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Terça-feira, 8/4/2008
Voz de um passado presente
Daniel Lopes

"Diz que três ou quatro órfãs engravidavam na noite de devoção à Virgem."

Momentos assim de ironia são exceção em Órfãos do Eldorado (Companhia das Letras, 2008, 112 págs.). A bem da verdade, só consegui captar essa frase, que, coitada, quase tem de pedir desculpa por existir no meio de um livro de temática tão sombria.

Obra de um escritor sem pressa, Órfãos... é a quarta ficção do amazonense Milton Hatoum. De uma forma geral, vários dos temas levantados por essa novela já apareceram com mais intensidade em Cinzas do Norte, de 2005, seu melhor livro. Por exemplo: a decadência de uma família lado a lado com a decadência de uma era; a degradação da vida indígena e a indiferença que ela suscita em todos, de turistas a funcionários públicos; o filho arredio, fonte de frustração permanente para um pai que o sonhava continuador dos negócios da família.

No Cinzas..., esse menino rebelde responde por Mundo, de Raimundo. O pai, por Trajano Mattoso, um rico comerciante mancomunado com a Ditadura, ou pelo menos com o braço da Ditadura que pretendeu levar a civilização à Amazônia ― quer dizer, a civilização à brasileira sendo levada à brasileira. Em Órfãos..., é Arminto quem não corresponde às expectativas de seu pai Amando, que por sua vez é filho de Edílio. Essa é a base da família Cordovil, pequena e tradicional. Milton situa temporalmente esse novo enredo no que vai da ascensão à queda do período de expansão na Amazônia do negócio da borracha, durante a primeira metade do século passado.

Nesse universo sócio-econômico é que Edílio ― avô do narrador Arminto, famoso também por ter abusado de mulheres ― iniciara a ventura familiar ainda no século XIX, ao tornar-se senhor de terras e esmagar sem dó revoltas de índios e caboclos desarmados. Seu filho Amando pensou até em escrever uma obra sobre o pai, a se chamar "Façanhas de um civilizador", mas, com os dias sempre ocupados em exportar borracha para o primeiro mundo, nunca lhe sobrou tempo para tal empreitada.

Como ficamos sabendo apenas no finalzinho da obra, Arminto, já velho e miserável, conta (contou) sua história a algum visitante casual:

"Ninguém quis ouvir essa história. Por isso as pessoas pensam que ainda moro sozinho, eu e minha voz de doido. Aí tu entraste para descansar na sombra do jatobá, pediste água e tiveste paciência para ouvir um velho. Foi um alívio expulsar esse fogo da alma. A gente não respira no que fala? Contar ou cantar não apaga nossa dor?"

Daí a oralidade presente em cada linha da novela, como se as palavras estivessem no ar e não no papel. Li com a voracidade com que havia lido outras duas pequenas e geniais criações literárias, o Bartleby de Melville, e Amy Foster, do Conrad. Não podia ter sido de outro jeito.

Assim que pisam na capital do Amazonas, vindos da cidadezinha de Vila Bela, Amando manda o filho para uma pensão, longe de si e de Florita, agregada da família, exatamente como uma punição por ter surpreendido, certa noite, o filho na rede com Florita.

Poderia ter sido, a estadia de Arminto na pensão ― deveria ter sido, segundo o plano paterno ―, o caminho do arrependimento e da remissão, mas acabou sendo mesmo foi a porta de entrada do protagonista na vida boêmia, que divide sua atenção e suas energias de maneira muito desmesurada com a recém-iniciada vida acadêmica.

A energia dispersa em vários bares e cabarés concentra-se enfim quando aparece um alvo digno: Dinaura, moça de origem índia, órfã e interna do Sagrado Coração de Jesus. Essa menina de pouquíssimas palavras e gestos furtivos (ainda que tenha uma torrencial cena de amor com Arminto), guarda, claro, um grande segredo no passado. Segredo este que está diretamente ligado à morte de Amando, por ataque cardíaco, no meio de uma praça e nos braços do filho. A propósito, foi no velório do pai que Arminto viu Dinaura pela primeira vez, e se surpreendeu atraído por sua mirada: "Às vezes um olhar tem a força do desejo".

A madre superiora do orfanato, que levara as moças ao velório de Amando em consideração às doações que este fizera à instituição, permite a Dinaura sair para encontrar-se com Arminto aos sábados à tarde. E só. A disciplina, os horários, são rígidos. Assim, por muito tempo o único dia que valia mesmo a pena ser vivido para Arminto era o sábado, verdadeiro dia sagrado: "Esperava com ânsia o sábado seguinte", ouvimos à sombra do jatobá, "e me rendia ao olhar de um rosto calado".

Com a cabeça mergulhada no corpo e nos enigmas de Dinaura, Arminto negligencia cada vez mais suas responsabilidades para com a empresa de exportação herdada. Nem mesmo abre os telegramas que lhe chegam da gerência em Manaus, rasgando-os tão logo os tem em mãos, impaciente, inábil com o lado prático da vida.

