belezas naturais. É algo que falta às pessoas. Pois o Rio não é só praia, nem natureza. O Rio é também cultura ― popular e erudita ―, é história, é patrimônio arquitetônico, é o art déco do Lido, é o barroco do Mosteiro de São Bento, é o Morro da Conceição, é a austeridade neoclássica do Teatro Municipal vizinha à irreverência do Cordão do Bola Preta ― que, aliás, mudou, recentemente de endereço ―, é o Filé à Oswaldo Aranha do Cosmopolita, é o Carnaval como alta manifestação cultural, é a herança perceptível de um Brasil arcaico e fascinante misturada a uma modernidade e a um cosmopolitismo transbordantes... O Rio é onde o Brasil se encontra e se redescobre. Portanto, compreender o Rio, seu povo e sua evolução histórica, é compreender a evolução do Brasil, suas contradições, suas virtudes, a essência dessa incrível mistura que é o nosso povo. O Brasil contém o Rio e o Rio contém o Brasil. É uma cidade que, mesmo depois de perder o posto de capital política, continua se sentindo o centro do país. Aqui, nenhum brasileiro é forasteiro. Todos são bem-vindos, todos são de casa. Não sei exatamente como Ruy Castro adquiriu essa percepção plural e abrangente em relação à cidade, mas é certo que o trabalho como historiador e biógrafo o levou a mergulhar em pesquisas sucessivas e, com isso, a compor um acervo documental respeitável. Ruy é, hoje, dono de uma biblioteca de cerca de vinte mil volumes ― dos quais quatro mil são sobre o Rio de Janeiro ― e freqüentador assíduo de livrarias e sebos da cidade, como o Elizart, na avenida Marechal Floriano. Todo esse trabalho de investigação histórica, é claro, deu ao escritor uma bagagem de conhecimento portentosa que acabou favorecendo a composição da sua literatura ficcional, toda ela cuidadosamente amparada em fatos históricos os quais, nos momentos certos, ele cirurgicamente manipula com admirável plasticidade, a fim de infiltrar neles suas tramas e dar-lhes a veracidade necessária para confundir os leitores e deixá-los em dúvida sobre o que, ali, é real e o que é produto da imaginação do autor. Em Era no tempo do rei, por exemplo, tem-se o encontro entre o jovem príncipe dom Pedro de Alcântara, futuro imperador dom Pedro I e Leonardo, o protagonista de Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida, obra-prima da literatura brasileira. O ousado mote central do livro já dá uma idéia de como ele é desenvolvido, uma vez que coloca lado a lado um importante nome da história e o protagonista de um clássico literário, os quais em Era no tempo do rei, se conhecem ainda adolescentes em pleno Carnaval de 1810, dois anos após a chegada da corte portuguesa ao Rio de Janeiro. Ruy Castro, provavelmente, valeu-se de uma pesquisa minuciosa sobre a vida de dom Pedro e a forma como Leonardo é descrito em Memórias de um sargento de milícias, para recriar esses dois personagens de maneira que soassem verossímeis, afinal ambos não são meras criações de Ruy. No decorrer da leitura, a narrativa nos transporta com maestria para o Rio de 1810, um vilarejo colonial que, da noite para o dia, havia-se convertido em sede do império português e passava por rápidas transformações, não apenas econômicas, urbanísticas e arquitetônicas, mas, sobretudo, nos costumes da população. Era um Rio que se abria para o mundo e deixava-se embriagar por um espírito cosmopolita, presente, por sinal, até os dias de hoje. Um dos fios condutores da trama é o medalhão real de dom Pedro, roubado durante uma armadilha preparada por um malandro, Calvoso. Este encontra o menino, bem vestido e com um vistoso anel num dos dedos, vagando por uma das ruelas nas imediações do Paço e, sem saber tratar-se do príncipe real, o convida a visitar um sobrado no beco do Telles, onde ficam os aposentos de Bárbara dos Prazeres, uma prostituta que, no livro (e não na vida real, conforme me confidenciou Ruy Castro) teria sido amante de dom João. Aos quarenta anos, Bárbara, segundo as impressões de Pedro, parece ter o dobro da idade e sua aparência é grotesca. Apavorado, o príncipe deixa os aposentos imediatamente após ter entrado e, na saída, se engalfinha numa briga com Calvoso e seu assecla, Fontainha. Consegue desvencilhar-se deles e, ao chegar à rua, é socorrido por Leonardo, que, por conhecer cada pedaço daquela cidade ainda estranha a Pedro, ajuda o príncipe a fugir e a se esconder de seus perseguidores. Só mais tarde Leonardo viria a descobrir que seu novo amigo era o herdeiro da Coroa. Em meio à trama, encaixada a ela de forma natural sem nenhum didatismo, há uma gama de informações e observações históricas que ajudam a compor de forma magistral o ambiente e a nos transportar para aquela época. Tais informações não são colocadas em excesso e parecem demonstrar que Ruy Castro soube calcular o que era importante e o que era dispensável para incrementar a narrativa. Nota-se que, do mesmo modo, Ruy teve o cuidado de reproduzir a linguagem da época, ainda que de forma simples e acessível, evitando