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Quarta-feira, 2/4/2008 Deus 3.0 Guilherme Pontes Coelho "Deus é justo juiz. Deus sente indignação todos os dias. Se o homem não se converter, afiará Deus a sua espada; já armou o arco, tem-no pronto; para ele preparou já instrumentos de morte, preparou suas setas inflamadas." (Salmo 7, versículos 11 e 12) Começo Não vejo, ultimamente, Deus por aí brandindo a espada flamejante, nem disparando flechas implacáveis contra ímpios ou crédulos. Há tempos, decretou aquele filósofo com ares de médico-legista, Deus está morto ― e tanto esta sentença quanto aquele cadáver viraram fetiches. Afirmar a morte do Criador rendeu um culto à Sua invisível imagem que se multiplica diariamente, com cada vez mais peculiares ― ou nem tanto ― templos, igrejas, fãs-clubes. A trindade que dominou a cultura e a contra-cultura no século passado (Freud, Marx e Nietzsche) saracoteou nos domínios do Senhor. Anunciaram Sua morte, O acusaram de vendedor de ópio e outras coisas impublicáveis. Depois de tamanha tour de force difamatória, o que vemos hoje, em relação a Ele, é uma espécie de Efeito Streisand: fora enterrado, floresceram (e florescem) cultos a Ele sobejamente. Numa comparação insólita, qual um Guevara. Antes de aquele alemão ter arrematado Sua morte, Voltaire aventou que "Se Ele não existisse, seria necessário inventá-Lo". É um espectro necessário. Muito já foi oferecido como razão de ser de tão intrigante entidade. Nós, todos nós, parecemos incapazes de viver com esse mistério divino. Desde que o mundo passou da fase de "trevas sobre a face do abismo" que há adorações a deuses. Mas, na prática, há impasses, pelo menos nas religiões abraâmicas, entre o Criador incriado e o homem que O criou. Ou o Sagrado e o homem. Deixemos em paz a flecharia divina e o etéreo rebolo onde Deus afia sua lâmina. Falemos de figuras tangíveis. Falemos dos fãs, seguidores, detratores. Nós, enfim, que recorremos a Ele para justiça, felicidade, verdade. Meios Enquanto houver humanos sobre o planeta, Deus existirá, querendo Ele ou não, querendo o homem ou não, mesmo que Ele não exista. Embora a frase carregue tom terminante e meio cafona de sentença inabalável, ela não é dita por crédulo Nele; nem por um ateu resignado, engolindo a doses de ironia a crendice alheia. Um abstinente de Deus é quem o diz, e acha esta expressão mais adequada que agnóstico. A Deus (ou Sagrado, ou Insondável, ou o que você achar pertinente), sendo tão incomensurável, e à religião, mensurável por demais, este artigo só pode oferecer um ponto de vista ― o da experiência pessoal. Com acréscimos. Aqui, atrás deste notebook, há meia dúzia de estantes abarrotadas com livros; eles exibem na lombada nomes de sujeitos que nós admiramos, ou desgostamos, e que se preocuparam com esta questão tão espinhosa, Deus, cada um à sua maneira. Vejo Jung, Saramago, Darwin, Campbell, Kant, Tolstoi, e outros. Parecem ter ou achado o próprio caminho a Ele, ou provado que não há tal caminho, ou argumentando que é uma vereda para poucos. Mesmo com tão interessantes companhias, exceto Kant, continuo um abstinente de Deus. Vejamos. "Quer ser batizado, filho? Aceita a Jesus?" ― ouvi isso da minha mãe, aos 12 anos. Cansado da igreja batista, não aceitei a Jesus e pedi pra sair. Naquela igreja havia de tudo, menos Ele. Troquei o Novo Testamento por vinis do Burzum. Mas de lá pra cá houve aproximações com o Sagrado, em várias formas, não apenas cristã. Com Deus lato sensu, o Insondável, em suma. Umas aproximações breves, outras nem tanto. O adeus à igreja batista foi seguido por uma obsessiva fixação em satanismo, influenciada pelo tal Inner Circle escandinavo, as bandas Burzum, Dark Throne, Mayhem. Na distante Recife sem internet de 1992, do satanismo só me chegaram às mãos um livro de Eliphas Levy, outro de Aleister Crowley e um rascunho com o endereço de uma Igreja do Diabo no Brasil, noutro estado. Era uma coisa inacessível a um imberbe sem a rede mundial. Nunca mais voltei a esta febre satanista, a ansiedade adolescente cuidou que me decepcionasse rápido. O curioso é que esta decepcionante procura começou com a decepção na igreja do Senhor. Cinco anos depois, de tanto ouvir um tio falar em O Tao da Física, o Oriente me apareceu. Adquiri o livro do Capra e por esta via ambígua os "ismos" orientais ficaram atraentes. Até então, só dava crédito ao Oriente no que envolvesse tatames. Uma vez, saindo da academia, um colega argentino, afobadíssimo, me abordou prometendo o céu. Tinha uma coisa muito boa pra me oferecer. Mencionou algo a ver com budismo. Insistiu, me ligou dias seguidos; cedi. Fomos a um encontro do grupo budista. Que foi numa casa de bairro nobre, com várias grifes automobilísticas estacionadas. Chegamos e os trabalhos começaram. Um senhor de cabeça branca, muito