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Segunda-feira, 30/6/2008
O artista em três gerações
Pilar Fazito

180. É mais ou menos essa a quantidade de Festivais e Mostras de Cinema que temos atualmente no Brasil a cada ano. O número foi levantado pelo cineasta mineiro Geraldo Veloso, durante a 3ª CINEOP ― Mostra de Cinema de Ouro Preto, numa mesa do Chafariz, um restaurante aconchegante que fica entre as ladeiras da cidade.

Para quem participou do Cinema Marginal, acompanhou de perto o Cinema Novo, fez parte, através da sétima arte, da resistência nos anos de chumbo e ainda assistiu ao cinecídio da era Collor, ouvir uma coisa dessas é, de certa forma, uma excelente notícia. Ainda assim, os cineastas Andrea Tonacci, Cristina Amaral e Elza Cataldo concordaram num ponto: não adianta haver tantos festivais tratando dos mesmos temas. A coisa acaba ficando repetitiva e não oferece oportunidades de encontros e trocas inovadoras entre os participantes. Felizmente, esse não foi o caso da 3ª CINEOP. A começar pelo ambiente: as ladeiras de Ouro Preto favorecem o encontro de bastidores o tempo todo. Além disso, os organizadores dedicaram a Mostra à aproximação entre os diretores Glauber Rocha e Rogério Sganzerla, ambos já falecidos. O primeiro, ícone do Cinema Novo; o segundo, um dos maiores expoentes do chamado Cinema Marginal, juntamente com Júlio Bressane e o próprio Andrea Tonacci.

Helena Ignez, atriz que foi casada com Glauber e, posteriormente, com Sganzerla, chegou a dizer em um dos seminários do evento: "Esta aproximação entre Glauber e Rogério, proposta pela Mostra de Ouro Preto, é nova e revolucionária". Nova, revolucionária e desmistificadora, diga-se. Se há algo a salientar em relação à Mostra é o fato de ter reunido cineastas que conviveram com os dois homenageados e pesquisadores que proporcionaram boas reflexões desmistificadoras. Um desses melhores momentos ocorreu no seminário "Glauber Rocha e Rogério Sganzerla: Inventividades dos Anos 60". Realizado no domingo e mediado pelo crítico Cléber Eduardo, reuniram-se em torno da mesma mesa a atriz Helena Ignez, os cineastas Andrea Tonacci e Joel Pizzini, os pesquisadores Luís Alberto Rocha Melo e Remier.

Da mesa, os depoimentos mais edificantes foram o de Tonacci e o de Luís Alberto. Enquanto os demais relembraram fatos interessantes e memórias dos homenageados, Tonacci deu uma lição ao expor todo o contexto político da década de 70 e fazendo o público entender o que motivou esses cineastas a buscarem novas linguagens. Tonacci é um bom orador. Ponderado, sensato e, ao mesmo tempo, apaixonado por aquilo que faz, falou pausadamente e de forma tranqüila, com uma presença de espírito que paralisou todo mundo. Não se ouvia o vôo de uma mosca. Foi assim, absorto, que o público formado em sua boa parte por jovens na casa dos vinte e poucos anos ouviu a motivação de Tonacci: não fazer cinema para ganhar dinheiro, por profissão ou capricho, mas por uma necessidade e vontade visceral de mudar o mundo de alguma maneira.

Em seguida, Luís Alberto Rocha Melo, pesquisador no Rio de Janeiro, falou sobre a forma como as gerações de 1980 em diante vêm interpretando o trabalho de Glauber e de Sganzerla, geralmente, de forma "deplorável". Ele deu o próprio exemplo a fim de explicar a necessidade de se entender melhor a proposta e o trabalho de ambos. Um entendimento que vem com o estudo, com a disposição em ouvir o outro lado e, sobretudo, com certa maturidade. A partir daí, é possível observar que a proposta do Cinema Novo, de Glauber Rocha, não exclui e nem vai contra a do Cinema Marginal, representado por Sganzerla. Antes, complementam-se.

