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Sexta-feira, 6/6/2008
Meus segredos com Capitu
Ana Elisa Ribeiro

Não me lembro mais quando aconteceu meu primeiro contato com Machado de Assis. É claro que ele já era um livro, mas não sei mais de que cor e nem de que tamanho. Machado, para os íntimos, era sinônimo de livro, para muitos de livro chato. Para mim, era uma tarefa bastante grande que eu deveria cumprir. Mas não desse "cumprir" ruim, da pior obrigação possível. Era um cumprimento curtidor, vontade de saber quem era aquele, como ele escrevia e por que razões era tido em tão alta conta. Vontade de ser um pouquinho que fosse como ele. Desejo de aprender um tantinho de sua sintaxe, nem que ela parecesse anacrônica depois de 1922. Vontade de saber de onde vinha aquela verve.

Meu primeiro Machadinho
Se não foi na estante da minha avó, foi na biblioteca do colégio. Não me lembro de chegar em casa com bilhete da escola para minha mãe. É que era comum os professores adotarem livros e os alunos terem de comprar. E eu comprava todos os que eu podia. Não tinha amarração. Não achava nisso gasto pior do que outros. Um livro me dava tanto gosto quanto uma ida ao cinema. Ou outras idas mais caras, mais alegres. Livro me dava orgulho. E então deve ter sido na escola que alguém me contou de um tal Machado de Assis. Já achava engraçado alguém só ser chamado pelo sobrenome. Esquisito. Mas é assim que é com o Rosa, mesmo bem mais moço. Gente grande, pensava eu.

Então parti para a leitura. Empreitada, diziam uns, em tom maledicente. Outros me davam quase os parabéns pela iniciativa. Acho que foi sem obrigação. Era mesmo a curiosidade boa que me movia. Não sei se foi Dom Casmurro ou Memórias póstumas de Brás Cubas. Deve ter sido um dos dois. Na escola, tenho certeza de que li Encarnação e fiquei com uma impressão toda falsa do Machado. Bom lembrar que ele teve aquela fase chamada romântica (do Romantismo) e depois virou a casaca para os lados do Realismo, muito mais gostoso de ler, penso eu até hoje.

Se li livros do Romantismo, achei Machado lento como os colegas dele. Lembro de ler, ainda antes, toda a coleção do José de Alencar. Eu vivia aí meus 15 ou 16 anos e estava nessa lida. Minha avó era, certamente, a dona da coleção. Livros de capa dura vermelha. Bonitos que só. E eu resolvi que atravessaria as páginas de todos, sem faltar nenhum. Era isso. Meus colegas ficavam intrigados com tanta idéia maluca. Tanta coisa pra fazer: o Atari novinho, o pare-bola na rua e as fofocas sobre nossos primeiros beijos. Mas eu queria saber mais sobre a escrita de uns tantos clássicos que a escola ainda haveria de demandar: Lucíola, que me fascina até hoje, O Guarani, do qual me lembrei outro dia. E depois dele, então, Machado de Assis. Não mais a obra inteira, mas se minha avó a tivesse, eu bem que leria. Com algum gosto até e sem deixar o Atari de lado. Dava para fazer de tudo naquela época.

As obras
Dom Casmurro foi desses livros que li pelo apelo escolar. Não me traumatizei por isso. Bobagem. As pessoas param de gostar de ler porque nunca aprenderam isso direito. Soubessem o que é e fariam mais, como fazem outras coisas no dia-a-dia. Ler não é coisa extraordinária, no sentido de incomum e anormal. Ler é uma coisa alimentícia. Não sei bem se melhora ou piora, se funciona como elixir disto ou daquilo, mas é coisa boa, certamente. E quando for chata, não agradar direito, não tem mistério. É só trocar de livro, como se troca de página na internet. Nada mais.

Li Dom Casmurro atraída pela tal da Capitu. Era uma celebridade a tal moça. Eu nem conseguia ver o rosto dela direito e nem saber a cor dos cabelos, mas já admirava uma personagem fazer tanto estrago na realidade. Tanto vestibular por conta dela. Uma sumidade. Bem que queria eu inventar alguém assim. E daí li querendo mesmo saber daquele mistério batido, meio fofoca, se traiu ou não traiu. Não interessa. O professor vinha com aquelas aulas de estética, linguagem literária. Mas a gente sabe pouco ler as palavras. A gente aprende é a ouvir historinhas. Demorei muito a entender o que significava linguagem e literatura. Ainda hoje tenho medo de dizer que sei sobre isso alguma coisa. Respeito, acho que é. E então a Capitu ficava sendo uma moça atrevida que dava bola pro vizinho. Mas eu nunca ia saber se dava mesmo. Uns tempos depois, meu professor de matemática disse que eu tinha olhos de ressaca. Fico feliz até hoje por conta desse episódio. Ele era tão inteligente, de uma inteligência maciça e estudiosa, e vinha me chamando de "olhos de ressaca". Minha primeira felicidade foi porque entendi a referência, sabia discernir a tal de intertextualidade (outra vedete do colégio). A outra alegria foi ser comparada a uma mulher tão especial. E não estava nem aí se ter olhos de ressaca era ser feia. Não sei. Poderiam ser olheiras, mas eram as da Capitu.

Mais adiante, fui ler Brás Cubas. Que coisa magnífica aquele morto que contava história. Fosse hoje, transformariam em um filme trash, desses de zumbi. Ninguém teve a idéia porque Machado é venerado. Se fosse de menos respeito, teriam feito do roteiro uma noite alucinante. Esplêndido mesmo.

