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Segunda-feira, 9/6/2008
Machado e a AR-15
Pilar Fazito

No ano do centenário da morte de Machado de Assis, está muito na moda desqualificar esse "quadradão" dos mil oitocentos e refrigerante com rolha. Em dez anos como professora, não devo ter encontrado mais de cinco alunos que realmente entendessem algum livro do autor. Gostar, então, menos ainda. Respeitar não implica gostar, e não é possível gostar de algo que não se entende. Por não haver oportunidade de entendimento, muitos leitores (boa parte deles jovens), expulsam de suas estantes uma das grandes preciosidades da literatura brasileira.

Não vou me deter aqui em pessoas que mal lêem um livro de receitas ou naquelas que pagam para ter um exemplar do Doce veneno do escorpião em casa. Essas merecem meu desprezo, no primeiro caso, e o afogamento num barril com suco de groselha, no segundo. Não é possível discutir com uma porta e Machado de Assis corre o risco de ser confundido com algum governador "das antigas".

Falo daqueles coitados que se viram em frente a um livro dele nos bancos escolares, sem saber o que fazer, para onde ir, como lê-lo. Nesses casos, seus ex-professores de Português é que deveriam ser submetidos ao afogamento num barril com suco de groselha.

Há alguns anos, dizia-se que estudantes colegiais não estavam preparados para ler Machado de Assis. Em parte, isso era mesmo verdade. Não estavam mesmo. Os sentimentos e conflitos evocados por um triângulo amoroso de Dom Casmurro aborreciam aqueles que se viam no cotidiano casa-escola-cursinho de Inglês. O drama da mulher casada e infiel não tinha nada a ver com a ebulição de hormônios e espinhas que nos assaltava entre uma Legião Urbana e um Ultraje a Rigor. E, para piorar, os professores não nos "ensinavam" a ler Machado de Assis. Tínhamos um cofre cheio de ouro nas mãos, mas achávamos que era latão. E não dava para conferir porque o professor não nos entregava a chave.

Atualmente, esse argumento não vale mais. A meninada anda tão esperta e descolada que faz Machado de Assis corar. Seu texto é que não está mais preparado para recebê-los como leitores. Eles resolvem triângulos amorosos no sorteio, na pólvora ou conciliando-se, todos, debaixo dos lençóis, depois da prova de biologia, "tomando uma e fumando unzinho". O amor já não é mais o mesmo e há tanta liberdade que casamento nenhum dura mais que uma lua-de-mel. Então, para quê tanto drama de mulher casada, infiel, dividida entre o desejo e o que a sociedade pode dizer? Nossas tramas contemporâneas, calcadas sobre o tripé da violência, da pobreza e do regionalismo, fazem os livros de Machado de Assis parecerem novela mexicana. Ou aqueles filmes em preto-e-branco em que a mocinha desfalecia nos braços do cara, após uma bitoquinha de leve, sem língua, nem saliva.

Como "encantar" esses leitores com as geniais metáforas, o humor fino ao mesmo tempo que ácido, o romantismo e a observação arguta de Machado de Assis? Não dá. Machado foi vencido pela AR-15.

O que irrita é que essa gente realmente acredita que o escritor tem que entretê-los. É um disparate tão grande que vira piada. É como o estudante que acha que a escola tem que ser divertida, e o professor tem que ser legal. Há uma inversão de valores que só não salta aos olhos de quem é cego. Escola não tem que ser legal e professor não é palhaço. Se ele cumprir seu papel de ensinar e o aluno cumprir o seu dever de estudar, o aprendizado acaba sendo conseqüência natural.

No caso de um cânone, gosta-se ou não. Mas não se pode negar aquilo que o tornou cânone. Particularmente, não gosto da obra de José de Alencar, nem dos românticos, em geral. Tampouco da precisão matemática de João Cabral de Melo Neto. Entretanto, não posso negar que são gênios naquilo que fazem.

Machado de Assis iniciou-se na escola romântica e depois, praticamente, inaugurou o Realismo no Brasil, com Memórias póstumas de Brás Cubas. Mais ou menos na mesma época em que ele sacudia o país, denunciando a hipocrisia aristocrata dos seus pares, Eça de Queiroz procurou fazer o mesmo em Portugal. A interlocução entre eles fazia-se na base da admiração e da inveja ― mútuas, diga-se ― e ambos se influenciaram.

Os dois foram seduzidos pela comédia humana de Balzac, que "turbinou" as possibilidades da escrita literária ao criar um universo de tipos e personagens capaz de sobreviver fora dos livros. Balzac popularizou a intertextualidade ao usar um mesmo personagem em vários livros; ora como principal, ora como coadjuvante. Machado de Assis foi um dos primeiros a fazer isso no Brasil. E ultrapassou a genialidade de Balzac ao construir um personagem secundário mais importante do que todos os seus personagens principais: Quincas Borba. Criador de uma filosofia própria ― a que deu o nome de Humanitas e cujo lema todo mundo conhece: "ao vencedor, as batatas" ― Quincas aparece em Memórias póstumas de Brás Cubas e em Quincas Borba ― cujo personagem principal, apesar do título, é Pedro Rubião, um professor apaixonado por Sofia, uma mulher casada.

A fase realista de Machado de Assis é onde ele melhor desenvolveu suas metáforas visuais. É depois de 1880 que ele libera o sarcasmo em imagens como esta: "Com efeito, um dia de manhã, estando a passear na chácara, pendurou-se-me uma idéia no trapézio que eu tinha no cérebro. Uma vez pendurada, entrou a bracejar, a pernear, a fazer as mais arrojadas cabriolas de volatim, que é possível crer. Eu deixei-me estar a contemplá-la."

