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Quarta-feira, 24/10/2001 Notícias do fim-do-mundo Daniela Sandler Os “vapores do antraz” Casos de antraz estão virando rotina nos Estados Unidos – quem diria, país tão neurótico com relação a substâncias contaminantes que proíbe a entrada de queijos franceses cuja maturação seja inferior a 60 dias. É uma sensação engraçada, a de ver uma doença primitiva (praticamente erradicada dos países desenvolvidos, subsiste em cantões pobres como o Afeganistão) invadir silenciosamente um país asséptico. Os esporos de antraz têm endereço e destinatário precisos, ao menos por enquanto – mídia, governo –, e é por isso talvez que a população não tenha entrado em pânico. Apesar dessa “localização específica” dos casos de antraz, a impressão é a de que a doença está penetrando no país como uma espécie de nuvem invisível, como aquele vaporzinho de desenho animado que permeia os ambientes sem que os personagens percebam – ou, se percebem, sem que possam reagir. Como deter um “vaporzinho”, afinal? Sinal dessa impressão é a idéia que se espalhou por aqui de que o país estaria à mercê de um “bombardeio de antraz”. As pessoas começaram a temer uma chuva de esporos e a estocar antibióticos em casa. Especialistas não tardaram a tranqüilizar os norte-americanos: a idéia de uma pulverização de antraz sobre as ruas da cidade não procede. Os esporos seriam dispersos e destruídos ainda no ar – seria um desperdício de antraz. O problema estaria em espaços fechados, como teatros e cinemas. De todo modo, com a notificação de novos casos de contato com os esporos se tornando cotidiana, o terror arrefece. Muito pozinho contaminado já foi achado sem que tanta morte tenha sido notificada – em boa parte porque há um estado de alerta para situações suspeitas. Antraz está ficando banal. Um professor universitário me disse não estar preocupado porque “antraz não é contagioso, não vai passar facilmente de uma pessoa para outra”. No supermercado, uma senhora declarou, enfática: “Não vou mudar minha vida, minha rotina. A gente vai vivendo. A gente tem de levar uma vida normal”. Um amigo, cientista político, deu o veredito: “Tem doença bem pior que antraz. O ruim seria se eles estivessem usando Ebola ou varíola...” Pois é, esse é o ponto: o antraz parece estar sob controle, mas será ele a única arma que os terroristas islâmicos vão usar? Produtores e agrônomos estão tentando tomar precauções contra “agroterrorismo”. Plantações, criações de animais, abatedouros e frigoríficos são extremamente vulneráveis. De sua parte, epidemiologistas discutem a conveniência de desenvolver ou colocar à disposição do público vacinas para várias doenças. Quando esses especialistas começam a elaborar hipóteses – o que é necessário para que possam preparar suas defesas –, tenho vontade de mandá-los ficar quietos: estão dando idéias ao inimigo. Pensar no pior, tentar ser advogado do diabo, pensar “como eles” – e o conflito entre sigilo estratégico e liberdade de imprensa. Tudo nebuloso, invisível e no escuro: assim como a nuvem silenciosa de antraz. É essa a sensação: o “mal” é pervasivo, disperso, sem corpo; o medo é generalizado, vago e preconceituoso. No país asséptico, já que não se podem deter esporos de antraz no setor de imigração, que sejam detidos os estrangeiros, os “outros”, os suspeitos, aqueles de cor escura ou de nome impronunciável. Brincadeira? Pois saibam que há uma moratória sobre vistos de estudante por no mínimo seis meses aqui nos EUA, já que alguns dos terroristas entraram no país com esse tipo de visto. Se eu tivesse atrasado a minha vinda para cá em três anos, não teria conseguido permissão para fazer meu doutorado aqui. A importância da população universitária estrangeira, em especial na pós-graduação (ou seja, na pesquisa e produção de novo conhecimento), vem não apenas da grande quantidade de alunos como também da sua variedade e da possibilidade de intercâmbio entre os diversos conhecimentos e bagagens culturais. As instituições norte-americanas, em pensamento e na prática, têm se esforçado por estimular a abertura e a tolerância. Essas palavras não devem ser entendidas aqui no seu sentido raso, o do “pluralismo multicultural”, que já não significa muita coisa depois do politicamente correto. A abertura a nacionalidades ou culturas diversas traz resultados concretos no avanço do conhecimento, não apenas por impedir a eterna replicação do mesmo, mas por infundir matéria-prima valiosa. Basta ver os experts convidados a falar, na tevê, sobre a nova guerra: boa parte deles vem do Oriente Médio. Não é só a área de humanidades que se beneficia. Por algum motivo curioso, algumas culturas demonstram aptidões especiais (digo “culturas” porque não quero sugerir determinismo biológico): indianos e romenos, por exemplo, são notórios por suas habilidades numéricas e estão presentes “em massa” nas ciências exatas. Esse esforço de abertura e tolerância está sendo rapidamente consumido pelo vaporzinho invisível, pela “nuvem de antraz”. Isso sim, um desperdício. Valeu a pena? Será