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Segunda-feira, 14/4/2008 France, mode d'emploi Pilar Fazito Guia antropológico de viagem Pão é alimento e a gente come para encher a pança ou para matar a fome, certo? Se você acha que sim, provavelmente nunca saiu do Brasil ou mesmo de seu Estado. Se saiu e ainda continua achando que sim, não deve ser uma pessoa muito observadora, convenhamos. Guias de viagem se multiplicam em prateleiras de livrarias e em bancas, dando dicas ao marinheiro de primeira viagem sobre aonde ir, como utilizar o transporte local, o que conhecer e o que comprar em cada destino escolhido. Além disso, trazem mapas, muitos mapas. Alguns desses compêndios chegam a contemplar um pouco da história do lugar. Mas há coisas que a gente só aprende observando o dia-a-dia de um nativo ou vivendo como se fosse um. Nenhum guia de viagem diz, por exemplo, que o pãozinho francês não existe na França. Se você quiser comer pão por lá, vai ter que escolher entre a baguette, o pain de campagne, o pain aux épices, o pain complet e por aí vai. E não adianta dizer "quero pão". Imediatamente, o padeiro vai te perguntar "qual deles", enumerando uma listinha. Depois de duas horas escolhendo o pão, finalmente você consegue sair de uma boulangerie com um formidável exemplar, imaginando uma manteiguinha derretendo sobre o dito cujo. Para acompanhar, uma farta xícara de café-com-leite e uma fatia de queijo canastra. Não na França, cher ami. É bom você saber de uma vez que pão, por lá, não é alimento, mas sim utensílio. O pão na França está mais para guardanapo do que para comida, não sendo raro um francês comprar uma baguette inteira para "usar" apenas uma das pontas, limpando o prato. E o resto? - você me pergunta. Vai para o lixo sem a menor cerimônia, eu te respondo. O pão é um utensílio muito maltratado no país de Sarkozy, coitado (não do Sarkozy, do pão). Franceses acham que o pão é imune à sujeira. Por isso, ele passa de mão em mão, cai no chão, é jogado sobre o painel dos carros, levado debaixo do sovaco junto com o poodle, além de ser quebrado assim que passa na esteira do supermercado a fim de caber na sacola junto com o detergente. Tudo isso como veio ao mundo: nu. Experimente pedir ao padeiro para enfiar a baguette num saco de papel e ele vai te olhar como se você tivesse mania de limpeza. Algum guia de viagem sobre a França já te disse isso? O país se orgulha de ser o maior produtor e consumidor de queijo do mundo. Dizem que são 365 tipos de queijo ou um para cada dia do ano. Para acompanhar, também há uma variedade enorme de vinhos nacionais mais baratos (por lá, claro) do que uma cerveja ou um sanduíche. Com tanto tipo de queijo e vinho, os franceses fazem o que é certo: degustam, em vez de "mandar pra dentro". Esse conceito é estendido à comida em geral (exceto o pão que, como vimos, não é alimento) e aí reside o segredo de boa-forma das francesas: a moderação. Certa vez, levei duas tortinhas de morango (do tamanho da palma da mão, cada uma) para a casa de uma conhecida para acompanhar o nosso chá. Imaginei que cada uma de nós devoraria a sua respectiva tortinha, mas tive uma decepção pueril ao vê-la guardar uma no frigo e retalhar a outra em 16 minúsculos pedacinhos. Ela ainda conseguia dar três mordidas em cada pedacinho, levando meia hora para acabar com 1/16 avos da minha gentileza. Tive vontade de arrombar a geladeira e levar o meu inteiro de volta. Mas se pão não é alimento e comer não tem a finalidade de matar a fome, qual será o uso do banho francês? Não espere da salle de bains francesa um espaço aconchegante para o deleite termal de uma Cleópatra. A água na Europa é coisa cara. Não dá para abrir o chuveiro e deixá-la cair por horas, a fim de lavar todas as impurezas da alma. Mesmo porque não há chuveiro na França. O que há por lá é uma espécie de ducha que pode ser afixada num suporte preso na parede. Eu disse "pode", porque muitas vezes não é. Quando não existe esse suporte, o sujeito entra numa banheira ou numa espécie de tina e tenta se enxaguar como se um telefone cuspisse água. Se você está de viagem marcada para a França e quer ir treinando a aventura, tente tomar banho com a ducha sanitária da sua casa sobre uma bacia. É mais ou menos a mesma coisa. É bom saber primeiramente que, para os europeus, existe uma diferença entre tomar banho e tomar uma ducha. Tomar banho implica, necessariamente, a imersão em banheira. Já a ducha é o que seria o nosso chuveiro. Segundamente, enquanto os europeus tomam banho (ou ducha) para se limpar, nós tomamos banho (ou ducha) para tudo: limpar-nos, relaxarmos depois de um dia cansativo, despertar para uma manhã de trabalho e até mesmo para refrescar. E até no Brasil isso tem diferença: um ou dois banhos por dia podem ser o suficiente no sudeste, mas é pouco no nordeste. Em Natal, toma-se uma ducha toda vez que se vai sair de casa. É quase como lavar as mãos. Que guia de viagem elucida essas questões para o pobre viajante? Que guia de viagem te diz que, em Paris, o lado esquerdo das escadas rolantes são reservados aos apressadinhos e, portanto, se você e seu amigo proseiam no trajeto, que fique um no degrau de cima, outro no de baixo, ambos à direita? Que guia salienta que isso só se aplica a Paris e não, necessariamente, ao resto da