O ponto alto da apresentação de Luís Alberto foi ter posto a discussão sob a ótica das gerações que se sucederam à efervescência da década de 70. A de Tonacci, o fato de expor aquilo que passava pela cabeça da geração que efervesceu na década de 70. O resto do seminário ficou restrito às lembranças emotivas e pessoais sobre os dois homenageados e faltou quem ligasse os pontos das falas de Luís Alberto e Tonacci. Algo para ser retomado, possivelmente, num próximo debate. Ou nos bastidores, em mesas de restaurantes de cidades históricas, quando for possível.

A questão que fica após essa reflexão é se há espaço hoje para um cinema contestador. O que motiva a geração atual, que presencia e faz acontecer a retomada do cinema brasileiro?

À noite, subindo as ladeiras frias de Ouro Preto ao lado da montadora Cristina Amaral, Tonacci diz que a nova tecnologia talvez tenha prejudicado o surgimento de novos bons diretores: "você deixa a câmera ligada o tempo todo e, por isso, muita gente não planeja mais o que vai filmar".

Esse, aliás, talvez seja um dos motivos que faz com que a máxima glauberiana "uma câmera na mão, uma idéia na cabeça" tenha sido tão mal interpretada e descambado para a "porra-louquice". A câmera continua à mão, cada vez mais potente. O que mudou foi a "idéia": muitas vezes, ou ela inexiste ou é uma idéia de jerico. Noutros termos, ocorre no cinema o que ocorre em todas as outras artes. Seja na música, na literatura ou nas artes plásticas, as novas possibilidades tecnológicas, freqüentemente, acabam sendo uma ameaça ao trabalho do artista que não as vê como simples instrumentos. A arte não está em manejar bem a tecnologia, mas em fazer com que ela expresse toda uma concepção que, por mais que se preste à desconstrução do objeto, deve ser conscientemente fundamentada.

A câmera digital de baixo custo faz com que todos sejam possíveis diretores. A publicação de textos em blogs e o custo cada vez menor de edições independentes fazem com que todos sejam possíveis escritores. O baixo custo de uma ilha de edição de som caseira faz com que todos sejam possíveis compositores. Mas o que faz com que essa gente seja de fato um artista?

Volto a Ferreira Gullar, que disse certa vez em Belo Horizonte que o artista estuda, pratica e se forma ao longo dos anos, como todo profissional. Dizer que todo mundo é escritor é como dizer que todo mundo é pianista. "Então, toca aí a 5ª de Beethoven", Gullar usou para exemplificar seu raciocínio, fazendo a platéia do Ofício da Palavra cair na gargalhada.

Com o cinema é a mesma coisa. Há hoje uma boa parcela de novos cineastas preocupada em ganhar dinheiro e fazer com que o Brasil tenha uma indústria do cinema. Há também outra boa parcela de cineastas que pende para o lado oposto: sentem-se descobridores do Cinema Novo ou querem inovar sempre. Preocupam-se em fazer filmes autorais tão "elaborados" que ninguém paga para ver. Isso quando não se perdem em devaneios e "porra-louquices".

Ora, um filme é para ser visto assim como um livro pressupõe leitores. Não creio que haja mais espaço para gênios como nos moldes passados. O gênio hoje tem que garantir um espaço no mercado. Não para ganhar dinheiro, mas para garantir a visibilidade de sua obra. Então, ou ele contrata uma equipe de divulgação ou ele mesmo terá que descer de sua torre de marfim e fazer essa ponte com o público. O que ocorre é que muitos ainda não entenderam ou não aceitaram isso. Continuam cada vez mais trancafiados em suas torres, amargurados e magoados com o público que nem sabe que eles existem.