que realmente aprendemos alguma coisa? Essa pergunta é feita por Helen K., sobrevivente de Auschwitz, no depoimento que gravou em meados dos anos 80 para a série de testemunhos em vídeo feita pela Universidade de Yale (o projeto chama-se Fortunoff Archives). Helen estava pensando na indiferença do mundo em relação à tragédia do Cambódia, repetindo a indiferença em relação ao Holocausto. É um espanto – um espanto de horror, horror, horror – que o ódio e a destrutividade tenham permeado uma sociedade com tanta intensidade. O espanto não é com o ódio ou o ato em si – assassinos e ladrões há por todo canto, sempre: gente que se acha no direito de violar as coisas, o corpo e a vida de outras pessoas. O espanto é com a dimensão: como a aberração virou norma social, apoiada tácita ou ativamente pela maioria e sancionada por mecanismos formais: as leis, a polícia, a política. Peço ao leitor que releia o parágrafo acima, mas sem pensar nos nazistas. Peço que pense em nós; que pense naqueles que se vêem no direito de mandar envelopes com antraz ou aviões desgovernados; e também naqueles que se vêem no direito de jogar bombas e atar fogo a um país em ruínas, de mandar e desmandar em nações alheias para cavar poços de petróleo ou combater o comunismo; e na lista imensa de gente e ações desse tipo que se pode fazer revendo a história dos últimos cinqüenta e seis anos. Será que realmente aprendemos alguma coisa? Sobre universidades, em resposta ao Fabio Nesta semana, meu colega de digestivo Fabio Danesi Rossi condenou a greve dos professores das universidades federais brasileiras, a alocação de recursos em geral para o ensino público e a qualidade do ensino superior no Brasil. Não vou responder nos termos específicos desta greve, mas de forma mais geral. Creio que não se pode travar a discussão do ensino público superior no Brasil em termos dos problemas do ensino básico e médio. Essas instâncias não são excludentes (e, logicamente, como podem ser?). Há que se destinar mais verbas públicas às instituições dos ciclos básico e médio? Sim, sem dúvida. A disparidade entre essas instituições e as universidades públicas existe e inegavelmente agrava as diferenças sociais, políticas e econômicas do país. Tudo isso é verdade. Mas dizer que se devem estancar recursos para as universidades públicas por causa da falta de recursos para colégios e escolas é colocar a questão em termos antagonistas. Resolve-se um problema para criar outro. Em outras palavras: como pode o declínio do ensino superior ajudar na melhoria do ensino básico e médio? Apesar de todos os problemas, defeitos, falhas e desvios inquestionáveis, as universidades públicas brasileiras ainda são – ainda que desigualmente – respeitáveis. Para estragar isso não custa muito. Assusta-me pensar que, antes mesmo que possamos construir um outro sistema, decente, para o ensino básico e médio, nos deparemos com a destruição/deterioração do ensino superior. Não se pode jogar o bebê junto com a água da banheira. Há defeitos, mas isso não significa que o sistema esteja todo perdido. Estudei em universidade pública no Brasil, tive uma formação excelente – ainda que imperfeita – que, sinceramente, não me deixou nada a dever a meus colegas de Harvard ou Columbia. A maior parte dos meus professores era competente; muitos deles foram notáveis em seu talento e em sua dedicação aos alunos, à pesquisa e a projetos sociais; e alguns são decididamente brilhantes. O salário que essa gente ganha é uma vergonha. É uma vergonha em si, é uma vergonha comparado ao salário de professores de universidades particulares, é uma vergonha comparado ao salário de profissionais de outras atividades, é uma vergonha comparado à importância incomensurável (nos dois sentidos) de seu trabalho, é uma vergonha comparado ao custo de vida no Brasil, e é ainda mais vergonhoso comparado aos salários de universidades estrangeiras e até mesmo à minha modesta bolsa de doutorado. A perversidade do nosso sistema educacional – que faz com que, de modo geral, o melhor ensino superior (o público) só seja acessível às camadas mais altas da sociedade, que puderam pagar ensino médio e básico privado – não pode ser corrigida com equações financeiras. Nesse ponto, a realocação de verbas se aproxima, curiosamente, de uma sugestão que pode ser considerada seu anátema ideológico: a “ação afirmativa” (esta, uma espécie de atadura...) . Medidas sociais mais profundas, demoradas e dolorosas que essas deveriam ser nosso ponto de discussão. Distribuição de renda, salários injustos, corrupção, políticos venais, opressão e carências sociais, violência – a lista é enorme e multifária. Para começar, e em consonância com o primeiro desses temas, por que não discutir a “taxação proporcional” do ensino público, pela qual as famílias com mais dinheiro pagam mais pela educação de seus filhos, ainda que na universidade pública? Afinal, como vejo aqui na América do Norte, universidade pública não significa universidade grátis (e vice-versa). Daniela Sandler |
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