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Quinta-feira, 10/7/2008
O inventário da dor de Lya Luft
Marcelo Spalding

Luft é nome extremamente conhecido e respeitado aqui no Sul. Antigamente por causa do grande gramático e professor Celso Pedro Luft; hoje muito mais por causa da carreira literária daquela que foi sua esposa e herdou seu sobrenome: Lya Luft. Lya iniciou na literatura como tradutora de inglês e alemão de grandes clássicos como Virginia Woolf e Rainer Maria Rilke e, aos 41 anos, em 1980, publicou seu primeiro romance, As parceiras. Até os anos 2000 manteve uma carreira regular, como a de tantos outros bons nomes da nossa literatura contemporânea: algum espaço na mídia, algum estudo acadêmico, grande admiração dos seus pares. Mas com Perdas e Ganhos, publicado em 2003, Lya alcançou o raríssimo posto de autora de best-sellers e tornou-se uma das mais festejadas escritoras da literatura brasileira. Para ilustrar, naquele ano passou a vender mais que Paulo Coelho.

O sucesso repentino, apesar da carreira sólida, trouxe tudo o que se sabe que trará um sucesso repentino: superexposição na mídia, mudança de rumo da sua obra, narizes torcidos. Seus pares já não achavam tão cult citar Lya, e os críticos acusavam-na de ter feito um livro de auto-ajuda, ainda que insistisse em chamá-lo de ficção. Com o tempo, Lya trocou de telefone, de e-mail, tornou-se mais reservada, virou capa de revista semanal, trocou o jornal local, Zero Hora, pela revista que a brindara com capa, procurou evitar holofotes, lançou novos títulos pela Record, livros de crônicas, poesia e até um infantil. Mas precisaria de cinco anos para que voltasse à ficção.

Esse retorno, aguardado e festejado, chega em 2008 com o volume de contos O silêncio dos amantes (Record, 2008, 160 págs.). Amplamente propagandeado aqui em Porto Alegre, tornou-se presente preferido (para quem ainda compra livros de presente) no Dia das Mães e no Dia dos Namorados, mas deve ter deixado muitos filhos, mães, maridos, esposas e namorados surpresos: não parece a mesma autora, decididamente não é o mesmo texto.

Por todo o sucesso dos livros anteriores, naturalmente abre-se o volume de contos à espera da Lya otimista de Perdas e Ganhos, de Pensar é transgredir, de suas colunas, da Lya conselheira, da Lya avó, da senhora de cabelos entre loiros e grisalhos a cantar o prazer da idade, da sabedoria, da leitura. E o que temos é exatamente o oposto: uma Lya soturna, pessimista, criando e matando personagens num ritmo trevisânico.

Amantes, em O silêncio dos amantes, há poucos, e os que existem não vivem bem, odeiam-se calados, cometem violências, vingam-se. Há muitos pais e filhos, há muitos filhos que morrem, alguns que se suicidam. Há velhos, muitos velhos, em geral dependentes, descritos para que deles tenhamos asco, e para tanto não são poupados detalhes escatológicos de uma avó numa clínica. E há, sobretudo, seres imaginários como aqueles amigos de infância que algumas crianças cultivam, seres que acompanham as personagens na vida adulta, na velhice, doces fantasmas a compartilhar segredos.

O resultado é um livro pesado, difícil de se chegar ao final, um livro que como tantos outros desde Rubem Fonseca coloca a violência nua e crua diante do leitor mas não tem nem o ritmo estético próprio desse gênero nem a ousadia existencial da Clarice de A hora da estrela. Resta a dor, apenas a dor, a dor do tempo que passa e envelhece os amantes, embrutece os justos, maltrata as gentes.

Exemplo do tom do livro é o próprio conto que dá título ao volume, "O silêncio dos amantes". Nele, a narradora, entre ressentida e resignada ― como em geral o são as mulheres dos contos ― lembra como conheceu Valentim, aquele que agora dorme ao seu lado, o acaso do primeiro encontro e narra com uma ênfase assustadora a tragédia pela qual havia passado seu agora marido:

"(...) Um assaltante arrancou [a grávida] de dentro do carro e a derrubou no chão. Pegou rapidamente bolsa, relógio e celular da moça caída na calçada, e entrou no carro. As sacolas de compra ficaram no chão, ao lado dela. Quando já estava arrancando, sem explicação, sem motivo a não ser a alucinação da droga ou a maldade mais primitiva, inclinou-se um pouco para fora, e disparou. Duas vezes, na barriga volumosa. O bebê explodiu junto com as entranhas da mãe. Naquela hora, mataram também a Valentim. (...)"

Note que a grávida não é apenas morta, ela tem suas "entranhas explodidas", e ficam o leitor, a narradora e Valentim sem explicação alguma para a brutalidade da cena, a brutalidade da narrativa. Mais do que isso, na seqüência do conto a narradora conquista o homem mas passa a conviver com o fantasma da grávida que rondaria pela casa "com olhos melancólicos e desesperados", num sinal evidente que não há espaço sequer para uma transcendentalidade; a tragédia urbana e humana marcariam em definitivo a existência daquela mulher, daquele bebê, daquela narradora. Que conclui, não por acaso, com a singela frase: "a dor faz parte".

Não é casual que este conto seja o último do livro, que esta frase seja a última do conto, conto e livro que surpreenderão a muitas leitoras, de certo afastarão outras tantas, e talvez seja exatamente essa a intenção de Lya Luft. Ou a de resgatar uma identidade como escritora, ficcionista e contista "respeitada", ainda que para isso tenha que apavorar leitores acostumados a frases como "Porque o amor, do jeito que pode ser, é o caminho da liberdade e da grandeza ― é a nossa única possibilidade de salvação" ("Um tema tão delicado", em Pensar é transgredir).

Se melhor ou pior, não cabe a um reles resenhista afirmar. O que talvez mereça reparo é que um escritor precisa ser honesto com seu público mesmo sendo ele formado por leitoras da Veja. Nesse sentido, não precisava a edição trazer o atraente e romântico título "O silêncio dos amantes" e muito menos a comercial chamada "da autora de Perdas e Ganhos". É outro livro, é quase outra autora. Uma que deve ser guardada bem longe de Paulo Coelho e bem perto de Dalton Trevisan.

Para ir além





Marcelo Spalding
Porto Alegre, 10/7/2008

 

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