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Quarta-feira, 26/3/2008
Sobre o som e a fúria
Guga Schultze

No dia do seu aniversário, quando completa trinta e três anos de idade, Benjamin Compson caminha ao longo da cerca que separa os terrenos da velha mansão Compson do campo de golfe. Acompanhando Benjamin está um adolescente negro, Luster, encarregado de tomar conta dele e distraí-lo, dentro do possível, porque Benjamin é um deficiente mental.

O campo de golfe ocupa agora o antigo pasto, que pertenceu aos Compson. Supomos que havia, em outros tempos, alguma criação bovina, ou eqüina; ou seja, outros animais além dos membros da família. Da "sólida milha quadrada de terra" dos Compson resta, agora, apenas o terreno que circunda a velha mansão.

Benjamin segue os jogadores, caminhando rente à cerca, às vezes chorando, às vezes emitindo um som desarticulado, um lamento quase impessoal. Mas não está interessado no jogo, que nem sequer compreende; nem nas pequenas bolas brancas que caem por ali ocasionalmente e que Luster procura e recolhe, para negociar com elas depois. Benjy quer apenas ouvir uma palavra, que os jogadores gritam esporadicamente, chamando os empregados encarregados de buscar as bolas lançadas: "Caddie! Aqui, caddie!"

Benjamin procura pelo som dessa palavra, que o vento traz do campo de golfe até o outro lado da cerca, onde ele está. Porque nessa palavra ele ouve um nome, que foi proibido em sua própria casa: o apelido de sua irmã, Candace Compson, ou Caddy, a única pessoa que ele alguma vez amou, e que foi embora, para nunca mais voltar. Dentro da névoa espessa de sua idiotice incurável, o nome de sua irmã dispara as lembranças, desde quando eram ainda crianças, quando ela ainda estava junto a ele, para mimá-lo e protegê-lo. Benjamin não pode sequer lembrar-se dela por si mesmo, e precisa ouvir o som do seu nome para recordar. Por isso ele segue os jogadores, ao longo da cerca, e a cada vez que gritam "caddie", uma série de memórias, espocando como flashes, ocupam seu vazio interior.

O dia é 7 de abril de 1928, numa região rural de Jefferson, uma cidade imaginária do Mississippi, sul dos Estados Unidos, e essa é a abertura do romance de William Faulkner, O Som e a Fúria (Cosac&Naify, 2004, 332 págs.).

No final dos anos vinte, Faulkner havia se retirado para sua pequena fazenda, também no Mississippi, e dedicava-se a escrever, quase que exclusivamente. Parte de sua melhor produção vem dessa época, em que esteve isolado e dedicando-se a exorcisar seu "demônio interior", conforme suas palavras, na célebre entrevista que concedeu à Paris Review, em Nova York, 1956, quando já era o conhecido ganhador do prêmio Nobel de literatura de 1949.

"... o único ambiente de que o artista necessita é qualquer lugar onde possa obter paz, solidão e prazer a um preço não muito alto".

"... as únicas ferramentas que preciso para meu ofício são papel, tabaco, comida e um pouco de uísque".

Considerado por muitos como sua obra capital, o romance O Som e a Fúria foi também o mais difícil para o próprio autor. Faulkner confessa que tentou contar a história de várias formas, de vários ângulos e perspectivas, e que o resultado final ainda estava longe de ser satisfatório para ele mesmo. O livro se compõe de cinco partes distintas. As três primeiras são narradas por três dos principais personagens. Três dos irmãos Compson, respectivamente: Benjamin, o deficiente mental; Quentin Compson, estudante em Harvard e cujos estudos, interrompidos porque Quentin comete suicídio, foram custeados pela venda das terras da família; e Jason Compson, o último e frio solteirão. A quarta parte, narrada em terceira pessoa, focaliza melhor a velha empregada negra da família, Dilsey. E finalmente um apêndice, relativamente extenso, onde a genealogia dos Compson é descrita como um pequeno romance em si mesma.

Percebemos algumas coisas essenciais da história na medida em que lemos e conseguimos extrair algumas informações valiosas:

Benjamin foi batizado com o nome de Maury, o mesmo de um tio seu, mas trocaram seu nome quando sua mãe percebeu o que ele era. Foi castrado quando, aparentemente, ameaçou sexualmente alguma menina que passava em frente ao portão dos Compson.

Candace, ou Caddy, como a chamavam, tinha um espírito impetuoso, mas arruinou um bom casamento porque estava grávida de outro homem. Foi expulsa pelo marido e banida por sua própria mãe, que proibiu que seu nome fosse pronunciado em casa.

Quentin, o outro irmão, também a amava, mas incestuosamente. Suicidou-se em Harvard, depois do primeiro ano, provavelmente porque não pode suportar seu amor impossível.

A filha de Caddy ganhou seu nome antes mesmo que Caddy soubesse o sexo da criança e chamava-se Quentin, o mesmo nome de seu tio suicida. Caddy a entregou, ainda um bebê, aos cuidados da família, que se resumia agora na velha mãe, sempre doente, a empregada Dilsey e seus dois irmãos restantes, Benjy e Jason.