Além de metáforas visuais, Machado supera qualquer escritor no que se refere ao jogo semântico, ou seja, ao manejo dos sentidos. Uma justaposição como "Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis; nada menos" resume toda a história. Para quem lida com a escrita cotidianamente, esse tipo de frase é um deleite porque "amou-me durante" não encerra apenas a informação temporal dos quinze meses ― banal e já esperada pelo leitor. Ao continuar a frase com "onze contos de réis", o narrador diz mais do que diria se escrevesse que Marcela o deixou depois que seu dinheiro acabou.

Memórias póstumas de Brás Cubas é, inegavelmente, um marco na literatura brasileira. Infelizmente, isso não impede que, decorridos mais de cento e vinte anos de sua publicação, ainda não tenha sido bem compreendida. Citada, estudada e admirada por bons estudiosos como Umberto Eco, a obra passou por uma sofrível adaptação para as telas do cinema, em 2001. Como já disse aqui o Fábio Rossi, o filme de André Klotzel oferece "um resuminho sem-vergonha, que talvez só sirva, e male male, a vestibulandos." A ficha técnica insiste em enquadrá-lo no gênero comédia, mas nenhum Kikito de ouro é capaz de ressuscitar ali a genial ironia de Machado de Assis. O filme não se contenta em narrar a história do personagem morto e termina por assassinar a machadadas o humor do autor.

Não é mesmo tarefa fácil adaptar qualquer livro que seja para o cinema. O livro sempre será melhor que o filme. Ainda assim, as melhores adaptações são aquelas que mantêm a essência estilística, as críticas e ironias de quem o escreveu... Seu "jeitão". Mesmo que, para isso, seja necessário modificar a trama, inserir ou fundir personagens e por aí vai.

Uma das passagens mais geniais do livro é o "desfile dos tempos". Nesse capítulo, o narrador descreve um sonho em que ele, montado num hipopótamo, é levado a um desfiladeiro. Lá, a Natureza ― ou Pandora ― o agarra pelos cabelos e o faz assistir ao desfile da humanidade, desde a pré-história até o futuro que ele não conhecerá. Essa imagem, repleta de realismo fantástico, é escrita de forma trágica e, ao mesmo tempo, cômica pelo autor. O desfile da miséria humana encena, numa espécie de grand canyon, uma verdadeira carnavalização ― outro recurso estilístico amplamente estudado por Mikhail Bakhtin. Por ele passam "velozes e turbulentas, as gerações que se superpunham às gerações, umas tristes, como os Hebreus do cativeiro, outras alegres, como os devassos de Cômodo, e todas elas pontuais na sepultura." Infelizmente, no filme, esse episódio perdeu todo o vigor, a força e a ironia. Virou algo entediante, como se o próprio personagem estivesse enfadado com o que vê.

A dificuldade em se adaptar essa obra, em particular, deve-se também a (mais uma) inovação que Machado de Assis operou na literatura brasileira: um narrador-autor-personagem que se confunde e a conseqüente diluição do limite entre a ficção e a realidade. Em Seis passeios pelos bosques da ficção, Umberto Eco detalha bem como funciona esse mecanismo. Mas, a grosso modo, é como se o autor se misturasse com o narrador e com o personagem, desdobrando-se em várias instâncias que confundem (positivamente) o leitor e o fazem adentrar na ficção sem questionar sua verossimilhança.

Em Memórias póstumas..., é Brás Cubas quem assina uma dedicatória aos vermes que o comeram. Mas a dedicatória de um livro é considerada um material pré-textual, ou seja, não faria parte do texto literário que o sucede e, portanto, não pertenceria ao narrador, mas ao autor. Temos, então, um narrador mais poderoso do que se fosse um simples personagem. E isso evidencia outra estratégia interessante que enriqueceu a escrita literária brasileira: Memórias póstumas... apresenta um enredo cujo narrador, em primeira pessoa, assume o ponto de vista de um cadáver. Longe de ser uma psicografia, o livro dá a deixa para os amantes do realismo fantástico.

Por fim, Machado de Assis compartilha a mesma descrição psicológica de personagens realizada exaustivamente por Balzac. Esse exercício de observação e descrição casa muito bem com sua ironia fina ao criticar a hipocrisia que perpassava a aristocracia da época. E Machado podia falar disso melhor do que ninguém, já que fazia parte dela. Para ilustrar, o autor criou um Brás Cubas cínico, que, inicialmente, entrega ao delegado uma moeda de ouro encontrada na rua e recebe elogios e admirações de toda a sociedade. Já ao fim do livro, tropeça em uma caixa repleta de notas graúdas, uma quantia infinitamente maior. Dessa vez, entretanto, ele não apenas julga merecê-la como sequer se lembra de procurar o dono.

É por esta breve exposição de casos e por muito mais que Machado de Assis merece ser respeitado enquanto gênio da Literatura Brasileira. Pode-se não gostar de suas histórias ou de sua escrita, mas deixar de reconhecer seu valor só mostra que o leitor não entendeu nada daquilo que leu. Se é que leu. Machado de Assis é muito mais do que um monte de palavras difíceis e arcaicas e, por isso mesmo, requer um leitor atento, disposto a "ouvir", que não tenha preguiça de abrir um dicionário caso precise e que não o leve tão a sério. É pedir demais de um leitor? Não para aqueles que assimilam a genialidade de sua obra.

Pilar Fazito
Belo Horizonte, 9/6/2008

 

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