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Quinta-feira, 3/7/2008 Considerações de um Rabugento Abdalan da Gama "...tu amas a narração direta e nutrida, o estilo regular e fluente, e este livro e o meu estilo são como os ébrios, guinam à direita e à esquerda, andam e param, resmungam, urram, gargalham, ameaçam o céu, escorregam, caem..." Machado de Assis, no capítulo "O Senão Do Livro", de Memórias Póstumas de Brás Cubas "Enquanto minha alma fazia estas reflexões, o outro ia indo por sua conta, e Deus sabe aonde ia!..." Xavier de Maistre, em Viagem à roda do meu quarto A destra tapa um bocejo enquanto a sinistra segura os comentários de Manuel Bandeira e Alfredo Bosi sobre Machado: "Nenhum escritor o sobrepuja na harmonia de todas as qualidades, que faz dele nosso clássico por excelência", "O ponto mais alto e mais equilibrado da prosa..." ― sempre achei os vendedores de enciclopédia geniais. Um perdigoto desequilibra e cai no caderno "Mais!" da Folha: 11 a 2 para Deus. Goleada! O embate não é novo. Machado já esteve no ringue com José de Alencar. Para não citar Tobias Barreto, esse outro pobre-diabo. Ouço Nessum Dorma e vou acordando com interrogações serpentinas: no jogo em que se disputa a posição de melhor escritor brasileiro, como se marca ponto? Quais as regras? Quem conta um conto aumenta um ponto? Quem pode ser juiz? O que se premia ao vencedor, rosas ou batatas? O entusiasmo com que os jornais, revistas e leitores saúdam a recepção estrangeira a nossos autores não revela uma cultura literária em busca da legitimação ou apenas a tendência a genuflexão? "Woody Allen expressou sua admiração pelo autor de Dom Casmurro". Hip, hip hurra! Leu Epitaph for a Small Winner. Match point! Ora, o valor de Machado não caminha exatamente na contramão sendo ele mesmo antes leitor estrangeiro para então se tornar escritor nacional? Machado mostra genialidade em alguns romances. Talvez três. Quatro? Certamente três. Até 1872 a obra de Machado de Assis era medíocre e de pobre conteúdo. Palavra do Senhor! A desconfiança e inquietação do autor estão reveladas no prefácio de Ressurreição (1872). Considera-se iniciante. Considera-lhe ensaio. Sua destra e sinistra seguram um coração que não sabe o que pensar da própria obra. Valendo-me de julgamento a posteriori dá para ser-lhe franco ― O romance é fraco, Machado; estilo e conteúdo desequilibrados. Faz bem em dar alguns passos para trás. Vade retro... Ei, Machado, espere! Pára! Não tanto! A Mão e a Luva (1874) e Helena (1876) saíram piores. Guiomar tem personalidade rasteira pincelada com traços trôpegos emoldurados em tela (ação) rota. Ponto sem nó. Há quem goste. Ai, ai. Iaiá. Os personagens desses dois livros são como personagens de novelas da tarde: vitoriosos embora sem trabalho, tendo futilidade como única ocupação. São imagem e semelhança das figuras típicas da época, como a luva é da mão. Considera-se ponto os epítetos negativos atribuídos a Machado: cético, sardônico, sarcástico, pessimista. Onde está o seu valor? Não ouso desancar o pau, mas a razão pela qual se deve dar algum ponto mais alto a Machado é a mesma que, aparentemente, ofende o brio ufanista: livre apropriação da tradição literária. Esse é o meu ponto. Entesourar em sua obra, exclusivamente o que reflete do pensamento de uma casta suburbana carioca do século XIX, ou como queira, a capital do Segundo Reinado, como se fosse ele apenas o observador na porta da farmácia, era exatamente o que o ofendia então. Não é daí que vieram as críticas absurdas sobre sua alienação ou de onde fogem leitores estrangeiros? Nas palavras dele: "perguntarei mais se o Hamlet, o Otelo, o Júlio César, a Julieta e Romeu têm alguma coisa com a história inglesa nem com o território britânico, e se, entretanto, Shakespeare não é, além de um gênio universal, um poeta essencialmente inglês". Desse essencialismo biologizante e circunscrição cultural que fugia. "O que se deve exigir do escritor antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que o torne homem do seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço". No terreno comparativo eu julgaria antecipação, fontes e influências. Em sua época, não faltaram a Machado os olhares desconfiados que merece o plagiador. Claro que é exagero, a menos que a idéia de plágio se amplie além das fronteiras da sua época para o tempo de The Brazilian Othelo of Machado de Assis, Helen Caldwell ou, quem sabe, The Author as Plagiarist ― The Case of Machado de Assis. Emprego de empréstimos de textos alheios que pese a habilidade da pena do escritor, não é heresia. Intertextualidade não o rebaixa de sua posição papal ― Joaquim Nabuco viu em Machado a beatitude serena de um papa. Que texto não é uma colcha de retalhos, a transfiguração de outros? "A Revolução Francesa e Otelo estão feitos; nada impede que esta ou aquela cena seja tirada para outras peças, e assim se cometem, literariamente falando, os plágios" (Machado). Nada impede. Só o tira do primeiro dia da criação, onde está Shakespeare, o criador tinhoso. Machado é um astro: está no quarto dia da criação, mas não no fiat lux. Leio Machado com a angústia de não possuir Shakespeare (1564-1616). Faço uma viagem demaistreana à roda do meu quarto e me consolo: de qualquer sorte, "Bem-aventurados os que lêem" (Apocalipse, 1:3). (Mais?) "Bem-aventurados os que possuem, pois eles serão consolados" (Machado). Palavra do Senhor! Machado é Moisés que ― como ele mesmo lembra por boca de Brás Cubas ― narrou a própria morte. Mas acrescento: no livro de Deuteronômio, cujo significado é "o refalar da lei". Machado é uma espécie de Rubião, o fiel escudeiro do filósofo Quincas Borba. Ele herda a fortuna do mestre e a gasta prodigamente. Mutatis mutandi, é o mesmo Rubião que sugere uma emenda em um artigo do jornal de Camacho ― o que é prontamente acatado ― e que por uma série de frases que compôs e ruminou, terminou como autor de todos os livros que leu. A realidade sinistra é que a principal contribuição de Machado foi a reescrita da tradição literária. Foi nos deixar escarafunchar sua estante e ler o que ele l(escrev)eu. Até o final do primeiro capítulo, Stendhal, Sterne, Xavier de Maistre, Moisés, Shakespeare e Auguste Chateaubriand. Não é de estranhar que seu salto quântico da mediocridade para níveis maiores de energia é exatamente quando introduz Stendhal como seu primeiro "personagem", por assim dizer, em Memórias Póstumas. No campo literário esse ávido leitor foi mais sagaz que todos os animais selváticos de então, ao adotar a "forma livre de um Sterne ou de um Xavier de Maistre", apimentada com rabugens de pessimismo. Caminhando para o ponto final, volto ao princípio. No princípio era o verbo, e o verbo era Deus, e o verbo se fez carne. Minha proposta é que como regra, marque o ponto final quem ― para parafrasear Manoel de Barros em conversa com algum gênio ― enlouquece o verbo, adoece-o, de si, de nós, transfigura-lhe a natureza; humaniza-o... Amo Puccini. Quem, diabos, é o autor do libreto de Turandot? Não há "lugares em que o verso vai para direita e a música para esquerda". É Divino. Vincerò!, Vincerò! Vincerò! Abdalan da Gama |
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