França? Gafes... Muitas gafes, mon pote. A gente vai aprendendo na marra mesmo. E vai fazendo um esforço danado para não bocejar na frente de um francês porque isso é a morte para eles, ao passo que temos que suportar uma assoada de nariz estrondosa em qualquer espaço público ou privado. Se estiver em meio a uma platéia silenciosa, numa conferência internacional sobre a criação de codornas, não se assuste ao ouvir as trombetas nasais do seu companheiro do lado ou até mesmo do palestrante. A sua cabeça seria a única a virar, reprovando o sujeito que insiste há três minutos em soltar aquele ranho preso no alto do sínus direito. Fora as trombetas nasais, a França é um país silencioso por excelência. Tão silencioso que chega a ser irritante. Depois a gente acaba acostumando, mas no início é estranho perceber que os cães franceses não latem e as crianças não gritam nem choram. Os cães eu não sei, mas as crianças levam cada bofetada dos pais por qualquer coisinha que é compreensível seu silêncio e sua repressão. O silêncio francês é tal que não se ouve o que as pessoas cochicham ao nosso lado, dentro de metrôs e ônibus. Esses meios de transporte, aliás, são movidos à eletricidade e, por isso, também são muito silenciosos. Depois que se acostuma a esse silêncio todo, o barulho de motores, a conversa alta, a poluição e as buzinas nas cidades brasileiras parecem ensurdecedoras. Quanto às roupas, é bom saber que cachecol, luvas e sobretudo (aquele casacão que vai até os pés), na França, não são roupas chiques, mas itens presentes e necessários na vida de todos. Quando o clima está a dez graus negativos ou menos, isso tudo parece muito normal. O que mais impressiona, entretanto, é ver como os franceses se dedicam à cultura. A experiência de ir ao cinema mostra um pouco isso. Antes do filme começar, (pasme!) é comum ver pessoas lendo. Lendo! Imagine não uma ou duas pessoas, mas dezenas lendo na platéia antes de as luzes se apagarem. O silêncio antes, durante e após o filme chega a ser desconcertante para quem tenta chupar uma bala. Pipoca e comida em cinema francês, então, nem pensar. E se uma conversa atrapalhar quem está do lado, o sujeito pode ser convocado a se retirar da sala de exibição. Tudo isso pode parecer exagero, mas chega a dar saudades quando a gente volta para uma sala brasileira de exibição em que a platéia, em vez de ler, resolve fazer piquenique. Não há nada mais irritante no cinema do que a crocância da pipoca alheia. O tradicional piquenique aliás é algo muito comum na França. Não há nada de brega ou ultrapassado em chamar os amigos para comer uma pizza na beira de la Seine ou do Rhône. Infelizmente, pensar em chamar os amigos um dia para comer pizza às margens do Rio Arrudas ou do Tietê é sonhar muito. Se você sair de casa e ficar o dia inteiro fora, leve sua merendeira ou o seu sanduíche na mochila. Você pode precisar comer enquanto espera na fila a sua vez de entrar no cinema e uma das coisas mais bregas que existe na França é ter que comprar comida em lanchonete. Isso é sério: leve seu lanche para onde você for e não tenha vergonha de sacar sua maçã, banana ou sanduíche de alface e atum no metrô ou nas praças públicas. Você já foi à ópera? Então vá. Não se preocupe com a roupa. Não há calça jeans rasgada ou all star arrebentado que um sobretudo não camufle. E para quê se emperiquitar para ir à ópera? Céus, você está indo à ópera como qualquer trabalhador, dona de casa ou estudante francês, não ao casamento da rainha da Inglaterra nem à Sapucaí! Deixe de lado esse salto agulha, minha filha. Isso já está démodé. Ponha sua bota de salto baixo, o saião que sua avó te emprestou quando você se formou e o casaquinho de lã que você vestiu mês passado. Faça umas marias-chiquinhas e não se esqueça do foulard ou de um cachecol amarrado à francesa (por favor, não enrole isso no pescoço como se fosse uma sucuri). Mais do que país da moda, a França é o país da praticidade. Por fim, prá quê tanto mudar de roupa, criatura? Você pode perfeitamente passar um ano inteiro revezando oito peças que ninguém repara. E não é por falta de atenção que não reparam, mas porque não estão nem aí para o que você veste, caso você não esteja desfilando numa passarela. Essa mania americana (refiro-me ao continente inteiro) que temos de tentar evitar a repetição da roupa do dia anterior é totalmente descabida. Tem a ver com nosso consumismo desenfreado. Saiba que isso também é visto como brega ou, no melhor das hipóteses, uma mania excêntrica. Alguém poderia dizer que tudo isso são questões culturais. Claro que são. Como diria um velho sábio chinês, tudo é cultural e essa constatação não diz nada. O importante é que o viajante não saia apenas de seu lugar de origem fisicamente, mas que também consiga se distanciar de sua cultura local e observar a do outro. Não para cristalizar conceitos e estereótipos, mas para questioná-los. A gente vê que tudo tem um fundamento e uma razão de ser. Por mais que os hábitos locais de outros povos nos pareçam bizarros, conhecer e respeitá-los é um exercício excelente de tolerância e de questionamento de si mesmo. A gente volta com a certeza de que tudo, mas tudo mesmo, é relativo: desde o uso das coisas até o conceito que cada um faz delas. Pilar Fazito |
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