Jason Compson era frio, calculista e relativamente cruel. Trabalhava num armazém, administrava os escassos recursos da família e roubava de sua sobrinha a pensão que Caddy enviava para o sustento dela. Aos dezessete anos de idade, a menina Quentin, quebrando o vidro da janela do quarto de Jason, seu tio odiado, arromba a pequena caixa que continha quase sete mil dólares, penosamente acumulados ao longo de vinte anos, e foge, com um empregado de um circo que estava na cidade.

Depois da morte de sua mãe, Jason entrega seu irmão a um asilo de loucos em outra cidade, dispensa a velha Dilsey e vende a mansão, indo morar na parte urbana de Jefferson, onde monta um apartamento acima do seu local de trabalho, um armazém onde agora é o único proprietário.

Nenhum desses acontecimentos está explicitamente descrito, o que existe são alusões, frases ditas aqui e ali pelos personagens envolvidos e o leitor tem, obrigatoriamente, que montar as peças e formar o quadro geral.

Se foi um livro difícil para o próprio autor, o que dizer para quem lê. Não é um livro fácil e Faulkner, como sempre, se recusa terminantemente a fazer quaisquer concessões, ou a estabelecer, minimamente, uma cumplicidade com o leitor. Este precisa deduzir grande parte da história, sintonizar sua intimidade através da intimidade intensa que os personagens apresentam com o drama e da qual, ele, o leitor, está ausente. É uma característica do texto faulkneriano, a imposição de uma visão particular ― no caso, a visão dos personagens ―, em detrimento de uma visão mais ampla, ou mais generosa, da história como um todo. Uma visão míope, mas apenas no sentido em que Faulkner escreve como se pegasse o leitor pelo pescoço e o obrigasse a um mergulho de cabeça, uma proximidade extrema com o fio condutor da narrativa, com o relevo complexo da história. Uma árvore onde a visão corre folha por folha, sem vislumbrar a árvore como um todo. Um cinema de ação psicológica intensa, feito só de close-ups.

A maior parte da crítica admite Faulkner como sendo um dos escritores capitais da língua inglesa, pelo menos do século XX. Mas críticos são leitores, antes de mais nada, e é preciso quase uma vocação especial por criptografia para desenrolar o denso novelo, a densa novela, decifrando as paredes escuras do labirinto com a luz da única vela que Faulkner deixa à disposição do leitor, ou seja, sua hábil retórica absolutista. Sem ela para costurar todos os vácuos, não haveria sequer a possibilidade de perceber o texto como o romance grandioso que é.

É fácil identificar as raízes de muitas outras obras literárias; autores que beberam na fonte do imaginário de Faulkner, ou devem a ele o impulso para suas próprias criações. Nesse ponto, Faulkner se mostra como o minotauro em seu próprio labirinto, uma presença silenciosa capaz de transformar esse labirinto, entre tantos outros labirintos artificiais da literatura, num lugar inesquecível para quem nele se aventurar.

Faulkner também encarna a figura mítica, ou romântica, como querem alguns, do escritor completamente envolvido com sua arte. É geralmente considerado como "um escritor americano sulista" mas, seja o que for que isso signifique, é um reducionismo. Seu romance poderia ser facilmente transplantado para o Uruguai ou para a Islândia, com as devidas adaptações. É um dramalhão, no sentido de ser grande, de ocupar, sem folga, um espaço limitado em alguns poucos dias; pesado como a marreta de um pedreiro, demolindo um muro de convenções sociais. Na entrevista da Paris Review, deixa seu recado para as futuras gerações de escrevinhadores:

"O escritor não precisa de liberdade econômica. Tudo de que precisa é lápis e papel. Eu nunca soube que algo bom em literatura tivesse se originado da aceitação de uma oferta gratuita de dinheiro. O bom escritor nunca pede auxílio a uma instituição cultural. Está ocupado demais, escrevendo alguma coisa".

Não é uma história agradável e, nesse ponto, lamento o fato de Faulkner ser mais uma voz vinda do inferno, na literatura. Mas é uma voz muito poderosa, quase hipnótica. Em toda literatura não existe, que eu saiba, uma abertura mais pungente, ou mais bela em sua dramaticidade perturbadora do que a desse romance, O Som e a Fúria. É uma opinião pessoal, é claro. Mas posso afirmar isso com certa tranqüilidade, porque sei que é muito difícil provar o contrário. Encontramos em Shakespeare (Macbeth, cena cinco) a origem do título e algo da gênese dessa mesma abertura:

"Life's but a walking shadow, a poor player
That struts and frets his hour upon the stage
And then is heard no more: it is a tale
Told by an idiot, full of sound and fury,
Signifying nothing."


Que, numa tradução bastante livre, seria algo como:

"A vida é só um vulto, um pobre ator, que se pavoneia e choraminga num momento, sobre o palco, e depois não é mais ouvido. É uma fábula, contada por um idiota, cheia de som e de fúria, significando nada".

Mas para a literatura, o nada pode ser quase tudo.

Para ir além





Guga Schultze
Belo Horizonte, 26/3/2008

 

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