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Quinta-feira, 17/4/2008 Tiroteio, racismo e demagogia em sala de aula Marcelo Spalding O mercado hollywodiano é vertiginoso. São milhares de lançamentos, mas pouco do que é produzido chega aos cinemas. Menos ainda a gente consegue assistir; só se ouve falar de apenas alguns aqui e ali. Freedom Writers (2007), em português Escritores da liberdade, de Richard LaGravenese, é um desses filmes que de repente vemos em algumas locadoras, levamos para casa e temos a sensação de que não o esqueceremos com facilidade, para dizer o mínimo. A história baseia-se no livro The Freedom Writers Diary: How a Teacher and 150 Teens Used Writing to Change Themselves and the World Around Them, que conta o sucesso que uma professora de inglês obtém entre adolescentes problemáticos de uma escola pública norte-americana. O conflito, apesar de bastante conhecido no cinema (Meu mestre, minha vida; Mentes perigosas), ganha nesta história ares de bangue-bangue, pois não está em jogo apenas o desinteresse pelo aprendizado, a pobreza das famílias e a falta de perspectiva. Há na escola, também, uma enorme rivalidade étnica que põe orientais, latinos, negros e brancos em lados opostos. Resultado: conflitos armados, brigas generalizadas, ódios, assassinatos, injustiças. O filme dá a entender, já no começo, que essa situação caótica é resultado de uma política de integração social adotada pelo governo norte-americano em meados dos anos 90, uma forma de reinserir adolescentes infratores no sistema educacional. Naturalmente, essa política não é bem vista pelos diretores das escolas públicas, que criam ou reforçam as chamadas "turmas especiais" (leia-se problemáticas), aprofundando a segregação. Mas é exatamente seduzida pela possibilidade de dar aula numa dessas turmas e fazer algo por essa camada da população que a professora Erin Gruwell vai trabalhar na Wilson School. Inexperiente, vinda da classe média e casada com um charmoso homem de olhos claros e ternos bem passados, começa tentando falar da Odisséia de Homero até se dar conta de que para conquistar aquela turma teria de adotar outros métodos, métodos que iriam muito além da sala de aula. A partir daí Hollywood entra em ação: a professora, interpretada pela ótima e oscarizada Hilary Swank (Meninos não choram; Menina de Ouro), vai trabalhar numa loja de departamentos para conseguir comprar livros com descontos para os alunos, numa agência de turismo para proporcionar viagens a sua turma, e mesmo contra tudo e todos (desde os pais dos adolescentes até a direção da escola), consegue motivar os alunos e incentivá-los a seguir adiante nos estudos. Particularmente, duvido que a história contada no longa seja muito semelhante à história real. Ainda assim, o filme traz discussões bastante interessantes e atuais mesmo para o Brasil, onde as disputas étnicas não são tão profundas (apesar de já aparecerem nos noticiários mortes em salas de aula por brigas de gangues rivais). O método utilizado pela professora para atrair a atenção dos alunos, por exemplo, vale ser mencionado: associa a luta particular dos grupos com a Segunda Guerra, fala do Holocausto, de Hitler e os motiva a ler O diário de Anne Frank. A partir daí, propõe que cada aluno escreva suas histórias, seus pensamentos, seus sonhos e anseios em um próprio diário, diários que depois dariam origem ao livro The Freedom Writers Diary: How a Teacher and 150 Teens Used Writing to Change Themselves and the World Around Them. Escrever, mais do que uma forma de expressar medos, anseios e sonhos, torna-se para aqueles adolescentes uma tentativa de enganar a morte, eternizando-se pelas palavras e pelas idéias (qual escritor nunca desejou que sua obra permanecesse além de sua curta existência?). E ao pôr no papel todo o ódio que antes expurgavam pelos pulsos, ao exporem o lado frágil e desprotegido por trás dos corpos sarados, humanizam-se e conseguem também perceber o outro como alguém com medos, anseios e sonhos. Claro que o filme usa e abusa das idiossincrasias de classe. Um espectador menos avisado logo associará violência à pobreza, burrice à pobreza, e tanto que todas as soluções pedagógicas encontradas pela professora demandam algum recurso financeiro, prometem alguma recompensa (soluções, aliás, muito semelhantes às utilizadas pela professora Louanne Johnson em Mentes Perigosas, de 1995). E nesse ponto me pergunto se os adolescentes de classe média conhecem o Holocausto, se entre os adolescentes de classe média e alta não há também divisões por gênero, raça, religião ou número de namorados, se com os estudantes das melhores escolas do país não seria extremamente difícil trabalhar a Odisséia, de Homero. Claro que sim. Há filmes que abordaram a dificuldade do ato de ensinar nas escolas de classe média e alta (As patricinhas de Beverly Hills; O sorriso de Monalisa), mas neles sempre o final é positivo e a ordem restabelecida. Discussões profundas e necessárias como o papel da escola nos dias de hoje e o valor da disciplina na sociedade contemporânea passam ao largo, enquanto me parece que essas discussões deveriam estar muito mais presentes. Não dá para negar que nos últimos vinte anos a sociedade mudou muito, tanto em valores quanto em tecnologia, enquanto que na escola permanece a lógica patriarcal do mestre repassando conhecimento aos alunos. Sem contar, e aí sim é a problemática de filmes como o de LaGravenese, que nos últimos anos a classe baixa chegou aos bancos escolares, trazendo anseios, medos e sonhos diferentes, trazendo uma bagagem cultural diferente. E ser diferente, ao contrário do que pensam muitos, não é ser pior. Não sei se a professora Gruwell da ficção ― e não me atrevo a falar dela como outra coisa se não personagem, até porque não li o livro em questão ― inventou a solução para todos os problemas da educação pública. O que houve foi uma sintonia única entre classe e professor, sintonia irrepetível e quase demagoga (qual professor poderia comprar trinta e cinco livros novos para seus alunos conhecerem Anne Frank, quando sequer o último romance conseguem adquirir com os salários atuais?). O que não significa, de forma alguma, que sua iniciativa não deve servir de inspiração para todos que lidam com adolescentes, para todos que lidam com essa parcela carente da população. E é esse o mérito maior do filme, afora as lágrimas que rouba e os risos que arranca: provocar reflexão. Marcelo Spalding |
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