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Terça-feira, 1/7/2008 Chris Hedges não acredita nos ateus Daniel Lopes Ao contrário do que pode sugerir o título de I don't believe in atheists (Free Press, 2008, 224 págs.), Chris Hedges não é do grupo dos crentes carolas. Na escala política dos EUA, é liberal, e não conservador. Ex-correspondente do New York Times, publicou ano passado American fascists, um vigoroso ataque à direita cristã. Hoje é membro do Instituto The Nation, criado a partir da revista semanal de mesmo nome, a mais antiga e consistente publicação de esquerda do país, com a qual colabora. No entanto, em nenhum momento do livro o autor trai sua sólida formação cristã, e é natural e salutar que seja assim. Ao longo das pouco mais de cento e oitenta páginas de texto propriamente dito, Hedges é bem sucedido em vários pontos. É muito feliz ao investigar como ateus ativistas como Sam Harris ― que, junto com Christopher Hitchens e Richard Dawkins, forma o que os crentes ironicamente chamam "a Santíssima Trindade do novo ateísmo" ― couberam direitinho no papel de "idiotas úteis" à agenda neoconservadora de dominação global pela força. Harris quer ver mortos os praticantes do islamismo. Não apenas os terroristas, veja bem, mas todos os adeptos da religião (para Harris não há diferença significativa entre eles). Assim, tal como Hitchens, foi um entusiasta da guerra do Iraque de 2003. Chris Hedges também escreve páginas indispensáveis sobre o preço cobrado em sangue das teorias de alguns pensadores do Iluminismo, radicais defensores da ciência e da razão que acreditavam no progresso moral do homem, ou seja, que cada geração é moralmente superior à anterior. A educação seria um caminho certo para arrancar o homem do misticismo e o colocar no caminho da razão, salvando assim a humanidade, teoria há muito desmontada pela simples demonstração de que a Alemanha nazista era um país extremamente educado. Há ainda, em I don't believe..., uma fundamentada crítica ao Estado corporativo, do laissez-faire, embora não se saiba muito bem como ou por que ela veio parar no livro em questão. Da mesma forma, as inúmeras páginas sobre os erros que levaram à invasão do Iraque, e o caos que dela resultou, esdruxulamente freqüentam um capítulo chamado... "O mito do progresso moral". A premissa da obra é que não é a ciência ou a religião em si que apresenta perigo, mas a "mentalidade" (mindset) que possuem os fundamentalistas dos dois lados. Esse argumento é aparentemente lógico e inexpugnável, mas o engraçado aqui é que, enquanto as grandes religiões, através dos séculos, não se viram ameaçadas por uma onda de ateísmo com tanta potencialidade como a de hoje (pois estamos numa era onde as idéias viajam a velocidade assustadora), enquanto os monoteísmos se viram livres e soltos para dizerem e fazerem o que quisessem, não há registro de conversas como essa que Chris e muitos outros religiosos propõem agora ― a do "vamos acalmar os ânimos, o problema são apenas os radicais, nós moderados dos dois lados podemos viver em paz e amor". Ao longo da história, pessoas que tinham a religião em boa conta ficaram famosas por atos dignos. Algumas têm frases citadas por Chris Hedges na abertura de capítulos, como é o caso de Albert Einstein. Dostoievski aparece em outro momento. São frases bonitas. A de Einstein defende que ciência e religião não podem ser separadas. Nesse ponto, é importante fazer uma pausa. O judeu Einstein é o cientista mais citado pelos crentes ― "Viram? Um dos maiores homens da ciência de todos os tempos foi um defensor da religião". Ocorre que aqui, o que fazem é espremer os fatos para ver se sai alguma coisa a seu favor. Qualquer pessoa que já leu um artigo de Einstein sobre religião, e não uma frase tirada do contexto, sabe o que ele entendia por ela, muito diferente de como é entendida pelas instituições da fé. Para ajudar na cura dessa ignorância (se não for má fé), uma passagem de seu Ideas and opinions. O itálico é meu: "A mais bela experiência que podemos ter é a do misterioso. Ele é o sentimento fundamental que está no berço da verdadeira arte e da verdadeira ciência. (...) Foi a experiência do mistério ― mesmo se misturada com o medo ― que engendrou a religião. O conhecimento da existência de algo