Outro componente complicador para a arte hoje em dia é a própria conjuntura política e social em que vivemos. Globalização. Desde que Margareth Thatcher virou primeira ministra e o neoliberalismo virou moda internacional, as distâncias culturais encurtaram bastante. A conseqüência mais nefasta disso tem sido o achatamento das culturas locais. A TV a cabo e as antenas parabólicas chegaram a casas que não possuem sequer uma geladeira. Um exemplo do resultado lingüístico disso é que comunidades ribeirinhas do Amazonas começam a falar como a Fátima Bernardes e o William Bonner quando estão diante das câmeras. O resultado cultural é ainda mais catastrófico. Vá explicar a essa gente a importância de cultivarem as festas, o folclore e os costumes locais. Necessário, porém complicado. Muito complicado.

No mundo globalizado, o individualismo fala mais alto. Os sonhos coletivos da década de 60 e 70 parecem ter sido pulverizados. O "efeito El Niño cultural" que impelia as pessoas a reclamarem nas ruas em nome de causas coletivas, fosse o MR-8 ou a TFP (Tradição Família e Propriedade), fossem os comunistas ou o CCC (Comando de Caça aos Comunistas) desapareceu ao longo dos anos. Direita ou esquerda, há 30, 40 anos, o que impressionava é que as pessoas acreditavam em causas coletivas, sonhavam juntas, como aves em bandos. E essas causas davam bons filmes, boas músicas, bons livros, boa arte. Eram duas as formas de manifestação: ou o artista esbravejava abertamente, gritava e enfrentava a repressão de forma agressiva, como Glauber Rocha e Rogério Sganzarla; ou o artista contestava de forma intimista e emotiva, mas nem por isso menos impactante. É o caso de Tonnaci, no cinema brasileiro e Theo Angelopoulos, no cinema grego.

Hoje, não temos mais sonhos coletivos. Se há protestos que reúnem mais de 3 mil pessoas, esses estão ligados a torcedores de futebol, ensandecidos pelo preço dos ingressos nos campos, pelo erro de um árbitro ou pelo péssimo desempenho de seu time. Não se pode dizer que compartilham um sonho. Do mesmo modo, não compartilham sonhos aqueles que lotam estádios e ruas por ocasião de macarenas ou maratonas de axé. Compartilham bebidas, bactérias, vírus da hepatite C e, bobeando, outros ainda mais agressivos. Sonhos e ideais, não.

Como a arte sobrevive diante disso?

No seminário da 3ª CINEOP, Luís Alberto foi bastante delicado ao dizer que década de 80 não produziu boa arte. Um eufemismo. Na verdade, a arte dos anos 80 é realmente medíocre e reflete a frustração que caracteriza os filhos da ditadura.

Após a efervescência dos sonhos daqueles que viveram os anos de chumbo, veio a censura, o choque, o exílio, o desânimo e a desilusão que tomou conta de todos e empurrou os ideais para um imenso ralo. Muito dos filhos da ditadura, nascidos entre a 2ª metade da década de 1970 e a 1ª da década de 1980, presenciaram a pior parte: o declínio das aspirações de seus pais.

Aquela geração de revolucionários e de sonhadores foi substituída por uma geração de frustrados que, como cachorro que cai do caminhão de mudanças, não sabe o que fazer. E essa geração de frustrados vem sendo substituída por uma geração de consumistas alienados.

O modelo atual de sucesso é um gordo saldo bancário e a beleza à la Photoshop. Como desponta um gênio das artes em meio a isso?

Não desponta. Os sonhos coletivos foram pulverizados e levaram, consigo, o olhar crítico. O grande desafio para o artista atual é vencer o obstáculo da banalização, da insensibilidade e conseguir tocar as pessoas uma a uma. Contribuir para a reflexão e fazer com que elas voltem a sonhar e acreditar que ainda há como melhorar o mundo. Já mobilizá-las e aglutiná-las em torno de um sonho coletivo talvez seja pedir demais.

Pilar Fazito
Belo Horizonte, 30/6/2008

 

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