palavras e expressões surgidas posteriormente. Algo semelhante ao que fez Rachel de Queiroz, em seu Memorial de Maria Moura, de 1992, cuja uma das fontes de consulta foi, segundo ela própria afirmou, justamente... Memórias de um sargento de milícias. O livro conta com um elenco de primeira, que vai do major Vidigal, o autoritário, temido e implacável chefe da polícia carioca, até o contra-almirante inglês Sir Sidney Smith, aliado de Carlota Joaquina nas pretensões dela de estabelecer, na Argentina, um trono espanhol no exílio, passando, é claro, pela família real e suas intrigas palacianas. Um dos grandes momentos do livro é o diálogo entre Leonardo e Vidigal, já nos capítulos finais, quando o menino conta que dom Pedro havia sido seqüestrado. Para atiçar os ânimos de Vidigal e persuadi-lo a ir libertar o amigo, Leonardo começa a inventar histórias que teria ouvido nas ruas, referentes à reputação e à virilidade do major. A reação de Vidigal, agredido no seu orgulho de macho e de homem da lei, vai numa tensão crescente até explodir num hilariante acesso de fúria. É esse espírito satírico mesclado com um preciosismo histórico que norteia, igualmente, a incursão anterior de Ruy Castro na ficção, Bilac vê estrelas, um dos títulos da coleção "Literatura ou morte" que a Companhia das Letras lançou por volta do ano 2000, onde escritores consagrados eram protagonistas de histórias policiais. A coleção, no geral, é fraca, mas um ou outro título se salva. É o caso de Bilac vê estrelas. Neste livro, ambientado em 1903, no lugar de dom João, dom Pedro, Vidigal e Bárbara dos Prazeres, temos Olavo Bilac (que empresta o nome ao título), José do Patrocínio, Santos-Dumont e até a princesa Isabel, no exílio em Paris. E toda a intriga se arma em torno do dirigível, o Santa Cruz, que José do Patrocínio estava construindo num barracão no subúrbio carioca de Todos os Santos. Durante uma viagem de Bilac a Paris, a notícia chega ao conhecimento de Deschamps e Valcroze, dois muito mal-intencionados aeronautas franceses, que contratam uma bela e sensual espiã portuguesa, Eduarda Bandeira, para viajar ao Rio e apoderar-se das plantas do dirigível de Patrocínio. A idéia deles era construir um protótipo e leiloá-lo entre as potências estrangeiras, mas é óbvio que, graças a Bilac, o plano fracassa. Neste trabalho, Ruy Castro também revive com perfeição o Rio de antigamente ― no caso, o do começo do século XX ―, e a escolha do excêntrico poeta Olavo Bilac como protagonista não poderia ter sido mais acertada. Só a cena cômica em que Eduarda Bandeira tenta seduzir Bilac à força (e em vão) entrando furtivamente no quarto dele na calada da noite já vale a leitura de todo o livro. Do mesmo modo, ficamos sabendo detalhes curiosos do passado, como o acidente em que Bilac se envolveu guiando um carro de Patrocínio ― no que teria sido a primeira (de muitas) batida de automóvel da história do Brasil ―, sem contar o fato de que Patrocínio realmente se empenhou na construção de um balão, fato que eu próprio desconhecia. Novamente a realidade histórica se mescla com a ficção e, novamente, a cidade do Rio, mais do que um cenário, aparece como personagem ativo e essencial da trama, ainda que Bilac vê estrelas tenha cenas, também, em Paris e Lisboa. Se, no começo desse artigo, mencionei as antigas chanchadas, foi porque a leitura desses dois trabalhos de Ruy Castro me remeteram ao que de melhor elas representaram. O riso inteligente, a sátira com conteúdo, o humor equilibrado que dosa erudição e escracho na medida certa andam escassos por aqui. E isso, num país que sempre teve no humor um dos seus pilares essenciais, é um sintoma grave, senão de perda, de desleixo com a própria identidade. Hoje em dia a literatura ambientada no Rio de Janeiro parece contaminada pelas manchetes da imprensa e transborda de sangue, escatologia e rancor, numa ótica torta e apenas parcial da nossa realidade. Por isso, a literatura de Ruy Castro é importante: porque se incumbe de manter viva a chama da boa gaiatice, do riso saudável e gregário, que é uma marca dos brasileiros. Eu não iria tão longe a ponto de definir esses dois livros como chanchadas literárias, pois isso seria talvez reduzi-los a meras peças satíricas, o que não é o caso. Mas há neles uma inegável atmosfera picaresca que nos remete ao clima das velhas chanchadas e à sua alma deliciosamente carnavalesca, o que, somado a enredos que romanceiam momentos pontuais da história do Brasil, mostra que erudição não é sinônimo de sisudez. E que existe, sim, formas de se escrever, e bem, um romance histórico de uma forma onde a brejeirice da alma verde-amarela esteja fortemente presente, sem comprometer a inteligência, a fidelidade histórica e o ritmo narrativo. Uma lição para muita gente hoje em evidência, que, infelizmente, desconhece a essência do verdadeiro humor. Vida longa para a ficção de Ruy Castro. Para ir além Luis Eduardo Matta |
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