que não podemos penetrar, nossas percepções da mais profunda razão e da mais radiante beleza, que apenas em suas formas mais primitivas são acessíveis a nossas mentes ― é esse conhecimento e essa emoção que constituem a verdadeira religiosidade; nesse sentido, e apenas nele, eu sou um homem profundamente religioso. Não posso conceber um Deus que premia e pune suas criaturas, ou tem uma vontade da maneira que nós mesmos a experimentamos. Nem posso, ou gostaria, de conceber um indivíduo que sobrevive à sua morte física; deixe que almas fracas, por medo ou absurdo egoísmo, contemplem tais idéias. Estou satisfeito com o mistério da vida que não se esgota e com a consciência e o vislumbre da maravilhosa estrutura existente no mundo, junto com um tremendo esforço para compreender uma porção, por mais ínfima, da Razão que se manifesta na natureza." Alguém imagina essas palavras num documento, digamos, dos Bispos do Brasil? Quando Einstein faz referência à "verdadeira religiosidade", tomada pelo sentimento do misterioso antes que assaltada por dogmas, ele está na verdade bem próximo do herético Feuerbach, que está na epígrafe do livro de Hedges. Em A essência do cristianismo (1841), lemos que a "verdadeira" essência da religião é antropológica, a teologia não passando de uma falsidade. Pouco antes da publicação dessa obra, o filósofo havia defendido que "o cristianismo na verdade desapareceu há muito tempo, não apenas da razão, mas da vida dos homens", e que se resumia já em sua época a "uma idéia fixa" ― de certa forma antecipando em algumas décadas Nietzsche e sua máxima, "o Evangelho morreu na cruz". Ninguém nega que pessoas de fé possam ser virtuosas. A questão, como colocada por Hitchens em debate com um rabino, é que não há uma só boa ação em prol da comunidade feita por um religioso que alguém sem fé em Deus não possa realizar. Sendo assim, as religiões institucionalizadas são, no mínimo, dispensáveis. São dispensáveis também porque dependem de Escrituras que, hoje, no bojo da nova contra-reforma que almeja debelar a ameaça atéia, nos explicam não terem sido criadas com a intenção de serem perfeitas, estando naturalmente cheias de deslizes. Falta avisar as ovelhas dos imensos rebanhos. "Os leitores, desde que a Bíblia existe", escreve Hedges, "escolhem e rejeitam aquilo que convém ou não às circunstâncias de suas vidas". Isso, em bom português, quer dizer que a Bíblia é pau pra toda obra. De fato, praticamente tudo pode ser justificado recorrendo-se ao imperfeito livro sagrado dos cristãos, da aniquilação dos infiéis ao, claro, amor aos animais. Também não vale dizer que Bin Laden desvirtua o Corão, porque ele, o terrorista, cita passagens que justificam o banho de sangue; para ele, quem desvirtua o Livro são os que querem dialogar com o Ocidente. Nem o movimento das Cruzadas teria durado um décimo do que durou, e chacinado um milésimo do que chacinou, se a brutalidade não estivesse toda justificada nas Escrituras. O autor de I don't believe... diz que a riqueza da Bíblia está, não na coerência ou na fidedignidade dos relatos, mas em uma miríade de bela "literatura, tratados morais, estórias, regras, aforismos, mitos de criação, cartas, fábulas, polêmicas, histórias e poemas". Ótimo. Agora sugiro reunir dois bispos para separar o que é uma coisa ou outra. Mais da metade dos estadunidenses acredita que a origem do mundo tal como está narrada na Bíblia é fato. Chris Hedges acredita que não. E aí, a passagem configura mito criacionista ou história? Por favor, eu não pretendo que ninguém aí largue o terço e venha escutar Bad Religion comigo. Como um ateu não-praticante, nascido e criado em uma família de católicos, sei muito bem da importância do diálogo e da inutilidade de se pregar um futuro perfeito de sociedade uniforme ― seja um futuro cristão, muçulmano ou ateu. Limito-me nesta resenha a apontar o que considero análises e conclusões erradas, que estão impressas em livro de um distinto jornalista do mais influente país do globo. "Quanto mais sofisticada é a biologia", leio, por exemplo, na página 55, "menos aplicável é o antigo reducionismo daqueles que acreditam numa existência puramente racional". Mas qual ateu acredita numa existência puramente racional? Uns três, provavelmente. Só que Hedges se faz de