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Quinta-feira, 15/5/2008 Literatura excitante, pelo sexo e pela prosa Marcelo Spalding Há tempos que se escreve sobre sexo, mas não vou repetir a cantilena de que começa no Marques de Sade ou nos contos das Mil e Uma Noites, pulemos essa parte. Há tempos que se escreve sobre sexo e talvez você já tenha se arriscado nesse terreno, a literatura erótica, ou a literatura com pinceladas de erotismo. Isso me lembra um professor que, certa vez, deu o machista e direto conselho: "uma cena de sexo só é boa se deixar o autor e o leitor de pau duro". Com essas palavras. Não por acaso lembrei desse professor lendo A dama da solidão (Companhia das Letras, 2007, 144 págs.), livro de estréia da carioca Paula Parisot. Na grande maioria dos seus vinte e um contos há sensações eróticas, cenas de sexo, desejo, culpa ― palavras como "foder" e "bucetinha" desfilam sem constrangimento ―, mas nada disso deixa o texto pesado nem forçado. O narrador, ou narradora, simplesmente parte do sexo para chegar na vida, nos conflitos cotidianos, no caráter efêmero e egoísta dos relacionamentos contemporâneos, escorregando aqui e ali num romantismo às avessas, mas coerente nos valores e na naturalidade com que encara o sexo. Já o primeiro conto do livro, "O guarda-chuva", trará a transa para o primeiro plano em descrições minuciosas e diretas, o que, aliás, combina com a capa da edição, em que um mamilo escuro se revela parcialmente sob o braço muito claro de uma mulher. Como em outros textos, aqui o sexo será fundamental para o desenvolvimento da trama e o desenlace do conflito, ainda que por vezes extrapole sua função pela exagerada exposição de termos e situações. Noutros casos, porém, como em "Tableau Vivant", a sugestão é maior que a exposição, causando no leitor um efeito erótico mais intenso e tornando o conto mais arejado, com certa amplitude. Diretos ou sugestivos, em todos os contos se percebe uma concepção almodovariana da figura masculina: homem não presta. Ou são frouxos, ou dominadores, ou medrosos, ou fracos, ou tudo junto. Não dão prazer suficiente a suas mulheres, não têm imaginação suficiente para satisfazê-las, apressam-se, oprimem-nas. Um trecho de "Lar, doce lar", conto destacado na contracapa da edição, sintetiza essa utilidade relativa dos homens: "No dia seguinte convidei Marlene para almoçar. Na hora da sobremesa, ela perguntou se eu alguma vez tivera vontade de que o meu marido morresse. Claro que não, respondi. Mas toda mulher casada um dia sente isso, insistiu Marlene, principalmente se ele for rico como o seu. Marido pobre a mulher não quer que morra, quem é que vai comprar o leite das crianças? Perguntei a Marlene se ela tinha vontade de que o marido dela morresse. Eu tenho, disse ela, e só não o mato nessas horas porque preciso dele para comprar o leite das crianças." Tal concepção da figura masculina não está de todo errada, admita-se, e vem de longa tradição literária ― o Carlos da Madame Bovary, o Bentinho de Capitu ―, mas há um elemento diferente no conjunto de contos de Parisot que chama a atenção: se as relações entre homem e mulher são sempre problemáticas e desiguais, as relações entre mulher e mulher mostram-se prazerosas, completas, tranqüilas ("Ela e ela", "Eu e Bianca"). Neste aspecto, por vezes, lembra os contos de Cíntia Moscovich. "Fui para o quarto e comecei a fazer a minha mala. Nesse momento, Bianca surgiu, me abraçou e disse, por favor, não vá embora. Jamais gostei do Gustavo ou de qualquer outra pessoa. Eu te amo. Não resisti aos seus beijos e fomos para a cama. Com avidez lambi o seu corpo e pela primeira vez Bianca chupou a minha vagina. Depois, deitadas lado a lado, Bianca me disse, Marta, eu te amo." A linguagem e o enredo das histórias são simples, em mais de um a personagem é estudiosa de Arte, como a autora em sua vida real, mas poderia ser balconista de supermercado ou engenheira civil: o que vale, aqui, é a profundidade do conflito e da psique da personagem. Voltando aos homens, em geral são aquilo que Tio Otávio, do conto daltontrevisânico "Acerto de contas", sintetiza: egoístas, escrotos, covardes. Aqui a narradora, uma mulher adulta e vencedora, com distanciamento crítico dos fatos, conta a forma como o tio rico a abusava quando ela era criança, e a cruel vingança que para ele preparou anos depois. Essa narração mais ampla do que o simples relato do abuso, aliás, torna o conto não apenas mais leve como mais completo, evitando o lugar comum do sensacionalismo, no qual escorrega por vezes Trevisan, ou do pornografismo, com o qual a própria Paula vive na corda-bamba. Acontece que se por um lado Paula acerta em narrar histórias de forma descomplicada sem abrir mão da intensidade e tensão exigidos pelo conto, ao tentar fazer do erotismo um fio condutor do conjunto de textos corre o risco de tornar-se repetitiva e previsível, dando-nos a impressão de estar lendo outra vez a mesma história. O conto "O último dia do ano", por exemplo, nos faz acreditar que melhor seria a autora aplicado sua técnica segura em temáticas variadas, e não restringir-se ao que sugere o seio claro de mamilo escuro da capa. Conto mantido apesar da tentativa de unidade da edição, narra de forma simples e contundente a história de um pai catando latinhas no último dia do ano com a ajuda de seu filho, orgulhoso por mostrar ao pequeno o valor do trabalho honesto. É, aliás, o único homem que presta de todo o livro. Não que esse pornografismo seja um defeito comprometedor do livro, talvez seja apenas mais um sinal de que o mercado acaba interferindo, sim, na produção literária: é inegável que fica mais fácil atrair um consumidor, leitor ou resenhista exibindo um belo mamilo na capa do que uma imagem abstrata ou o rosto de criança de rua. E aí, por questão de coerência, está certo que nos contos aquele mamilo seja posto em ação, lambido, beijado, acariciado, mordido. E aí se saúda que, pelo menos, lambido, beijado, acariciado e mordido por palavras competentes, afinal literatura só é excitantante pelo sexo E pela prosa, jamais pela simples relação de fatos eróticos: é isso, aliás, que diferencia literatura erótica dos amadores "contos eróticos" que espalham-se aos milhares pela nossa internet. Para não usarmos os termos chulos daquele meu professor. Para ir além Marcelo Spalding |
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