Mas após entregar-se ao namorado numa noite chuvosa, de forma súbita a órfã Dinaura recolhe-se para um mês do mais completo isolamento, por decisão própria. E um mês é o que basta para Arminto embarcar para Manaus e tentar resolver graves problemas financeiros que apareceram por decorrência do naufrágio de uma embarcação de carga, lotada na ocasião. O acidente o obriga a vender vários dos bens da empresa, além de objetos de valor pessoal ― piano, porcelanas, anéis que pertenceram à mãe.

Acontece que naquelas alturas, mesmo sem um acidente grave no meio do caminho, de uma forma ou de outra a empresa que Arminto fora forçado a administrar iria fechar as portas. O Eldorado amazônico de extração e exportação estava com os dias contados. "Uns anos antes da morte do meu pai", relembra Arminto, "as pessoas só falavam em crescimento. Manaus, a exportação de borracha, o emprego, o comércio, o turismo, tudo crescia. Até a prostituição". E então, anos depois, numa tour pelas ruas de Manaus, a constatação de que o progresso cobrara seu preço:

"Andei de bonde pela cidade, vi palafitas e casebres no subúrbio e na beira dos igarapés do centro, e acampamentos onde dormiam ex-seringueiros; vi crianças ser enxotadas quando tentavam catar comida ou esmolar na calçada do botequim Alegre, da Fábrica de Alimentos Italiana e dos restaurantes. A cadeia de Sete de Setembro estava lotada, vários sobrados e lojas à venda."

E esse retrato do sistema prisional:

"Quando entrei na cadeia púbica, desisti de qualquer justiça. O edifício, uma pocilga; e os carcereiros, uns miseráveis: pareciam mais condenados que os detentos."

Decadência alavancada pela Guerra Mundial nociva ao comércio da borracha, bem como pelo novo plantio de seringueiras no continente asiático, séria ameaça à soberania brasileira no ramo. Decadência no meio da qual pais índios vendem suas filhas crianças por míseros trocados; vendem mesmo, sem espaço para metáfora, é beijo e adeus. E os turistas com isso? Em busca do exótico na miséria, nunca o contrário, eles não "queriam conversar, e sim fotografar".

A figura de Arminto é uma das mais interessantes da literatura brasileira recente, e rivaliza até com o Mundo de Cinzas do Norte. Através dele e dos personagens-satélites temos noção ― sem qualquer discurso vazio, porque o que os olhos registram dizem o suficiente ― não apenas da incrível infelicidade de muitos que resultou da felicidade de poucos, mas também de um caráter aparentemente perpétuo do Norte-Nordeste brasileiro: os mitos. Órfãos do Eldorado, vale a pena informar, faz parte de uma coleção chamada... "Mitos". Nada das tintas exageradas do meramente folclórico, usado aqui em seu pior sentido, de manifestação pitoresca, estereotipada. Entre os homens e mulheres em volta de Arminto, a vida não precisa dar lugar às lendas, porque elas já compõem parte fundamental da vida. Evocar cidades sob rios, habitadas por almas, por exemplo, é tão natural quanto respirar. Muitas vezes, é lamentavelmente a única maneira de imaginar um mundo Bom em tudo averso ao vale de lágrimas do calvário amazônico de proporções amazônicas.

Dessa maneira, quando Arminto volta de Manaus para Vila Bela com a esperança de rever Dinaura, e descobre que esta sumiu do Sagrado Coração de Jesus, da cidade, talvez do mundo, começam a surgir hipóteses fantásticas sobre seu paradeiro:

"Uns diziam que Dinaura havia me abandonado por um sapo, um peixe grande, um boto ou uma cobra sucuri; outros sussurravam que ela aparecia à meia-noite num barco iluminado e dizia aos pescadores que não suportava viver na solidão do fundo do rio."

Porque o rio aqui, meus amigos, é o rio Amazonas. E o rio Amazonas é um mar de rio. Não é por acaso que no Norte há fantásticas histórias do "fundo do rio", como na Europa um dia houve (e em alguns pontos ainda há) os mistérios do "fundo do mar".

Sempre digo a amigos que considero Milton Hatoum altamente indicado e, mais que isso, obrigatório. Altamente indicado porque, além de ser sempre garantia de um excelente texto, é porta-voz (ou apenas a voz, se preferirem) de uma parte do Brasil que não se reduz às lendas, mas que não seria a mesma sem elas. E obrigatório, sim. Como não? Afinal de contas, as duas maiores tragédias do sul brasileiro são 1) não saber nada do restante do país e 2) pensar que sabe alguma coisa do restante do país. Não duvido que alguém consiga se informar mais sobre as coisas do Brasil profundo assistindo a BBC do que lendo uma revista de circulação nacional. É triste, mas é.

Para ir além





Daniel Lopes
Teresina, 8/4/2008

 

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