parecido com Sidney Poitier, sentado em frente a um altar, liderou os cantos. No altar, ideogramas japoneses e uma pequena escultura nipônica; nos cantos, uma leitura ininterrupta do livreto litúrgico. Uma demorada e penetrante leitura. Ao final, depois de breves ritos orais, os adeptos, a seu bel-prazer, iam ao proscênio e narravam aos demais como a prática do Nitiren Daishonin ajudara suas vidas. Emprego, dinheiro, família ― tudo melhorou. Em seguida, os neófitos se apresentavam e apontavam seus "padrinhos". O proselitismo lembrava protestantismo pentecostal. Cheguei a perguntar ao colega argentino se era sempre assim: "É así mismo, Guije". Ainda houve uma pequena degustação de petiscos com refrigerante. A peculiaridade deste budismo não foi bem digerida. Mas a simpatia pelas filosofias orientais permaneceu. Simpatia. O tempo passou e me vi simpático à umbanda. Razões tive para estar ali: religiosidade made in Brazil, cultos alegres, a namorada (com quem me "juntei", sem cerimônia religiosa nem civil, e com quem tenho bela filha, que, como eu, não foi batizada e terá o direito de escolher sua própria religião). Por maior que fosse o entusiasmo no terreiro, soava estranho entre um canto e outro haver Pai-Nosso, Ave-Maria, Salve-Rainha. Nosso sincretismo não é captado por incautos cartesianos. Antes, os senhores de chicote na mão e as figuras eclesiais impingiam aos escravos o culto a um São Jorge. O escravo via naquele santo seu Ogum ― fez-se o amálgama religioso. Embora o trabalho escravo ainda seja uma infeliz realidade, há a liberdade de culto. Não entendi por que não desfizeram a junta sincrética. Ela arraigou-se, contudo. É o que é e é bela. Tenho afeição e respeito ao terreiro, apenas. Sincretismo, e no Brasil esse não é o único tipo; práticas budistas reinterpretadas à ocidental; igrejas de Cristo que se perdem no caminho; religiões por moda. Diluições. Continuemos. Atualizações Uma coisa que não gostaria de ter conhecido, e concordado, foi com o "desencantamento do mundo", como Weber colocou (citar isso hoje é clichê, eu sei). A racionalidade ocidental, e não sei se permanece somente ocidental, me diga você, acabou com a "magia". Que o mundo ficou mais racional no que se refere à geração e à aplicação dos meios (meios, claro) tecnológicos, é evidente. A ciência tem feito e acontecido, estamos cada vez mais próximos do demiurgo platônico, é só perceber a situação ambiental... A máquina drenando a beleza da vida, purgando o humano de sua casa natural, a espiritualidade escoando etc. etc. Acabou o encanto. Mas há tentativas de desfibrilação. Cientologia, por exemplo. Dos casamentos da religião e do Sagrado, os com a ciência ou filosofia são os mais pitorescos. A filosofia grega, especificamente Platão e Aristóteles, serem absorvidos pelos teólogos medievais pode parecer a algum atemporal helenista algo obtuso, mas isso tem tanto tempo e já foi assimilado. Cientistas terem hábitos religiosos privados, ou religiosos terem ao menos tolerância à ciência, são posturas assimiláveis, compreensíveis e até respeitáveis. Mas religião com ciência casando, assim ostensivamente, é coisa que demanda depurada análise ou, somos falíveis, sumário julgamento preconceituoso. A cientologia tem sofrido ambos. Só os convertidos lhe tecem elogios. Aqui no Brasil há pelo menos quinze mil pessoas felizes com a cientologia. "Felizes"? É, felizes. "Não é por felicidade eterna e justiça que a religião, acorrentando a si um deus ou uma noção do Sagrado, é aceita pelo próprio indivíduo como sua verdade?" ― perguntaram a mim certa vez. Enfim, vestiram o Sagrado com roupas científicas, venderam-no como auto-ajuda, compraram-no como Verdade. Nós, ocidentais, herdeiros da racionalidade grega, dos aparatos jurídico e militar romanos, da moralidade judaico-cristã, estamos vendo estes pilares se dissolvendo, mesclando-se uns aos outros e com mais coisas que têm vindo da banda oriental do globo. Irrefreável globalização. E nós, brasileiros, já temos extremos (desigualdades) e confluentes (sincretismos) demais. Cenário dos mais interessantes. Chegamos à "modernidade líquida". Aquilo que Zygmunt Bauman tanto nos tem falado. Afrouxamento do pensar que ergue instituições, engendra a sociedade e a assim apelidada aldeia global. Misturas, divisões, paralelismos; convicções descartáveis, recicláveis, prontas ao uso imediato. É inegável reconhecer que são tempos, digamos, especiais. Melhor dizendo, são tempos líquidos. Não basta fechar os olhos, inspirar fundo e intuir o Sagrado lá onde nem mesmo você vai, mas de onde lhe vem aquilo inominável. Nada disso, a tal "coisa lá do fundo" tem de dar resultado imediato, pronto, visível, certo e líquido. Deus passou por vários upgrades. Guilherme Pontes Coelho |
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