Para não gostar de ler
Toda vez que um papo sobre leitura começa, alguém resolve sair com explicações sobre por que não lê, não gosta de ler, desgostou, deixou de gostar. Ou se não for ele mesmo, o falante desertor, é o sobrinho, o irmão, o amigo. Vai entender. Vem dizendo logo que a culpa é da escola. Sempre é. Ninguém tem família nessas horas e nem muito menos vontade própria. A vida ficou apertada e foram sumindo os espaços de leitura. Vai ler no banheiro, prefere revista, senão a bosta engastalha. E aí dizem que foi a obrigação de fazer tarefa de escola que matou o gosto pela leitura. E logo logo aparece o nome de Machado de Assis. Parou de ler porque Machado era chato. A professora, em vez de começar pela gostosura (e nunca citam qual), meteu logo um Brás Cubas pela goela abaixo. E então deu-se o nojo. Não gostei mais de ler. Mentira deslavada. Será que gostava antes? Então Machado, coitado, tem o poder desmotivador da vida de muita gente. Como se fosse só isso.

Até o fim
Li muito livro ruim até o fim não porque estivesse obrigada a fazer prova, mas para aprender a persistência. Além disso, me dava certo alívio terminar uma tarefa desafiadora. Mesmo que fosse só esta: terminar de ler um livro ruim. Há quem não tenha qualquer pudor em largar a obra em qualquer ponto. Nada contra, claro. Mas eu ia indo, ia indo, na esperança de ver algo melhorar, mudar de rumo, ganhar força. Coisa que não aconteceu a vários livros, inclusive famosos. Não me lembro se pensei assim de Machado. Acho que não. Lembro de gostar bem de O Alienista, obrinha que cheguei a planejar para os meus futuros alunos. Não cheguei a cumprir, nem sei por quê. O fato é que o livro é tão atual que mete medo. Vai discutir a loucura e quem acha que está sempre certo. Pepino, abacaxi, enrosco.

O extraordinário
Depois fui saber mais sobre o próprio Machado, não apenas de sua obra, que ficou, parece, maior do que ele. Assim é que é bom. Acontece com outros, bem poucos. Graças a Deus. E então vim rastreando. Achei lindo que Machado tivesse sido tipógrafo. Tem coisa mais adequada? Mais bonita? Eu queria ter sido tipógrafa, bem antes de o computador aparecer. Só para saber o que é isso. E então depois vieram as mazelas do tipo revista de fofoca: era negro, autodidata, epilético. Já se pensa logo em Machado contorcido no chão, com a língua enrolada. Negro naquela época era outra coisa. As palavras fizeram de Machado um cara muito respeitado, mesmo sendo tudo o que não se podia ser. Casado com Carolina? É isso? E não tiveram filhos. Machado não saía do Rio de Janeiro. Vem logo meu amigo carioca socorrer: e quem precisa sair? Será que eu concordo? Tive que, um dia, ir lá ao Rio ver o que era aquilo. É mesmo sublime. Machado ficava ali, pela cidade aberta, recém-tipográfica. Os livros dele foram os primeiros de um boom de romances que eclodiu no século XIX. O que hoje seria uma "febre". Os primeiros livros brasileiros, das editoras que ainda eram livrarias, francesas, em sua maioria. Os points de escritores. Os primeiros jornalistas, ainda sem formação específica. Todos lá, lançando textos em português brasileiro. Machado idem.

Li Machado para conhecer. Certa vez, a professora fez um julgamento sobre o enredo de Dom Casmurro. Quem é que não passou por isso? Um exercício clássico, escolar até hoje. Uma equipe condena, a outra defende a moça. E me lembro de ter tentando defender já condenando. Eu queria que Capitu tivesse traído Bentinho. Por que será? Acho que era o gosto pelo enredo enrolado. Torci por ela o tempo todo. Fui péssima advogada.

Ler e degustar
Apesar da admiração pelos escritores, fossem eles novecentistas ou geração 00, não cheguei a dar nome de um deles aos meus cachorros. Bruce era dos quadrinhos. Belinda é de desenho animado. Teria tido um PitFall e até um bassê chamado Enduro, se pudesse. Machado nunca foi nome de animal. Ler Machado é um ritual. É necessário para que se crie uma mínima referência. É claro que a linguagem muda. É claro que há obras mais parecidas com clipes e zappings, mas não há mestres como aqueles espalhados pelas ruas. Se não serve para muito da vida prática, serve para seu conhecimento da língua, até da vida no século passado. E para quê saber isso? Para saber que tudo mudou, e como. Em um dos livros de Alencar, lembro da cena dos dois rapazes que chegam à porta da igreja, no horário da missa, a avistam Lucíola. Um deles, o primo vindo da roça, se interessa logo pela bela moça. O outro, urbaninho, vem logo caçoando: moça que nada! Andando sozinha pela rua (sem homem qualquer ao lado), só pode ser quenga. Bom ler esses livros com os olhos de quem assiste às cenas e aos costumes de um tempo que já se foi. Impressionante demais. Há de impressionar aqueles que não percebem que os tempos são outros. Machado é também isto. Machado é uma necessidade, mesmo que interesse mais saber o preço da gasolina. As coisas raramente se excluem. É possível trabalhar muito, ir às festas, estudar os livros técnicos e ler literatura. Que o digam os médicos, que, a despeito de suas conhecidas vidas corridas, são dos melhores alunos, leitores e críticos literários que há.

Ana Elisa Ribeiro
Belo Horizonte, 6/6/2008

 

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