doido e confunde de propósito a crítica da abstração religiosa com a crítica de quaisquer tipos de abstração. A passagem acima não é um deslize isolado. Pelo contrário, é coerente com a visão expressa ao longo de todo o livro, de que o que se encontra além da matéria nua e crua pertence ao religioso. Não apenas o pecado é um "conceito bíblico", mas "toda ética começa com a religião". Assim, se você não tem religião, potencialmente é alguém que desconhece o que é errado, o que é moral, o que é ético. Você não pode ter ideal de um mundo melhor, ou sucesso no estudo do psicológico, da literatura, da música, do inconsciente... Porque tudo isso vai além do material e, de acordo com o ensinamento de Hedges, é monopólio do religioso. "O que somos nós?", ele pergunta. "Por que estamos aqui? O que temos que fazer, se é que temos que fazer algo? O que tudo isso significa? Ciência e razão, se podem iluminar essas questões, não podem responder definitivamente a nenhuma delas". A religião, certamente, pode. Em vez da dúvida e da eterna procura, as filosofias em que a verdade é determinada por consenso. Em 2007, por exemplo, uma comissão de sábios católicos reuniu-se e decidiu que o limbo não existe mais. Existiu há séculos, mas no primeiro semestre de 2007, com a decisão do Vaticano, puf!, deixou de existir. Simples assim. Uma "resposta definitiva". Não surpreende que alguém que raciocine assim de forma tão estreita veja ― como vê Hedges ― nos grandes massacres do século 20 a mão peluda do ateísmo amoral. No entanto, tomemos a Segunda Guerra, o mais trágico evento do século passado. Os principais players foram os EUA, o nazismo, o fascismo e a União Soviética. O nome de Stalin é o mais citado como exemplo do que o fundamentalismo ateu pode causar. Há controvérsias quanto à natureza secular do regime soviético, já que muitos estudiosos o vêem assentado numa forma de culto religioso, na qual o Partido e o Líder eram venerados, e suas palavras tinham poder de dogmas. Além de que, como o próprio Hedges não deixa de informar, em nome de verdades absolutas, Stalin investiu contra a "ciência judaica" e a "biologia burguesa", colocando no quintal a física de Einstein e a genética de Gregor Mendel. Pra não falar na reclassificação do aborto e, em 1934, do homossexualismo como crime... Mas vamos conceder que Stalin era um discípulo direto de Voltaire. Além da conta é querer escalar Hitler e Mussolini no mesmo time, além dos WASPs da América. Quanto ao italiano, basta dizer que foi em seu governo que o Vaticano foi criado, por entendimento com o papa Pio XI. Hitler, por sua vez, adorava o anti-semitismo revelado por São João (VIII, 31-59, especialmente 42-44), e recebeu da Igreja sinal verde para rearmar o país, além de arquivos genealógicos informando quem era cristão e quem era judeu. Então, onde entra a culpa dos ateus nisso tudo? Ah, já sei! A matança hitlerista ocorreu em escala industrial, como se sabe, só possível graças aos desenvolvimentos técnicos, frutos de estudos científicos; a ciência, portanto, trabalha com o material, e até quem ainda vai nascer sabe que os ateus são meros materialistas ― eureca! Mas fazer o que, em última análise Chris Hedges culpa o diabo dos ateus até pela emissão de gases poluentes na atmosfera. Vocês sabem, os carros são fabricados com tecnologia derivada dos estudos etc. etc. Da mesma forma, ele dá um jeito de atingir o secularismo ocidental mesmo quando faz referências à carniçaria perpetrada por Slobodan Milosevic ou aos jovens palestinos mortos "por esporte" por soldados israelenses na Faixa de Gaza. Os dois fatos são inegáveis, mas não custava lembrar que os soldados estão em Gaza para proteger colonos judeus fanáticos que julgam estar em sua terra supostamente sagrada. Quanto ao genocídio bósnio e a subseqüente Guerra do Kosovo, na década de 90, foram motivadas principalmente por rixas históricas entre etnias, mas é Hedges que, lá pelo final do livro, traído talvez pelo cansaço, deixa escapar que "as piores atrocidades na Bósnia foram abençoadas (...) por padres católicos e sérvios ortodoxos". Ele cobriu a guerra para o NYT, deve saber de alguma coisa. Nota do Editor Leia também Especial "Deus tem futuro?" Para ir além Daniel Lopes |
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